"Normalmente, a saída encontra-se onde estava a entrada”, diz Stanislav Jerzy Lec, meu companheiro na tentativa de tornar intelegível o político em Moçambique. Alguns destes aforismos não encaixam lá muito bem, mas já é tarde para mudar da forma de bater, como se diz em xangan. Comecei assim, vou terminar assim mesmo. Xangan conservador, mas moçambicano moderno. Também não encaixa, mas pouco importa. Vamos, então, ao que interessa. Neste semestre vou dar a cadeira de sociologia urbana com enfoque especial para os processos de urbanização em África. Uma coisa interessante que constato nas leituras que faço é o papel da cidade na estruturação do político na Europa. Existe, a este propósito, uma reflexão muito interessante feita por Max Weber sobre o papel da cidade no desenvolvimento do capitalismo e que, mais tarde, ainda que de forma indirecta, foi recuperada por Jürgen Habermas para discer sobre a transformação estrutural do espaço público. Outro grande percursor da sociologia urbana foi Georg Simmel – um abraço aqui aos estudantes do primeiro ano de sociologia do ISCTEM – que se debruçou especificamente sobre as formas de sociação em meio urbano.
Faço referência a estas coisas para chamar a vossa atenção para o interesse que teria uma análise da constituição dos nossos espaços sociais na reflexão sobre o político. É que acho que a história das nossas cidadades – a cidade de Xai-Xai acaba de celebrar mais um aniversário (e pergunto-me se as autoridades lá percebem o alcance disso; digo isto porque neste momento a cidade está a braços com um problema sério de remoção de resíduos sólidos, vulgo lixo, que ao estilo moçambicano, incentiva o espírito empreendedor de algumas pessoas. É assim: o lixo é recolhido só na parte de cimento até um certo ponto que, no bairro 11 da cidade, termina na casa de um dos vereadores; depois disso é a selva; as pessoas juntam o lixo e procuram por uma vala onde há pessoas que ao preço de 10 meticais esvaziam os sacos...) – seria interessante, voltei ao assunto da história das nossas cidades, do ponto de vista de saber que papel desempenharam na constituição da nossa cultura política.
E aqui manifesta-se um dos mais pesados fardos do legado colonial. Penso ser importante evitar aquilo que Mahmood Mamdani, um intelectual ugandês, chama de “história por analogia” na análise das coisas africanas. Neste caso, a referência seria à tendência que alguns de nós teríamos de tentar explicar os problemas da nossa esfera política com base no facto de o desenvolvimento da urbanização não ter sido idêntico ao europeu. Este reparo não nos impede, obviamente, de procurarmos nesse desenvolvimento subsídios que nos ajudem a dar sentido à nossa esfera política. Acho, por exemplo, que a forma como os africanos foram integrados na vida urbana influenciou bastante a cultura política que se desenvolveu a partir de então. Na verdade, nessas urbes – e por força do poder fascista instaurado – nunca fomos integrados como verdadeiros cidadãos, isto é como membros de uma comunidade política com direitos e obrigações que nos definiam como tal e tornavam esses espaços parte da nossa condição. A nossa relação com estas aglomerações foi sempre uma relação distante e de difícil tradução ao nível de responsabilidade política. Não me admira muito que se sintam mais à vontade com a municipalização minorias que já no tempo colonial tinham uma certa participação na gestão da coisa pública. Este tipo de coisas precisa de tradição e aprendizagem.
Portanto, o período colonial produziu citadinos, mas nunca cidadãos. É verdade que a condição de citadino levou muitos a procurarem ser cidadãos – luta pela auto-determinação – mas para azar nosso os compatriotas que se meteram nessa aventura travaram também conhecimento com correntes políticas que lhes ensinaram a ter desprezo pela cidadania. Voltaram do mato com a ideia de que só eles é que podiam definir os termos da nossa cidadania. E nessa ideia de cidadania nunca houve espaço para a responsabilidade individual e para a prerrogativa de sermos nós a dizer a quem nos dá as ordens em que condições nos deve dar ordens. A guerra dos 16 anos veio piorar esse quadro ainda mais com a convicção de que a violência gratuita compensa aliada à credulidade com que muitos dos nossos observadores políticos aceitaram as credenciais democráticas de quem simplesmente as proclamou e a competência militar de quem não foi vencido por um dos piores exércitos do mundo.
Entretanto, no meio rural assistiu-se durante o período colonial a uma errosão gradual da autoridade, esvaziando as formas de exercício de poder de todo o controlo interno e colocando a fonte da sua legitimidade num poder externo, distante e rapinoso. A má educação que caracteriza o comportamento de muita gente em meio urbano em Moçambique – comportamento no trâfego, em repartições públicas, etc. – pode estar ligada a esta errosão de autoridade que privou o moçambicano de estruturas fortes e sólidas de socialização para a vida em sociedade. Mais uma vez, a violência militar fez também das suas para aprofundar esta crise. Não nos esqueçamos, como aliás bem observou Christian Géffray, o malogrado antropólogo francês que estudou a guerra em Nampula, que o entusiasmo revelado pelos guerrilheiros da Renamo nas suas acções de violência não estava desligado do facto de se tratar de jovens de origem rural que queriam dar uma licção aos mais velhos e aos urbanos.
Os espaços que se foram constituíndo no nosso país merecem estudos mais aprofundados para começarmos a perceber o político. Nem tudo precisa, naturalmente, de ser caracterizado de forma negativa. As igrejas protestantes do estilo da presbiteriana, metodista, baptista, anglicana, wesleyana, por exemplo, foram sempre espaços importantes de constituição de espaços de responsabilidade individual com valor interessante para a promoção da cidadania. Severino Ngoenha já observou, e com muita razão, que a existência destes espaços foi prepodenrante para a transição democrática no país, muito mais do que as aulas de educação cívica que foram sendo promovidas por fundações políticas estrangeiras. A Missão Suíça, por exemplo, nunca aceitava instalar pastor onde não houvesse capacidade local de o sustentar. Esta postura contrasta vivamente com a cultura de dependência que o nosso sistema político centralizado continua a promover com o apoio da indústria do desenvolvimento.
*Elísio Macamo é moçambicano, sociólogo e professor da Universidade de Bayreuth, Alemanha.
*Por favor envie comentários para [email][email protected] ou comente on-line em http://www.pambazuka.org