Moçambique: Malangatana e os seus painéis

Os painéis em mármore que hoje se revelam ao público constituem uma nova modalidade artistica a acrescentar ao extraordinário acervo que Malangatana construíu ao longo de sessenta anos de labor intenso e inspirado.
Tradicionalmente o painel aparece associado à arquitectura monumental ou à estatuária, ilustrando acontecimentos, perpetuando feitos históricos, fixando algum episódio edificante para benefício de gerações futuras. Portanto numa função meramente adjectiva ou, de todo o modo, acessória, no discurso estético.

Os mármores de Malangatana vão noutro sentido. Eles não foram concebidos para nenhum edifício ou monumento em particular e a sua temática não comporta qualquer elemento que lhes possa conferir interesse histórico imediato.
Estes paineis reconduzem-nos ao ambiente típico dos quadros de Malangatana, com uma plétora de elementos que disputam o primeiro plano, os animais estranhos, a vegetação enleante, o xitukulumukhumba dos nossos medos ancestrais, a nyamussoro que esconjura e liberta pela sensualidade, os frisos decorativos da tradição ronga, o muito movimento de olhos, a fluidez que tudo integra numa coreografia mágica.

O encontro do pintor com o mármore deu-se por generosa oferta do importador. Um acaso de amizade que coincide com a preocupação de Malangatana de encontrar alternativas para a série de murais em que tem vindo a trabalhar.
Vale à pena recordar a génese destes murais.
De há um tempo para cá Malangatana sentiu-se compelido a avançar com a sua arte para os bairros suburbanos, a torná-la cada vez mais presente na vida das pessoas que são parte do universo e do imaginário que ele reproduz nos seus quadros.

O primeiro grande sinal desta vontade do Mestre de não deixar confinar a sua mensagem aos salões e aos museus foi dado em 1989, no trabalho que executou para a Mabor, ao quilómetro 8 da Estrada Nacional Nº1.
O que ali se conta sobre a casa sagrada da família Mbvaia - em pedra, alvenaria e metal, é essencialmente dirigido à comunidade local, que prontamente se apropriou do projecto e da simbologia propostos por
Malangatana.

A estátua da Mabor, como passou a ser conhecida, marca para Malangatana o início da busca consciente de novos espaços de diálogo artístico.
E marca também um momento importante de renovação da sua utensilhagem técnica.
Malangatana, que se afirmou mestre no espaço a duas dimensões de uma tela de pintura, aborda na Mabor uma modalidade artística onde a leitura se faz a 360 graus. A forte individualidade do artista manifesta-se porém no facto de a concepção do trabalho continuar a ser a duas dimensões, o que produz um efeito peculiar, fazendo lembrar as criações de um certo período da arte faraónica.
As várias figuras erectas e isoladas que aparecem voltadas para Sul, em fila indiana, são como que o enunciado do tema. A saga dos Mabvaia é desenvolvida nos paineis que aparecem na base do complexo escultórico.

Malangatana já tinha feito murais, quer no país como no estrangeiro. Porém, nesses murais, o tratamento e a execução não diferiam dos da pintura. Na Mabor, os paineis inauguram um híbrido de pintura e escultura, mais próximo do baixo relevo.
Foi o filão técnico introduzido por aqueles paineis que Malangatana passou a explorar nos trabalhos seguintes: no mural das TDM, de 90 metros de cumprimento por 4 de altura e no mural da UNICEF, com 15 metros de cumprimento por 3 de altura.
A composição destes murais é tão trabalhosa quão engenhosa. Malangatana esculpe a sua história (todos os trabalhos de Malangatana contam uma história) sobre o reboco ainda fresco da parede de suporte, utilizando uma espécie de raspadeira que ele próprio inventou. Como o cimento seca ràpidamente não há tempo para traçar um esboço. O processo é marcado por uma espontâneidade não isenta de tensão porque só se pode trabalhar por duas ou três horas de cada vez.

A execução de um pinel gigante é um verdadeiro acontecimento, para quem faz a sua vida na rua. Aparece gente para ver e encorajar o artista que trabalha lá no topo do andaime. As figuras que vão aparecendo são comentadas, o episódio que se está construindo ganha cá em baixo leituras diferentes, inflexões que surpreendem o próprio Mestre.
Com esta nova técnica, tão diferente da da pintura sobre tela e tão apropriada para o mural exterior, Malangatana sentiu que poderia sair mais vezes do estúdio para ir trabalhar junto às pessoas.

Sempre apoiado pelo pedreiro José Ntila que se ocupa da preparação dos muros ( ‘as fundações têm muito segredo’ – confidencia) Malangatana começou a espalhar os seus painéis pela Grande Maputo: Hospital de Benfica, Escola Primária da Unidade 18, EP2 de Mavalana, Hospital do Bairro Ferroviário (antigamente chamava-se Bairro Europeu, assim como o da Avenida de Angola era o Bairro Indígena, lembram-se?).
E foi mais longe, sempre subindo a Estrada Nacional Nº1: executou vários painéis no Centro Cultural de Matalana, naturalmente, e já este ano, um na Escola Primária de Bovole.

O que é que leva Malangatana a embarcar, aos 70 anos, nesta cruzada que tanto exige do seu tempo e ao seu físico?

Tirando a meia dúzia de quadros que em todo este país podemos ver em locais públicos, a obra de Malangatana é domínio exclusivo de um mundo restrito onde se movem especialistas, coleccionadores, marchands de art, empresas e investidores. Malangatana é uma das figuras nacionais mais reconhecidas mas poucos moçambicanos realmente conhecem o que lhe dá a fama.
Recordemos que no ainda recente passado colonial deste país as exposições de pintura ocorriam exclusivamente nas chamadas zonas de cimento das grandes cidades. A pintura sobre tela ou sobre suporte amovível é uma forma de arte estranha à nossa tradição.

Hoje as exposições de arte são também assunto para estudantes, para jovens quadros do Estado e da actividade privada, para praticantes de profissões liberais, para nascente classe média. Mas sempre acabam por interpelar, de maneira mais específica, um reduzido núcleo de iniciados.
O povo (como, por exemplo, os antigos vizinhos de Malangatana no bairro de Tlhavana, perto da cantina do Mendes, lá do outro lado da antiga lagoa da Munhana) ainda não vai às esposições de arte. Nem aos museus e galerias.

O grande acontecimento que foi a primeira individual de Malangatana, em 1961, iniciou um processo consagratório que, em relação ao moçambicano comum, em relação àqueles que culturalmente se podem rever na arte de Malangatana, actua de fora para dentro. Nada de estranho: é o eterno problema destinatários versus interlocutores que, de uma maneira geral, afecta todas as formas aculturadas de criação intelectual, em Africa. E não só. O artista, que tem a vocação de ser griot, acaba por ser festejado como intérprete porque a linguagem que utiliza, històricamente, pertence ao outro.

Isto não diminui o possível valor intrinseco do trabalho produzido nem deve necessàriamente fazer questionar o grau de representatividade do seu autor.
A criação é um acto eminentemente individual, mas numa arte como a de Malangatana, que é marcada por um forte gregarismo e um sentido comunal, coloca-se forçosamente o problema da recepção. E Malangatana, que se alimenta da riqueza das tradições em que se criou, não está disposto a cumprir o destino desse herói trágico de outra mitologia que perdeu a sua força quando o levantaram para o espaço, separando-o da Terra, sua mãe.

Malangatana explorou, enquanto crescia como artista, todas as formas alternativas de intervenção que se lhe ofereceram. Se calhar a própria actividade nacionalista que o levou às masmorras da PIDE não terá deixado de constituir, em certa medida, uma outra forma de fidelidade às raizes antropológicas da sua arte.
Antes dos murais foram as tentativas de teatro, os grupos de dança, a música coral.

Em Matalana, sob a sombra tutelar da figura de Tobias Maxiana, também foi a liderança comunitária, a criação de escolas, a incursão pelas áreas da história e da linguística. Em Nampula, quando trabalhou em aldeias comunais foi a curiosidade atenta por questões de etnologia e e sociologia.
De forma mais persistente, talvez porque era uma experiência mais próxima do seu munus artístico, Malangatana animou durante 11 anos a Escolinha Vamos Brincar, de Ivone Mahumana. A escolinha funcionava durante os fins de semana, ao ar livre, junto à sua casa do Bairro (‘Clandestino’!) do Aeroporto. Quantos artistas não terão nascido dessa experiência interessantíssima em que as crianças, guiadas pelo Mestre, desenhavam no chão com areia de cores diferentes, paus, pedrinhas e outros materiais recuperados!

Com os seus murais Malangatana retoma finalmente a postura de artista popular, cumprindo aquilo que, talvez ainda sem plena consciência do significado do seu gesto, ele se proclamou ao pintar nas paredes da sua casa de Tlhavana os gritos, as aparições, as figuras de névoa que um dia fariam famosos os seus quadros. Lia-se, num letreiro, junto à porta de entrada (cito de cor): Casa do Malangatana Goenha ou Valente, pintor, artista e poeta.

Hoje, são os 12 paineis em mármore branco de Estremoz (Portugal) e Pita Verde (Brasil) que aparecem pela primera vez nesta exposição de Malangatana e José Forjaz, que leva por ‘Pedra e Arquitectura’.
Espera o Mestre que desta vez a sua arte possa ir mais longe, pela EN1 acima, para preencher, um dia, todo esse Moçambique.
Já não será ele a negociar cada uma das paredes e locais onde criar os seus murais, pois os paineis poderão ser transportados para onde se entender apropriado – praça, escola, hospital, jardim, parede de fábrica, qualquer espaço que o povo frequente.

Na passagem do suporte moldável que é o cimento para o mármore a técnica sofreu outra evolução: houve que substituir a raspadeira por uma fresa ou uma rebarbadeira. Malangatana desenha sobre o mármore e dirige o processo de gravação que é realizado por Firmino Quefassi, um experimentado marmorista que o apoia. É complexo transmitir na superfície do mármore a ilusão de cor, o sentido de profundidade, as texturas tão próprios da pintura de Malangatana. Os problemas vão-se resolvendo à medida que surgem. É um aprendizado.
O Mestre insiste em que o mármore é apenas um suporte mais para o seu labor criativo e o que ele hoje vem mostrar é o resultado de uma aventura artística, um desafio que se impôs, uma possibilidade que quer prosseguir. Mas não podemos deixar de notar que a chegada de Malangatana ao branco perpétuo do mármore é a metáfora mais apropriada da perenidade da sua proposta artística.

Luis Bernardo Honwana