Somente a verdade

Está sempre na moda a produção daquelas representações deformadas e ilusionistas, cujo princípio fundamental é voltar as costas para a realidade. De um lado, William Bonner repete incansavelmente, ao longo de cerca de 250 páginas de seu livro, que “o objetivo do Jornal Nacional é mostrar aquilo que de mais importante aconteceu no Brasil e no mundo naquele dia, com isenção, pluralidade, clareza e correção” (Jornal Nacional – modo de fazer. Editora Globo, 2009).
De outro, o ministro da Seppir e negros do PT e do PC do B repetem em circuito nacional que o Estatuto da Igualdade Racial é a mais importante ferramenta para os negros alcançarem a igualdade real de oportunidades (ver, por exemplo, “Nabuco errou”, artigo publicado por Edson Santos em O Globo, 17.10.2009, p. 7).

A impostura na política, a negação e deformação sistemática da realidade, ganha enfim a contribuição de afro-brasileiros, ansiosos por alcançarem talvez as exigências de ‘relevância histórica’ que lhes permita a consideração benevolente do noticiário do Jornal Nacional. Segundo Bonner, a relevância histórica do fato assegura lugar no noticiário do JN. Tendo ao fundo uma perspectiva histórica que valorize a figura de Joaquim Nabuco, a coisa fica redonda.

O acordo que permitiu a aprovação do projeto esvaziado de Estatuto, com exclusivos fins político-eleitorais, tem duas dimensões, no artigo do ministro: (1) foi costurado entre todos os partidos; (2) foi firmado entre o governo, os partidos e a sociedade civil.

E a prova estaria circulando em cartazes confeccionados pela Seppir, nos quais lideranças negras, decididas a vestir a sunga vermelha do senador Suplicy, manifestam seu apoio ao projeto que “vai destruir a obra da escravidão”. De Suplicy se disse que o episódio desmerecia a imagem dele e a da instituição. Das lideranças negras se poderá, com razão, dizer o mesmo.

Quem assistia ao “Jornal Nacional” na noite do dia 31 de março de 1970, provavelmente viu e ouviu o general Médici (que falou nesse dia em cadeia nacional): “Este governo não fará o jogo de ninguém, mas apenas o próprio jogo. O jogo da verdade. O jogo limpo e claro da Revolução. O jogo do desenvolvimento nacional, o jogo da justiça social, jogo através do qual se fortalecerá na confiança e no apoio de toda a nação”.

O jogo agora é para engrupir negros – todos os partidos, o governo, a sociedade civil empunhando a ferramenta que vai destruir a obra da escravidão. Chega a comover o esforço dessa idealização para promover uma ampla comunidade, sem conflitos, sem que nenhum segmento usufrua dos privilégios racistas, comprometidos todos a não alcançar, está claro, nenhuma objetividade, nenhuma ação concreta.

A acentuada inadequação entre a propaganda e os fatos deve, no curto prazo, desmascarar os artifícios da retórica triunfante. Manipulações dessa grandeza, como se sabe, costumam ter prazo de validade muito exíguo.

Engrupir negros em praça pública, como se pretende fazer em Salvador no dia 20 de novembro, sugerindo uma encenação redentora, e supondo que falar de iniciativas abstratas para esconder o fato de que as iniciativas concretas foram suprimidas do Estatuto é um ato sem conseqüências – pode acabar mal.

É grave equívoco da classe política brasileira imaginar que, sempre que o assunto envolver negros, não haverá elementos suficientes para permitir a distinção entre verdade e mentira. Nos dias que se seguirem à aprovação do Estatuto sobrarão evidências da enorme distância que separa a retórica do ministro da Seppir e aliados da dura realidade vivida pela população negra. A celebração estéril prevista para Salvador tem mais afinidades com o 15 de novembro do que com o 20 de novembro.

O escritor Lima Barreto costumava dizer que a República não foi boa para os negros. Pense, reflita sobre esse aparente paradoxo para que você possa bem dimensionar o abismo de frustrações que se seguiu à Abolição e à proclamação da República. O governo federal, às vésperas da eleição de 2010, parece querer conspirar contra sua própria credibilidade. Estranho jogo esse.

*Edson Cardoso é jornalista e articulista do conceituado jornal Irohin

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