Dentro ou fora da ossatura estatal? Reflexões sobre a institucionalização dos movimentos negros brasileiros

Quais as possíveis consequências políticas quando um movimento social decide se institucionalizar? Quais seus ganhos, suas perdas a médio e longo prazos? Que tipos de reconfigurações sofrem? Suas demandas e práticas de atuação tornam-se mais eficazes ou não necessariamente? Um conjunto de questões podem ser levantadas em torno do que podemos designar como processo de institucionalização dos movimentos negros na sociedade brasileira a partir dos anos de 1980.

Quais as possíveis consequências políticas quando um movimento social decide se institucionalizar? Quais seus ganhos, suas perdas a médio e longo prazos? Que tipos de reconfigurações sofrem? Suas demandas e práticas de atuação tornam-se mais eficazes ou não necessariamente? Um conjunto de questões podem ser levantadas em torno do que podemos designar como processo de institucionalização dos movimentos negros na sociedade brasileira a partir dos anos de 1980.

Mas afinal, o que estamos chamando de movimentos negros? Definimos aqui movimentos negros como conjunto de organizações negras de variados tipos e escopos, cujo objetivo comum é o combate ao racismo e a discriminação racial por meio de práticas sociais, projetos pedagógicos, programas ou proposição de políticas públicas direcionadas a população negra ou segmentos desta (Santos, 2012). Neste sentido, organizações negras de cunho político, cultural, religioso são vistas por nós como movimentos negros, ainda que nem sempre atuem exclusivamente com viés de combater o racismo e a discriminação racial. Por outro lado, muitos ativistas negros atuam em diferentes espaços institucionais, em organizações não-governamentais, instituições estatais, fundações, organismos internacionais, escolas, universidades, sindicatos e partidos políticos. Para alguns analistas todo tipo de mobilização, sistemática ou não, que vise lutar contra o racismo pode ser considerado movimento negro, para outros tais práticas agregam valor a ideia de movimento negro sem com que os espaços de atuação sejam confundidos.

O processo de institucionalização dos movimentos negros a partir de conselhos de participação da comunidade negra a nível municipal e estadual até a criação de secretarias especiais e fundações no âmbito federal mostra que o hiato entre uma atuação fora dos canais institucionais e dentro dos canais institucionais apresenta uma série de dilemas que precisam ser problematizados. Institucionalizar um movimento social não significa neutralizar reivindicações e demandas produzidas no espaço público, ainda que possa vir a limitar e/ou reconfigurar a relação destes atores institucionais frente a determinadas políticas públicas. Por outro lado, sempre haverá um segmento de um determinado movimento social que resiste ou rejeita ser institucionalizado a fim de manter sua identidade política como ação coletiva contra o Estado e/ou por oposição a este.

A institucionalização dos movimentos negros não segue uma trajetória linear no tempo e no espaço, isenta de rupturas, contradições, desvios, reconstruções e reposicionamentos programáticos. E o mais importante: não é algo finalizado. Por esta razão, é preciso sublinhar a ideia de processo como algo dinâmico, que sofre modificações com o tempo e é suscetível as variações políticas de um dado contexto.
Os movimentos negros expressam bem este dilema a medida que as tensões existentes nas organizações negras frente ao
dilema da institucionalização continua fortemente presente nos discursos e falas dos militantes. Para alguns é uma contradição falar de “movimento negro” propriamente dito que atue dentro da ossatura institucional do Estado, seja em âmbito municipal, estadual ou federal. Para outros é o contrário. Atuar a partir das instituições do Estado ou por dentro da esfera estatal expressa exatamente os avanços e possibilidades reais de construir uma plataforma de ações e políticas de promoção da igualdade racial. Para outros ainda, movimentos negros podem ser vistos dentro e fora da esfera institucional simultaneamente, contanto que existam elementos que configurem sentido a ideia de atuação política de um segmento específico organizado como movimento social.

Diferentemente da ideia clássica de movimento social que colocava em lados opostos Estado e sociedade civil, atualmente é comum que as organizações atuem em diálogo e parceria com as instituições estatais ou organismos internacionais. Neste sentido, por mais que não se observe uma institucionalização de um movimento social qualquer na esfera estatal como uma total incorporação as regras de funcionamento do Estado, nota-se que as organizações da sociedade civil estruturam-se a partir de apoios financeiros públicos, via editais ou incentivos diversos.
Os movimentos negros não são os únicos movimentos sociais que, estrategicamente, institicionalizaram suas demandas. Secretarias de políticas para mulheres, homossexuais (LGBTTS), ambientalistas, juventude, dentre outros, vivenciam experiências diversas de participação nas estruturas do Estado, seja em nível municipal, estadual ou federal. Entretanto, todos estes continuam a atuar simultaneamente na esfera pública, como movimento social, e na esfera estatal, na condição de governo, influenciando e/ou construindo políticas públicas direcionadas aos seus grupos específicos.

As primeiras experiências de institucionalização do protesto negro

Refletir sobre o processo de institucionalização dos movimentos negros pressupõe reconhecer parte da história política deste movimento social desde pelo menos o início do século XX. Organizações e/ou agenciamentos de negros(as) existem desde o período anterior a abolição da escravatura, em 1888. Irmandades religiosas, formação de quilombos e de grupos de variados tipos criados para resistir a escravidão compõem a complexa história de resistência negra em nosso país. Entretanto, verifica-se no início do século XX a criação de organizações negras de cunho expressamente políticos, como a Frente Negra Brasileira, a União dos Homens de Cor e o Teatro Experimental do Negro (Ferreira, 2005). De uma forma ou de outra, estas organizações assumiram agenciar questões de ordem político-social que diziam respeito a população negra, do mesmo modo que souberam dialogar em torno do combate a discriminação racial.

As demandas e reivindicações das organizações negras deste período geralmente esbarravam na blindagem representada pelo “mito da democracia racial”, mecanismo institucional de negação das práticas racistas comuns na sociedade brasileira desde então. Neste sentido, não havia qualquer possibilidade de institucionalizar o incipiente movimento negro existente, tampouco interesse por parte de suas lideranças. O que se pleiteava era que o poder público criasse mecanismos de mobilidade social e leis especiais de proteção aos negros – social e economicamente fragilizados no pós-abolição.
O surgimento de órgãos criados junto ao poder público voltados especificamente à defesa dos interesses da população negra como o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, a Secretaria Extraordinária para Defesa e Promoção das Populações Afro-brasileiras do Rio de Janeiro (Sedepron/Seafro), a Fundação Cultural Palmares, o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e todas as secretarias estaduais de promoção da igualdade racial constituem exemplos concretos do que podemos chamar de “institucionalização dos movimentos negros”nos últimos 20 anos.

Criado durante o governo Franco Montoro (1983-1987), o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo foi o primeiro órgão do poder público encarregado de construir políticas públicas de combate ao racismo (Santos, 2001). Seu principal articulador e idealizador, Ivair dos Santos relata que a idéia da secretaria surgiu quando foi convidado para trabalhar na Secretaria de Assuntos Políticos do governo Franco Montoro (PMDB) em 1983. Recém retornado de Angola, onde trabalhou por alguns anos, notou - sem muito espanto - que praticamente não havia negros na composição de governo, com exceção de Hélio Santos, que trabalhava no cerimonial. Ivair dos Santos ao observar a existência do Conselho da Condição Feminina avaliou que havia espaço para a atuação de outras “minorias”. Imediatamente pensou: “Por que não criar um conselho do negro ?” Convidou Hélio Santos e mais outros colegas ativistas e propuseram ao governador Montoro a criação de um conselho específico do negro. O que foi feito no dia 11 de maio de 1983.

De acordo com o depoimento de Ivair dos Santos para o livro “Histórias do Movimento Negro no Brasil”, o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra não surgiu por uma demanda específica do “movimento negro”. Muitos militantes entendiam à época que qualquer iniciativa tomada pelo poder público neste sentido sinalizaria cooptação do movimento . Carlos Alberto Medeiros, experiente militante negro e ex-chefe de gabinete da Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção da População Negra (Sedepron) no início dos anos 90, declarou que

“Havia muita desconfiança, no início, em relação às primeiras articulações do movimento negro com o Estado. Até um determinado momento havia muita suspeita de cooptação: “Vão levar os caras para neutralizar o movimento”. Na Sedepron, no Rio, durante o governo Brizola, nós não conseguimos avançar muito, nós apanhamos da máquina do Estado ”.

Anos mais tarde houve uma acelerada mudança de percepção e orientação da militância neste sentido. Muitas organizações negras e ativistas ligados ao governo federal, estadual e municipal irão demandar exatamente uma resposta mais pragmática e institucional ao problema das desigualdades raciais, ainda que alguns segmentos preferissem uma postura de constante crítica e denúncia do racismo estrutural. Outro aspecto fundamental é que as relações com o aparato estatal atendem a determinados requisitos que podem ser descritos nos seguintes itens: a) atuação de ativistas negros, geralmente independentes, sejam estes funcionários públicos ou com mandatos parlamentares; b) algum tipo de experiência com a máquina burocrática; c) percepção de aberturas institucionais ou de oportunidades políticas surgidas da relação movimento social/Estado. Tais caracterizações ajudam também a entender os papéis desempenhados tanto por indivíduos quanto por instituições em processos decisórios. Em outros termos, a gênese de muitas iniciativas no âmbito governamental características do que chamamos aqui de institucionalização dos movimentos negros, ocorrem a partir do protagonismo individual, por meio da percepção, experiência profissional junto a burocracia estatal e oportunização de determinados ativistas negros ao atuar em espaços estratégicos do poder público.

Em termos gerais, tais órgãos e/ou instâncias de mediação são vistos por muitas lideranças negras como espaços importantes no sentido de dar suporte e auxílio na construção de políticas sociais de combate a discriminação racial. Após a experiência do conselho do negro em São Paulo, uma série de outras iniciativas foram desencadeadas a partir de modelos semelhantes no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, etc. Na realidade, em vários estados brasileiros é possível encontrar exemplos da simbiose entre demandas coletivas dos movimentos negros incorporadas pelo e no poder público. O ponto central a observar é que tais instâncias funcionam desde dentro da institucionalidade estatal, a partir de determinadas oportunidades políticas específicas, da conjuntura nacional e da percepção e capacidade técnico-burocrático de ativistas negros ligados ou não a organizações negras.

A noção de institucionalização pode levar a leituras equivocadas e apressadas, caso interpretemos isso simplesmente como um deslocamento da ação coletiva dos movimentos sociais para dentro da esfera estatal. Na realidade, este é um processo cuja maturação atravessa décadas de atuação e provoca um sem número de transformações internas na relação do movimento social com os aparatos estatais e com o conjunto da sociedade civil. O caráter multifacetado e descentralizado característico dos movimentos negros, em momentos diversos da história brasileira e, em especial após os anos 70, permitiram uma interação mais orgânica com as instituições estatais e com governos específicos. Determinados governos manifestaram posturas e aberturas diferenciadas para as agendas raciais apresentadas pelos movimentos negros. Além do já citado PMDB, a experiência do SEDEPRON/SEAFRO no Rio de Janeiro também expressa isso. Criada no segundo governo de Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), esta secretaria extraordinária funcionou de 1991 a 1994 sob a coordenação do ex-senador Abdias do Nascimento. No caso do PDT já havia uma relação minimamente consolidada entre o partido e parte da militância negra do Rio de Janeiro. No início dos anos 80, quando Abdias e Brizola voltam do exílio, é criado o PDT e Abdias funda a Secretaria do Movimento Negro neste partido.

Em linhas gerais, tais aberturas ou graus de dificuldades na relação movimentos negros e governo pode ser interpretado a partir de uma série de fatores, tais como: coligações partidárias; inserção da temática racial nos programas de governo específicos; arranjos institucionais entre organizações negras e lideranças partidárias; conjuntura internacional e; principalmente, nível de flexibilidade da ideologia da democracia racial. Este último item pode ser melhor entendido em três momentos da história dos movimentos negros recentes: 1) período que vai do final dos anos 70 até meados de 1993 e 1994; 2) de 1995 até 2002, quando durante o governo de Fernando Henrique Cardoso têm-se o reconhecimento do racismo e da discriminação racial como fatos concretos da realidade brasileira e 3) de 2003 até a atualidade, quando se observa uma certa consolidação de “políticas de promoção da igualdade racial” expressas pela introdução de políticas de ação afirmativa em universidades públicas, pela aprovação de lei que estabelece o ensino de história da África e da cultura afro-brasilera e uma série de outros programas durante os governos dos presidentes Luís Ignácio Lula da Silva e Dilma Roussef, ambos do Partido dos Trabalhadores.

Durante a primeira fase o não reconhecimento do racismo e da discriminação racial enquanto estruturas mantenedoras da ordem racial – cuja tradução é a permanência da desigualdade racial a partir da inércia estatal neste campo – dificultava imensamente o processo de negociação entre os movimentos negros e representantes estatais. Além do mais, do ponto de vista da organização política dos movimentos negros, em especial quando da formação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, o que estava em pauta era denunciar a existência do racismo e da discriminação racial como fatos concretos no dia a dia da população negra. Este caráter denuncista também vinha acompanhado dos primeiros esboços de políticas públicas de combate ao racismo, porém de maneira ainda muito incipiente e inorgânica. Ao mesmo tempo, havia por parte do MNU um projeto de modificação do ordenamento social visto a partir da dinâmica da política negra. Os desgastes internos da ditadura militar e uma crescente mobilização da sociedade civil em torno da redemocratização ajudaram na flexibilização destas novas demandas, o que não significou o fim da repressão política contra ativistas negros , tampouco a aceitação da agenda racial que os movimentos negros estavam desenvolvendo naquele momento.

Por outro lado, tais relações não devem ser vistas somente em chave positiva, como se representasse um avanço nas demandas do movimento social. Uma das implicações da institucionalização dos movimentos negros foram os possíveis atrelamentos políticos da ação coletiva deste segmento e as diversas relações de dependência resultantes deste processo. Uma característica comum a todas as experiências passadas e presentes de conselhos, secretarias especiais e outros órgãos governamentais ou estatais voltados à população negra é a discrepância entre a implementação das políticas propostas e o orçamento disponível.

Por outro lado, este fenômeno é aparentemente contraditório com as noções clássicas de movimento social. Por exemplo, David Snow et al define movimento social como

“coletividades agindo com certo grau de organização e continuidade fora dos canais institucionais ou organizacionais com o propósito de desafiar ou defender a autoridade existente, se é institucionalmente ou culturalmente baseada, no grupo, organização, sociedade, cultura ou ordem mundial, de que são uma parte” . p. 11 (grifo nosso)

O caráter de “fora dos canais institucionais” ou mesmo contra os poderes instituídos é o que caracteriza a ação coletiva. No entanto, no caso dos movimentos negros temos exemplos de atuações de parlamentares que buscaram defender e aproveitar este espaço em prol da população negra. O caso mais notório disso é a trajetória de Abdias do Nascimento pelo Senado Federal. Além de realizar várias ações explícitas em defesa da população negra, Abdias do Nascimento foi o primeiro a propor o que até então designava por “políticas compensatórias”, sinônimo para o que agora conhecemos como políticas de ação afirmativa. Benedita da Silva também exemplifica o caso do uso da máquina burocrática em defesa dos negros. Mais recentemente temos o caso do senador Paulo Paim, o proponente do Estatuto da Igualdade Racial que, em inúmeras ocasiões emprestou seu mandato em defesa de políticas para a população negra.

A institucionalização dos movimentos negros é, ao mesmo tempo, resultado dos esforços da militância negra em fazer com que os poderes estatais reconheçam a existência do racismo institucional e da discriminação racial e a expressão de mudanças das formas organizativas presente no movimento. Não há um consenso entre as organizações negras quanto a este processo. Tampouco instâncias como a Fundação Cultural Palmares – FCP e Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR são vistas exatamente como “movimento negro” por alguns militantes. O fato é que este processo de institucionalização representa uma fase marcante dos movimentos negros contemporâneos e aponta simultaneamente para transformações presentes no próprio Estado desde a redemocratização do final dos anos de 1980 até os dias atuais. Isso não significa dizer que as conjunturas políticas dos últimos 15 ou 20 anos representem avanços em todos os campos ou que tenham representado necessariamente benefícios para a população negra. O avanço das políticas de tipo neoliberal, especialmente a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, retardou uma série de conquistas sociais e econômicas importantes, além de aumentar os índices de pobreza e indigência em todo o país. Dentre os mais afetados estão os negros, já que massivamente encontram-se na base social.

Institucionalização dos movimentos negros como racialização da sociedade brasileira

Os novos ideólogos da democracia racial apontam para o fenômeno da institucionalização dos movimentos negros como um perigoso processo de racialização da sociedade brasileira. Afirmam que é um retrocesso histórico o fato de que um Estado permita e mesmo incentive políticas sociais com base na identidade racial. Para estes, a institucionalização e a racialização são resultantes do lobby político feito por lideranças negras nos aparatos estatais e de uma “agenda racial” importada dos Estados Unidos, especialmente por meio do apoio da Fundação Ford a organizações negras ao longo de mais de duas décadas de atuação no país (FRY 2005, MAIO & MONTEIRO 2004).

A nova ideologia da democracia racial, diferentemente do modelo da ideologia anterior, não nega por completo a existência do racismo e da discriminação racial como fatores que operam contra o processo de mobilidade dos negros. Entretanto, enfatizam que no Brasil o verdadeiro problema é de desigualdade social, ou seja, é um problema de natureza classista e não de natureza racial. Portanto, bastariam políticas sociais visando os mais pobres para minorar as desigualdades enfretadas pelos negros. Estudos e análises de institutos de reconhecida competência acadêmica, como Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada – IPEA, mostram que a assertiva acima não se sustenta. Na realidade, as desigualdades econômicas continuam a apresentar um forte viés racial na reprodução da pobreza, reservando os piores índices sociais para os negros – pretos e pardos – em detrimento de brancos. No entanto, é preciso combinar políticas sociais e econômicas universalistas e focalizadas para que se obtenha resultados satisfatórios.

Para os novos ideólogos da democracia racial, a racialização das políticas públicas e sociais é uma importação de modelos exógenos a nossa realidade, especialmente de países como os Estados Unidos. Apesar da institucionalização dos movimentos negros na esfera federal como a exemplo da SEPPIR, não há um consenso entre parlamentares e líderes políticos e partidários em torno da importância de se estabelecer políticas de promoção da igualdade racial. Pelo contrário! A dimensão racial na construção de políticas públicas é frequentemente ignorada e/ou secundarizada, apesar de uma miríade de dados que comprobatórios das desigualdades raciais.

Em termos conclusivos, é possível afirmar que o processo de institucionalização dos movimentos negros apresentam resultados positivos e negativos. Os positivos têm a ver com o fato de que o “protesto negro” chegou a um patamar institucional dificilmente imaginado pelos militantes no início dos anos de 1980. Conferências, seminários, acordos bilaterais, parcerias, reuniões de trabalho sobre formas de reduzir desigualdades raciais e proposição de políticas públicas com corte racial nunca foram tão comuns quanto nos últimos anos. Não há dúvida de que uma “agenda racial” proposta pelos movimentos negros foi incorporada na estrutura estatal, em todos os níveis, ainda que com contradições e resistências. Do ponto de vista negativo, a institucionalização tem produzido uma certa paralisia movimentalista da ação coletiva negra. Diferentemente de movimentos sociais emergentes ou ações políticas pontuais como os sem teto, estudantes universitários, determinadas categorias profissionais (professores estaduais e municipais, bancários, etc) e setores marginalizados e excluídos do mercado de trabalho, nos parece que os movimentos negros acostumaram-se a atuar muito mais na lógica da “parceria com o Estado”, fazendo concessões e aceitando as regras impostas pelo jogo político, do que “contra o Estado” ou nas fronteiras de tensão com os aparatos institucionais. A velha acusação de “cooptação” feita aos ativistas que aceitavam trabalhar em instituições estatais parece ter se transformado em lugar comum no cenário político atual. Não ser cooptado é o mesmo que não saber usufruir e aproveitar os espaços institucionais de atuação existentes.

Em suma, são hipóteses que carecem de pesquisas empíricas e qualitativas, bem como de comparações com outras realidades nacionais a fim de entender tendências, dilemas e novas configurações dos movimentos negros brasileiros na atualidade.

Referências:

ALBERTI, Verena & PEREIRA, Amilcar (Orgs.). Histórias do Movimento Negro: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro : Pallas; CPDOC-FGV, 2007.
DAVID, S, SARAH, S, and HANSPETER K (eds.) Mapping the Terrain. In.: The Blackwell companion to social movements. Malden, MA : Blackwell Pub., 2004.
FERREIRA, Maria Cláudia C. Representações Sociais e Práticas Políticas do Movimento Negro Paulistano: as trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos (1928-1937). Dissertação de Mestrado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2005.
KOSSLING, Karin S. As Lutas Anti-Racistas de Afro-descendentes sob a Vigilância do DEOPS/SP (1964-1983) (Dissertação de mestrado em história, USP), 2007.
SANTOS, Ivair Augusto A. O Movimento Negro e o Estado: o caso do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Governo de São Paulo (1983-1987). Dissertação de mestrado. Departamento de Sociologia. UNICAMP, 2001.
SANTOS, Marcio André. Políticas Raciais Comparadas: movimentos negros e Estado no Brasil e Colômbia (1991-2006). (Tese de Doutorado em Ciência Política, IESP-UERJ), 2012.

*Márcio André Oliveira é docente da Universidade Federal do Piauí; Maria Cláudia é intelectual pesquisadora em estudos afro-brasileiros.

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