Transparência longe de ser realidade

O economista e investigador Carlos Nuno Castel Branco considera que a Iniciativa de Transparência da Indústria Extractiva (ITIE) ainda está muito longe de ser uma realidade em Moçambique, tanto do ponto de vista institucional, onde não é mais do que embrionária, quanto do ponto de vista de foco temático, onde há um grande conflito da sua abrangência. Falando semana passada no lançamento do relatório sobre os desafios da indústria extractiva em Moçambique, encomendado pelo Centro de Integridade Pública (CIP), Castel Branco descreveu o papel da ITIE como sendo uma oportunidade para atacar problemas relacionados com o acesso à informação detalhada e ao conflito de interesses que caracterizam o sector no país.

Para o economista, o conflito sobre a abrangência é tanto em termos sectoriais, mais concretamente no que diz respeito à inclusão de todos os recursos naturais, designadamente minerais, florestais, marinhos, água, terra; quanto em termos temáticos, no que diz respeito à transparência somente sobre o que é pago e recebido, ou também sobre o que deveria ser pago, os contratos, a produção, as vendas, os preços, os lucros, os conflitos de interesse, o impacto ambiental, as relações laborais, o impacto comunitário, a análise social do custo de oportunidades e do custo-benefício de cada projecto extractivo, entre outros.
O relatório sobre os desafios da indústria extractiva em Moçambique é informativo e detalhado, apresentando histórias interessantes sobre o sector, apesar das grandes dificuldades em aceder à informação das empresas e do governo. Por essa razão, Castel Branco considera que o relatório deve ser lido e usado como uma plataforma para uma futura investigação mais aprofundada e completa sobre as diferentes questões que o relatório toca.

Em particular, o relatório descreve o que acontece com a indústria extractiva e com o seu peso crescente na economia, as ligações regionais e internacionais dessas indústrias e, por consequência, das poderosas com-panhias multinacionais nela envolvidas. Por outro lado, o relatório faz perguntas relevantes para o desenvolvimento do país numa perspectiva intergeracional e para a integração mais positiva da indústria extractiva nesse desenvolvimento.
Castel Branco considera uma mais valia o facto de o documento fornecer informação útil para a construção de agendas de política pública concretas e fundamentais, não só sobre a indústria extractiva, mas também sobre como utilizar a energia e dinâmicas desta indústria para gerar novas e mais diversificadas dinâmicas de desenvolvimento económico e social no país.

Rumo à prosperidade ou à maldição dos recursos?

Lançada pelo antigo Primeiro-Ministro britânico, Tony Blair, numa Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável Mundial realizada em Setembro de 2002, em Joanesburgo, a ITIE é uma iniciativa com suporte político da comunidade internacional e de organizações multilaterais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
Moçambique está, na verdade, a tornar-se um “novo-rico” em matéria de hidrocarbonetos, mas a abundância em recursos naturais, segundo o relatório do CIP, não é um passaporte automático para a prosperidade. Muitos países ricos em recursos naturais continuam extremamente pobres, apesar de terem já decorrido longos anos de exploração desses recursos.
Esta situação – abundância de recursos naturais em convivência estreita com um lento crescimento económico e extrema pobreza – é conhecida como o “paradoxo da abundância” ou, por outras palavras, a “maldição dos recursos”.
Sendo um novo-rico em hidrocarbonetos, o CIP questiona se Moçambique vai experimentar também o sabor amargo da maldição ou conseguirá obter a almejada bênção para a redução da pobreza.
O documento questiona, por outro lado, em que circunstâncias a exploração dos recursos naturais em Moçambique pode constituir mais uma ameaça ou uma bênção, assim como se o actual quadro regulatório e institucional é favorável a um cenário de transparência. Mais ainda, o CIP questiona até que ponto a actual exploração de recursos contribui para a riqueza do país, assim como até que ponto o país está preparado para ter um quadro de gestão transparente, onde as multinacionais pagam o que realmente devem, o governo colecta o que realmente deve colectar e utiliza as receitas para investir em projectos duradoiros que possam vir a beneficiar as gerações futuras.

Governo não tem escolha, senão abrir o jogo

Porque a Constituição da República decreta que os recursos naturais são do Estado, o que significa, por inerência, que são do Povo, Castel Branco conclui que o governo tem que ser aberto perante o Estado e perante o Povo no que diz respeito à prestação de contas sobre a gestão dos recursos naturais e benefícios resultantes para o país, assim como na discussão de políticas e opções e o enquadramento dos recursos naturais nas estratégias nacionais.

Por outro lado, o investigador destacou a necessidade de se clarificar os benefícios, tensões, conflitos e alternativas, tanto a nível nacional como local, assim como as implicações intergeracionais das várias opções e contratos.

“Esta abertura ainda não acontece e é duvidoso se existe clareza e base objectiva para que aconteça. De todo o modo, o governo não tem escolha entre ser ou não aberto, pois a escolha não lhe pertence, dado que os recursos que o governo está a gerir pertencem ao Estado e, por isso, ao Povo e não ao governo do dia”, elucidou aquele economista.
Mesmo assim, Castel Branco adiantou que cabe à sociedade exigir do governo e, se necessário, impor ao governo a abertura e transparência necessárias. Acrescentou que cabe ao governo exigir das empresas, e impor-lhes, se necessário, a transparência e respeito pela boa governação que a sociedade quer ter.
“Mas não podemos continuar a aceitar que os recursos estratégicos e públicos deste país sejam geridos como bens privados de acordo com os interesses individuais das companhias multinacionais e seus aliados nacionais”, ponderou em última análise.

Elite política e conflito de interesses

No que concerne à problemática dos conflitos de interesses no exercício da responsabilidade pública, o relatório, assinado pelo pesquisador Thomas Selemane, denuncia que o envolvimento directo e pessoal da elite política, designadamente antigos e actuais governantes de vários escalões, com destaque para os do topo, onde têm grandes interesses na indústria extractiva, sem que deixem de pertencer à elite política e de exercer influência directa nas decisões de política, cria um conflito aberto entre o exercício de responsabilidade pública e os interesses privados desses mesmos governantes.
A questão de fundo, segundo Castel Branco, não é se o cidadão A ou B pode ou não ser sócio de empresas extractivas, pois, para todos os efeitos, a Constituição da República protege a propriedade privada. A questão de fundo é que o servidor público, seja ele presidente, ministro, governador, director nacional, entre outros, durante o exercício das suas funções governativas, se torna igualmente sócio, accionista ou proprietário de empreendimentos privados; ou o cidadão A ou B, findo o seu mandato público, se mantém activo exercendo influência sobre a rede de decisores políticos em linha com os seus interesses privados. “Esta promiscuidade entre a responsabilidade pública e os interesses privados inevitavelmente abre as portas ao mercado de influências, corrupção, descredibilização das instituições públicas”, asseverou a fonte académica.

Frequentemente, argumenta-se que o ministro, ou outro servidor público, também é cidadão, e que, como tal, também tem direito a ser empresário. Para o economista Castel Branco, o ponto é que o servidor público não é um cidadão qualquer, pois este cidadão é autoridade pública e social, produz, impõe e faz cumprir leis, regras, políticas e outras decisões que afectam o bem-estar social.
Castel Branco vai mais longe ao questionar que se tal cidadão se comprometer com interesses privados durante o exercício da sua função de servidor público, como é que vai estar em condições de servir a sociedade como um todo independentemente dos seus interesses privados. De que modo, e com que isenção e credibilidade, pode o governo discutir e aprovar a estratégia para o investimento estrangeiro e a política fiscal e incentivos aplicados sobre esse investimento se os membros desse governo forem igualmente accionistas em parceria com os investidores sobre os quais as tais estratégias, políticas e incentivos se aplicam? A que pressões sociais tal governo dará mais relevância – às que vêm dos interesses representados pelos investidores de quem os membros do governo são sócios, ou às dos outros grupos sociais (incluindo outros empresários e empresas com outros interesses e sem sociedade com elites políticas)? “Ninguém impede o cidadão A ou B de ser empresário. Mas também ninguém obriga o cidadão A ou B a ser governante do erário público. O que deve ser impedido é que esse cidadão seja, simultaneamente, um empresário e um decisor político e servidor público”, concluiu a mesma fonte.

*Armando Nenane é articulista do jornal moçambicano Savana, onde este artigo foi publicado originalmente

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