Será que em Moçambique existiu uma transição democrática completa?
O autor neste artigo procura responder à seguinte pergunta: será que em Moçambique a transição democrática foi completa? Será que temos uma democracia consolidada? Crise de separação dos poderes, Executivos, Legislativos e Judiciários; violação dos direitos humanos; violação das liberdades civis e políticas; o medo de represálias das instituições políticas e governamentais; repressões violentas nas manifestações são temas tratados pelo autor com vista a responder a sua pergunta de partida.
A sociedade moçambicana conheceu desde a década de 1990 uma transição política de uma sociedade não democrática para uma sociedade democrática. A transição democrática ocorreu, como um exemplo de democratização em África na década de 90 depois de um conflito armado civil que devastou o país durante cerca de quinze anos (PEREIRA, 2002). As negociações de paz intermediada pela igreja católica iniciaram-se em 1988.
Em 1989, o presidente Mugabe do Zimbábue e o do Quênia Moi, promoveram conversações entre os lideres da Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO) e da igreja católica em Nairóbi, dai resultando as condições delineadas para a intensificação do diálogo, começando assim o longo caminho para a transição democrática, com o fim da guerra civil.
Em Junho de 1990, a comunidade de Santo Egídio foi aceita, por ambas as partes, como mediadora e as negociações formais começaram em Roma. As conversações eram marcadas por constantes tensões entre o desejo pela transição democrática e a desconfiança mútua. A agenda para as negociações foi marcada para Maio de 1991 e tinha seis tópicos: a lei dos partidos políticos, o sistema eleitoral, assuntos militares, garantias para a RENAMO, o cessar-fogo e uma conferência de doadores. Gradualmente foi-se alcançando o consenso em cada um dos tópicos. No dia 4 de Outubro de 1992, em Roma, foi assinado o Acordo Geral da Paz (AGP) e em Outubro de 1994 foram realizadas as primeiras eleições multipartidárias (TOLLENAERE, 2006, p.3). Dezoito partidos políticos e doze candidatos presidenciais concorreram às eleições de 1994. Os partidos políticos eram AP, UNAMO, PT, FUMO-PCD, FRELIMO, SOL, PIMO, RENAMO, PRD, PACODE, PADEMO, PPPM, PCN e UD. Os candidatos presidenciais eram Joaquim A. Chissano, Afonso M. M. Dhlakama, Carlos A. dos Reis, Carlos J. M. Jeque, Casimiro M. Nhamitambo, Domingos A. M. Arouca, Jacob N. S. Sibindy, Mário F. C. Machele, Máximo D. J. Dias, Padimbe M. K. Andrea, Vasco C. M. Alfazema e Wheia M. Ribua (PEREIRA, 2008). O vencedor absoluto dessa eleição, foi a FRELIMO, com 129 é a RENAMO, com 112 dos 250 assentos na Assembléia Nacional e Joaquim Chissano foi eleito Presidente da República (BRITO, 1995).
Os moçambicanos participaram maciçamente nessa eleição multipartidárias, 87% dos eleitorados recenseados não havendo nenhum incidente. Ano pós anos, o processo de transição democrática foi acompanhado por modernização e por desdobramentos econômico-sociais, que apontavam para decisivas transformações como: superação da propriedade estatal na formação de associações civis, formação do mercado de trabalho livre, industrialização e urbanização, mudanças nas bases do poder político de que resultou a substituição do monopartidarismo pela forma de governo democrática, a instauração de um novo pacto constitucional que formalmente consagrava direitos civis e políticos e instituía um modelo liberal-democrático de poder político. Inspiradas pelo processo democrático em curso em algumas sociedades do mundo ocidental capitalista, essas transformações não foram assimiladas pelas práticas políticas e sequer pela sociedade. As garantias constitucionais e os direitos civis e políticos permaneceram, na prática tal como na forma de governo monopartidário e na teoria escritos na constituição.
Em Moçambique há um enorme gap entre o que está escrito na lei e a realidade brutal da aplicação da lei. A nova constituição, promulgada em 1990 e 2004, conseguiu incorporar muitos direitos individuais que foram violados sistematicamente no período não democrático. Os direitos à vida e a integridade pessoal foram reconhecidos. No entanto, apesar do reconhecimento formal desses direitos, a violência oficial continua.
A questão que gostaria de formular neste texto é a seguinte: será que em Moçambique a transição de uma sociedade não democrática para uma sociedade democrática foi completa? Será que temos uma democracia consolidada? Para responder a isso, que reputo uma questão difícil, é preciso dar uma vista d'olhos um dos conceitos de Juan J. Linz e Alfred Stepan que definiram a transição democrática como um grau suficiente de acordo alcançado quanto a procedimentos políticos visando obter um governo político; quando o governo chega ao poder como resultado direito do voto popular livre; quando esse governo tem, de fato a autoridade de gerar novas políticas; e quando os poderes Executivos, Legislativos e Judiciários, criados pela nova democracia, não têm que jure dividir o poder com outros organismos (1999, p.21).
Os autores vão mais longe ao afirmarem que uma democracia é consolidada quando: grande maioria de opinião pública mantém a crença nos procedimentos nas as instituições democráticas; em termos constitucionais, um regime democrático está consolidado quando tanto às forças governamentais quanto não-governamentais, sujeitam-se e habituam-se a resolução de conflitos dentro de leis. Procedimentos e instituições específicas sancionadas pelo novo processo democrático (LINZ; STEPAN, 1999, p.24).
Com essa definição operacional, vamos procurar responder as nossas indagações. Não obstante esse avanço democrático não se logrou a efetiva instauração do Estado de Direito. A pesquisa Nacional sobre governação e corrupção realizada em 2003, quase metade do número total de 2.500 inquiridos concordou ou concordou fortemente (47%) com a afirmação de que os tribunais são completamente dependentes do governo. Tantos os juízes como os procuradores entrevistados afirmaram receber chamadas telefônicas dos executivos durante os casos. Amplitude dos avanços registrados nestas matérias é algo questionável para a nossa democracia. Que tipo de democracia queremos?
O poder emergente da transição democrática conquistou o monopólio do "uso legítimo da violência física" (WEBER, 1970; ELIAS, 1987), fora dos limites da legalidade. Persistiram graves violações de direitos humanos, violação das liberdades civis e políticas; o medo de represálias das instituições políticas e governamentais; repressões violentas nas manifestações. Estes acontecimentos são produto de uma violência endêmica, radicada nas estruturas políticas, enraizada nos costumes da guerra civil e duma sociedade autoritária. O Open society foundation (2005) refere-se a esses acontecimentos como uma experiência política da continuidade autoritária. Essa continuidade manifesta quer no comportamento de grupos da sociedade civil, quer no dos agentes incumbidos de preservar a ordem pública. O controle legal da violência permaneceu aquém do desejado.
O problema é que instalar um governo eleito democraticamente não necessariamente significa que as instituições do Estado irão operar democraticamente. Por exemplo, parece que em Moçambique não existir uma liberalização das organizações da sociedade que possa implicar uma combinação de mudanças sociais e de diretrizes políticas, como menos censura por parte do governo; um espaço maior para a organização de atividades autônomas. O nosso país é uma sociedade que se baseia numa democracia sem cidadania.
As organizações da sociedade civil são formas que as pessoas têm de se organizar e se colocar como participantes ativos na sociedade. Tenta com isso, tornar-se algo mais que simples sujeitos passivos do processo social, a firmando-se, em alguma medida, como agentes e protagonistas de seus destinos – por mais modesta que essa atuação de fato seja. Como diz Elísio Macamo a nossa ordem política tem que devolver a responsabilidade ao indivíduo (MACAMO, 2006).
Várias organizações de sociedade civil têm sido conotadas como fazendo parte de uma ou outra força política (PEREIRA, 2002). Esta situação tem contribuído para elevar o índice de desconfiança dos cidadãos nestas organizações - sobretudo para denunciarem casos de violação de direitos humanos, de arbitrariedade e de abuso de poder, exigiram das autoridades públicas o cumprimento de suas funções constitucionais -, pouco se avançou no sentido do controle democrático da violação dos direitos humanos. Neste domínio, parece não ter havido efetiva desmobilização das forças repressivas comprometidas com o regime não democrático. Essas forças mantiveram-se presentes, acomodando-se ao contexto de transição política. Este breve painel permite clarificar que em Moçambique de fato não ocorreu uma transição democrática completa. Tudo indica que, no curso do processo de transição democrática, recrudesceu solução violenta dos conflitos sociais e de tensões nas relações intersubjetivas.
Segundo Linz e Stepan (1999, p33.) para que haja uma democracia consolidada deve ter cinco campos em interação: sociedade civil - liberdade de associação e comunicação; sociedade política - competição eleitoral livre e inclusiva; Estado de direito – constitucionalismo; aparato estatal – normas burocráticas racionais e legais; sociedade econômica – mercado institucionalizado.
Para falar como Elísio Macamo (2006) que do jeito que estamos e vamos à consolidação democrática será impossível. A nossa democracia é ainda deficiente para além de sério problema do subdesenvolvimento, de graves violações de direitos humanos que comprometem o mais elementar dos direitos, o direito à vida.
Esse painel deixa entrever que a nossa democracia tem caráter costumeiro, institucionalizado de um autoritarismo político que se revele com maior intensidade nos momentos de agudas crises de controle do poder político, por exemplo, os casos da violência eleitoral resultados das segundas eleições presidenciais e legislativas de 1999 foram fortemente contestados pela Coligação Renamo-União Eleitoral (RUE), considerados fraudulentos, não obstante a sua revalidação pelo Tribunal Supremo. No ano seguinte, a mesma Coligação organizou manifestações gerais em todo o país, que acabaram provocando confrontos com a polícia nas cidades da Beira (centro do país) e Montepuez. Resultaram em cerca de mais de uma centena de mortes na cidade de Montepuez, na Província nortenha de Cabo Delgado (MAZULA; MBILANA, 2003, p3). Gerou-se um clima de medo e instabilidade naquela cidade e certa tensão política em todo o país. Anícia Lalá e Andrea E Theimer (2003) demonstraram no seu estudo Como limpar as nódoas do processo democrático? Os desafios da transição e democratização em Moçambique (1990-2003), que a democracia em Moçambique esta longe de ser consolidada.
A incapacidade do judiciário de investigar e processarem os responsáveis desse acontecimento é o exemplo da incompetência do nosso sistema legal. O nosso sistema da justiça criminal não investigou e nem processou os presumíveis autores dessa violação dos direitos humanos. O resultado é que os responsáveis continuam impunes e cometem outras violações. A nossa democracia não consegue controlar o poder dos executivos e da polícia faz com que persistam as práticas abusivas dos direitos humanos. De modo geral, não se vislumbrou, ao longo de todo o processo democrático, uma efetiva vontade política no sentido de consolidar o poder judicial.
Como forma de dar inicio ao debate gostaría de afirmar que o nosso grande problema foi no primeiro passo do processo de transição democrático não termos debatidos quer nas negociações de paz, quer no parlamento e em outro forúm próprio a questão da desconcentração do poder do executivo em relação a outras esferas de poder. Para falar como Eduardo J. Sitoe, a nossa democracia é uma democracia que apanha boleia da paz que veio da guerra civil.
Talvez as afirmações de Bernhard Weimar, faz sentido para pensar a nossa transição democrática: (1) a nossa transição democrática veio de um acordo de paz, que definiu em termos estratégicos, o quadro geral do cessar-fogo da guerra civil; (2) a paz do partido no poder e seus governos consecutivos; (3) a paz da oposição para tratar dos assuntos de transformação de um movimento de guerra num partido político; (4) a paz relativa entre os beligerantes do acordo geral de paz na Assembléia da República; (5) a paz dos doadores; (6) a paz das comunidades rurais e dos camponeses e (7) a paz das comunidades religiosas. Isto tornou a nossa democracia ser redútivel a um simples questão de eleições de partidos partidos ou de presidentes.
Segundo Severino Ngoenha (1993, p.9), a democracia implica antes de mais o lugar que o povo tem de ocupar nas decisões dos problemas fundamentais que lhe dizem respeito e nos mecanismos jurídicos para que tenha um controle real sobre a realidade política, econômica, social e educativa. Esta afirmação esta associado a ideia da independência entre os três poderes Legislativo, Executivo e Judicial, por exemplo tão bem estudado por Larry Diamond (1997),de que uma democracia requer, para além da competição eleitoral regular, livre, justa e de sufrágio universal, a ausência de dependência entre os três poderes. O cientista político Samuel P. Huntington (1993), nos lembra que não existe consolidação democrática quando não há uma mudança de uma democracia eleitoral para uma democracia liberal, uma democracia que permitirá a alargar as estruturas do processo democrático.
Para falar como Elísio Macamo temos que ter a coragem de arriscar mais democracia. A insistência num poder central desmensurado como prerrogativa do estado parece irracional. O nosso estado não tem a capacidade de corresponder a tamanhas expectativas. E se não muda de concepção nunca, provavelmente, terá essa capacidade. A concentração do poder é uma cilada consciente na medida em que põe em perigo a soberania interna com a promoção duma relação patrimonial entre a sociedade e o estado (MACAMO, 2006).
Finalmente, sem demagogia, nem falso didatismo, espero que este artigo ofereça algo últil para a compreensão da história do nosso processo democrático. E que as críticas e polêmicas daí resultantes possam multiplicar, aceleradamente, a qualidade dos estudos exploratórios em torno do tema. Longe de esgotar a matéria, este artigo tenta apenas, descobrir algumas fronteiras de um terreno vastíssimo a ser trilhado.
Referências bibliográficas
BRITO, L. O comportamento eleitoral nas primeiras eleições. Mozambique: Elections, Democracy and Development. Maputo: Elo Grafico, 1995.
BRITO, L. Political polarization democracy derailed? Mozambique election
update 99, 4. South Africa: EISA, 1999.
DIAMOND, L. The end of the third wave and the global future of democracy. Vienna: Institute for advanced studes, political science. Series nº45, 1997.
ELIAS, N. Violence and civilization: the State monopoly of physical violence and its infringement. In: KEANE, J. (ed.). Civil society and the State. London: Verso, pp. 177-98, 1987.
HUNTINGTON, S. The third wave: democratization in the late twentieth century. Norman and London: University of Oklahoma press, 1993.
LALÁ, A.; THEIMER, A. Como limpar as nódoas do processo democratic? Os desfios da transição e democratização em Moçambique (1990-2003). Maputo: Konrad-Adenawer-Stifung, 2003.
LINZ,J.; STEPAN, A. Transição e consolidação da democracia, a experiência do Sul da Europa e da America do Sul. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
MACAMO, E. Um país cheio de soluções. Maputo, Produções lua, 2006.
MAZULA, B. Paz e democracia desafiantes ¬ Moçambique 10 Anos de paz. In: MAZULA ,B. Moçambique 10 anos de paz. Maputo: Imprensa Universitária. Volume I, 2002.
MAZULA, B; MBILANA, G. O papel das organizações da sociedade civil na prevenção gestão e transformação de conflitos: a experiência de Moçambique. Comunicação apresentada na Conferência co-organizada pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola (UCAN) e pela Fundação Friedrich Ebert, sobre “Prevenção, Gestão e Transformação de Conflitos Eleitorais na Região da SADC”, no dia 27 de Novembro de 2003.
NGOENHA, S. Das independências às liberdades. Maputo: Edições Paulinas, 1993.
PEREIRA, J. Mecanismo Estabelecido pela Sociedade Civil para Monitorar o Processo Eleitoral em Moçambique: Um Aviso Prévio. [s: l], 2002.
PEREIRA, J. “Antes o ‘diabo’ conhecido do que um ‘anjo’ desconhecido”: as limitações do voto econômico na reeleição do partido FRELIMO. Análise Social, vol. XLIII (2.º), p. 419-442, 2008.
PESQUISA NACIONAL SOBRE GOVERNAÇÃO E CORRUPÇÃO. Maputo: Austral Consultoria e Projeto, Lda, 2003.
SITOE, E. Abstenções e Desafios para a Consolidação da Democracia.[sl:sd].
TOLLENAERE, M. Apoio a democratização de Moçambique pós-conflito: intenções e resultados-relatório de trabalho 37. Projeto de transição democrática na sociedade em sistema de pós-conflito. AB The Hangue – The Netherlamds: Clingendael Institute/Netherlands Institute of International Relations, 2006.
WEBER, M. A política como vocação. In: Ciência e política. Duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1970.
WEIMAR, B. Moçambique 10 anos de paz ¬ democracia, governação e reforma. In: MAZULA, B. (ed.). Moçambique 10 anos de paz. Maputo: Imprensa Universitária. Volume I, 2002.
* Malola é sociólogo, moçambicano
**Por favor envie comentários para [email][email protected] ou comente on-line em http://www.pambazuka.org