Resenhando memórias em vôo rasante
Resenhando memórias em vôo rasante
Esgotaram-se rapidamente as duas primeiras edições do livro autobiográfico de Jacinto Veloso que já se encontra na terceira edição. Tratando-se de quem é, mas, sobretudo das importantes missões, funções e cargos que desempenhou antes da independência (1964-1974), durante o Governo de Transição (1974-1975), e ao longo de quase toda a trajetória do Moçambique pós-colonial, a curiosidade que desperta e o grande interesse pelo que esse homem tem a dizer, são plenamente justificáveis. Jacinto Veloso, homem branco por dentro e por fora, porquanto francamente identificado com o ideário do mundo ocidental e cristão no qual foi educado, mas moçambicano por opção, teve por assim dizer, a oportunidade ímpar de participar, em posição privilegiada, de uma epopéia libertária, reservada a pouquíssimos. E é exatamente disso, mas não só, que o livro Memórias em Vôo Rasante (JVCI, Ltda, Maputo, 2007) trata ao longo das suas 290 páginas.
Memórias em Vôo Rasante abarca importantes momentos da trajetória pessoal de Jacinto Veloso, e com ela do seu percurso, digamos assim, histórico-social. Nela são largamente tratados: (a) o seu périplo forçado, sobretudo por algumas capitais africanas, na busca de uma inserção à luta pela libertação de Moçambique do jugo colonial português; (b) as tensões que friccionaram o movimento moçambicano de libertação sediado na diáspora e que resultaram no assassinato de Eduardo Mondlane, presidente da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO); (c) a transição atribulada, a proclamação da independência nacional e as vicissitudes dos primeiros anos de governação do Partido Frelimo sob o cerco maldito da aliança trilateral constituída pela Rodésia racista, o regime do apartheid da África do Sul e o beneplácito dos governos ocidentais que lhes emprestavam apoio e com eles colaboravam ativamente no intento de inviabilizar a jovem República; d) os bastidores do que resultou na assinatura dos acordos de paz com a racista África do Sul e dissensões provocadas pelos Acordos de Nkomati na arena externa, posto que no âmbito doméstico aparentava ter prevalecido uma espécie de unanimidade silenciosa; e) as experiências do que designa o autor o “Caso SOCIMO” (Sociedade Comercial e Industrial de Moçambique, Ltda.) empresa vocacionada a combinar negócios, “intelligence econômica” e atividades de segurança no interesse do Estado moçambicano.
A diversidade de temas, situações e personagens visitados pelo autor, ao mesmo tempo em que torna o livro rico em informações, muitas delas desconhecidas pelo grande público, requer do leitor atenção redobrada, porque é, sobretudo, nas entrelinhas, nos subentendidos que estão as mais relevantes e também as armadilhas imbricadas no texto. Não se pode negligenciar o fato de que, militar de formação, Jacinto Veloso foi o primeiro titular da segurança estatal, na condição de chefe do SNASP (Serviço Nacional de Segurança Popular) e, que por injunção, antes e depois da independência de Moçambique, esteve na maior parte do tempo dedicado às tarefas de inteligência e contra-inteligência. Esta é, aliás, umas das razões, senão a principal, porque Memórias em Vôo Rasante vem suscitando tanto interesse.
Sem a pretensão de proceder à análise, até porque não é esta a função de uma resenha, parece interessante colocar em relevo alguns aspectos do livro de Jacinto Veloso. O primeiro se refere à natureza auto centrada da obra, que como a maior parte dos textos ditos pós-modernos desse penhor carrega uma forte marca de culto à própria personalidade. Nesse aspecto, Veloso não foge à regra. Repete por vias transversas o mesmo itinerário do médico Helder Martins, no seu livro de memórias, Por que Sakrani? A diferença reside fundamentalmente que o Dr. Helder Martins é mais explícito e frontal, reivindicando para si, quando o julga procedente, o protagonismo de grande parte dos feitos sobre os quais discorre. Já Jacinto Veloso transita entre o implícito e o subreptício. Embandeira-se e se agiganta na mais das vezes à sombra de Samora Machel, a quem servia diretamente, pelo menos é a idéia que perpassa, independentemente dos méritos próprios e das qualidades pessoais de que inegavelmente é dotado.
Por oportuno, e já que o tema é memórias emergentes em Moçambique, vale acrescentar: também nessa vertente da história do cotidiano, que é a história construída a partir da experiência pessoal, inscreve-se o percurso de vida de Janet Mondlane, O Meu Coração Está nas Mãos de Um Negro, forma que encontrou como ela mesma escreve no prefácio do livro redigido por Nadja Manguezi, para rememorar Eduardo Mondlane. Embora calcada preponderantemente na exposição de melindres represados, não deixa de ser como de todo o são as memórias de Jacinto Veloso e de Helder Martins, uma contribuição valiosa e fonte de consulta obrigatória para o conhecimento da história recente de Moçambique.
Outro aspecto que chama a atenção nas memórias de Jacinto Veloso é a nítida dicotomia que opõe o narrador ao analista dos acontecimentos e fatos históricos. No papel de narrador Veloso discorre sobre uma significativa massa de fatos e acontecimentos, ao mesmo tempo em que desfila um invejável colar de episódios e personagens, evidentemente segundo critérios próprios de seletividade prévia e hierarquização consciente, como preceitua a história tradicional. Destacam-se, sobretudo, as narrativas de sucesso tendo o próprio memorialista como patrono. É o caso da chamada “Operação Zero”, quando Moçambique substituiu o velho escudo português pelo metical, moeda em curso no país desde 1980. Dez gordos parágrafos explicam a bem sucedida “Operação Zero”, enquanto apenas dois mirrados e lacônicos parágrafos lançam nas profundezas o malfadado metica – moeda que deveria substituir o escudo português, antes da implantação do metical, mas cuja operação foi abortada pelas autoridades. Vale recordar que muito se falou e especulou a “boca pequena” à época sobre o desterro do natimorto metica, mas de verdade até hoje nada relevante foi ventilado ou esclarecido publicamente sobre o assunto. Este é apenas um exemplo, mas há muitos outros silenciamentos!
Considerando-se o horizonte temporal abrangido pelas “Memórias” e o sem-número de acontecimentos e personagens envolvidos, parece que algo não “bate”, no que concerne aos nomes mencionados ou até pela omissão de muitos deles. Fogem à regra as alusões ao próprio autor, algo perfeitamente previsível, e a Samora Machel, este referenciado cerca de cem vezes. Em lugar muito distante, mas ainda em relevo, emergem os nomes de João Ferreira, seu amigo e camarada de exílio, Eduardo Mondlane, primeiro presidente da FRELIMO, Joaquim Chissano e Aquino de Bragança, todos com uma pontuação expressiva, chegando alguns deles a serem mencionados uma, duas ou até três dezenas de vezes. Num terceiro plano, nomes como os de Óscar Monteiro e Fernando Howana, Fernando Ganhão e Helder Martins, Sebastião Marcos Mabote e Prakahs Ratilal, Armando Panguene, Jorge Rebelo e Alcântara Santos, são referenciados pelo menos em três ocasiões. Tal não acontece com vultos da revolução moçambicana da estatura de Marcelino dos Santos militante da primeira hora da FRELIMO e por longos anos considerado o “número dois” na hierarquia partidária e estatal, como membro do politburo, secretário para a Política Econômica do Partido, Ministro do Planejamento, Governador Residente de Sofala e presidente do Parlamento. Em toda obra é citado duas vezes apenas, mesmo assim an passant. Em ambos os casosk, se trata de alusões a períodos que antecederam o desencadear da luta armada quando em transito pelo Egito. Uma delas segundo conta foi quando Marcelino dos Santos, no Cairo, desancou Jacinto Veloso e João Ferreira por estarem eventualmente se prestando ao papel de inocentes úteis na produção e disseminação de panfleto de interesse dos inimigos da revolução moçambicana em gestação. Há uma terceira aparição, é verdade, apresentada pelo autor como um quase casuísmo, em que dirige uma reunião partidária para decidir os destinos da todo-poderosa SOCIMO.
Fica a sensação que Marcelino dos Santos não é parte crucial de Moçambique no imaginário velosiano. Nem durante a luta armada, nem no governo de transição e menos ainda no percurso republicano do país. Sérgio Vieira, nome respeitado e quadro histórico da FRELIMO que como Veloso ocupou a pasta da segurança além de outros importantes cargos-chave como governador do Banco de Moçambique e Ministro da Agricultura, é referenciado em dois momentos apenas, um durante a luta e outro por ocasião dos Acordos de Nkomati. Armando Gebuza, Mário Muchungo, Joaquim de Carvalho, Graça Machel, apenas para reter alguns nomes aqui colocados arbitrariamente, são referenciados uma única vez. Há, contudo nomes de proa da hierarquia partidária, estatal e governamental que sequer são tocados, pelo menos diretamente, contrariamente ao que acontece com uma interminável lista de notáveis de países vizinhos (vg. Kito Rodrigues, Frederik de Klerk) e de personalidades ocidentais amigos ou inimigos confessos como Jean-Batiste Doumeng, chief Fernandez, Frank Wisner, Pik Bhota, Van der Westhuizen entre outros, referenciados à exaustão. Sob essa perspectiva observa-se uma lealdade lassa, com velhos camaradas de caminhada.
Depreende-se desse fato que verdadeiramente a história pessoal narrada na primeira pessoa propicia a leitura dos acontecimentos e das realidades e a própria interpretação da história nacional e do mundo numa perspectiva meramente individual. Aliás, nisso guarda coerência com o que o autor anuncia ao iniciar seu livro: “... vários camaradas, familiares, jovens e amigos, tanto nacionais como estrangeiros, têm vindo a sugerir que eu escreva contando um pouco da minha experiência de vida dos últimos quarenta ou cinqüenta anos, em particular a minha vivência na Frelimo”.
Deriva daí que o problema reside não na narrativa em si, mas na escolha do método, na vertente da micro-história utilizada pelo autor. Nele Veloso recupera sua imagem do passado através da reiteração da marca unipessoal do governo do Partido Frelimo, na pessoa do seu máximo líder, o presidente Samora Machel tomado como petromax e ponto único e universal de convergência nacional. Segue-se dessa constatação que muitas memórias precisarão ser escritas para se poder chegar à composição por inteiro, ou quase isso do complexo mosaico que conforma a experiência moçambicana dos últimos cinqüenta anos.
Jacinto Veloso verdadeiramente se supera quando transita do dissertativo para o valorativo, abrindo alma e coração para o leitor e fazendo jorrar através de veias e poros sua profissão de fé pública a favor da “mão invisível” do mercado. Abdicando de uma análise mais rigorosa dos fatos e acontecimentos, faz em tom de mea culpa vigorosa autocrítica acerca do que considera as infelizes escolhas que mantiveram Moçambique por tanto tempo excluído do bafejo e benfazejo, na sua perspectiva, receituário do FMI e do Banco Mundial. Em abono à razoabilidade de sua tese argumenta: “Acho que Eduardo Mondlane teria defendido a adesão de Moçambique ao FMI e Banco Mundial, mantendo contatos equilibrados com o Ocidente, designadamente com os EUA, onde estudara e que conhecia bem e onde vivera alguns anos”. Inimigo acérrimo do planejamento estatal, e adepto fervoroso da economia de mercado, aqui e acolá alfineta com aversão e desprezo temperados de picardia e até zomba cáustica e implacável a efêmera experiência moçambicana. E o faz com a autoridade de ex-ministro na presidência para Assuntos Econômicos, com elevadas responsabilidades na condução da economia moçambicana pela senda do capitalismo.
Embora, é verdade, as críticas mais contundentes à economia centralmente planificada Veloso o faz pela boca de seu guru, Jean-Batiste Doumeng, o “milionário vermelho” empresário francês, como era conhecido e dono de frases como as por ele reproduzidas no livro:
“Tovarish Brejnev acabo de verificar que as únicas foices que existem na URSS são as que estão desenhadas na vossa bandeira”.
“A verdade é que ninguém inscrevera esse item (a foice) na lista dos produtos da Comissão Nacional do Plano e o que não estava no Plano Estatal Central, simplesmente não se podia produzir nem importar”.
“[...] Sei que seguem o modelo russo, modelo esse que não vos vai levar muito longe. Daqui a pouco, vocês terão que pedir ajuda ao FMI e ao Banco Mundial e serão obrigados a fazer de joelhos aquilo que ainda têm tempo de fazer de cabeça bem erguida, por decisão própria. [...]”.
Dessa forma, se distancia olímpica e solenemente das opções econômicas do Partido, do Estado e do Governo a quem sempre serviu e sugere que seus antigos camaradas se expliquem pelo que classifica de escolhas equivocadas.
Veloso esnoba e se diverte gostosamente confidenciando para o leitor como trapaceou o planejamento estatal moçambicano para fazer vingar seu projeto de escola de formação de pilotos-aviadores, fazendo passar e aprovar a importação em divisas de simulador de vôos e aviões de treino por livros escolares e materiais congêneres. Aliás, não é de modo distinto que ele trata a questão do conflito Leste-Oeste; sintetizada na conhecida alegoria, na verdade um velho provérbio africano: “Numa luta entre elefantes, o prejudicado é o capim", ao se referir às conseqüências da bipolaridade para países como Moçambique e Angola.
Na forma em que essa questão é abordada pelo autor, fica-se com a sensação de que o grau de percepção do Partido Frelimo, dos seus principais dirigentes e do próprio escriba em matéria de conjuntura internacional, e da natureza, amplitude e implicações do conflito leste-oeste transitava entre o romântico e a mais cândida ingenuidade.
Veloso em nenhum momento de suas memórias arriscou confrontar quais teriam sido os ganhos reais das largas massas populares moçambicanas nos 24 anos em que o país passou a integrar as duas organizações multilaterais, comparativamente aos 9 anos precedentes, abstraídos os efeitos e conseqüências decorrentes da guerra de desestabilização e das calamidades naturais que fizeram Moçambique retroceder 50 anos no tempo, em termo de Produto Interno Bruto! Um iniludível exercício que certamente faria o historiador anglo-saxônico Robert William Fogel, na busca de caminhos explicativos diferenciados para um e só passado do Moçambique independente.
Mas é no capítulo sobre as concertações que antecederam à proclamação da independência do Zimbabwe, onde o autor explora com mais acuidade sua verve prosaica. Sem dúvida é a parte do livro que mais empolga, onde os fatos estão mais bem encadeados e os acontecimentos compreensivamente caracterizados, mesmo que se tenha que assumir, depois da sua leitura, que verdadeiramente a arquitetura da independência do Zimbabwe foi engendrada a partir de Maputo numa ponte direta com Londres. Nela os patriotas zimbabweanos foram postos em segundo plano por se tratar de questão que concernia a “interesse vital” do estado moçambicano. Quem não se recorda da exigência dos países da “Linha de Frente”, onde Moçambique desempenhava papel destacado, encampada pouco a pouco por outros atores internacionais influentes, da necessidade de reassumo pela Inglaterra da sua condição de potência colonial no concernente à questão rodesiana, como pré-requisito incontornável para o sucesso das negociações de Lancaster House? Tratou-se, sem dúvida, de um feito histórico transcendental para o qual a contribuição de Moçambique foi imprescindível, e sobre o que o depoimento de Veloso muito esclarece.
Outro assunto sobre o qual a contribuição de Jacinto Veloso é assinalável, refere-se à guerra de desestabilização de Moçambique independente engendrada pela perversa aliança formada pelo regime do apartheid da África do Sul, a Rodésia de Iam Smith, o Malawi de Hastings Kamuzu Banda, Portugal e seus aliados da OTAN. Neste capítulo Veloso além de fazer uma honesta autocrítica sobre os erros de subestimação do inimigo por parte da liderança partidária da Frelimo, trás a lume elementos fulcrais que ajudam a melhor compreender a natureza da guerra de 16 anos a que seu país foi submetido. Tem o cuidado, como conhecedor da teoria da guerra e das circunstâncias reais da desestabilização, em não conceituá-la como “guerra civil”, contrariamente ao que muitos o fazem, movidos por motivações diversas.
Por detrás da aparente sisudez que costuma ostentar em público, Veloso, encontra meios para levar ao leitor episódios hilários vividos em momentos penosos de sua saga política. Um deles é o caso do bôer que se dirigindo ao barman num hotel local, pediu diferentes marcas de whisky, sempre recebendo respostas negativas de que os mesmos estavam em falta. Irritado o sul-africano pergunta ao barman, afinal que marca de whisky tem para servir. “Black and White”, respondeu o barman, no que o farmeiro sul-africano retrucou resignado: “Ok! Está Bem”! “Mas serve-me isso em dois copos separados”.
Por fim, fica a nítida sensação de que neste primeiro opúsculo o autor preferiu ser econômico para reservar munição para os próximos, que de certo hão de vir. Assim, passando do vôo rasante para o mergulho em profundidade, grande parte da dívida com o leitor ficaria saldada. Porque de uma coisa ninguém tem dúvida: o major-general Jacinto Veloso, como se depreende, uma espécie de generalfeldmarschall de Samora Machel, mas, sobretudo da FRELIMO pragmática que se impôs, amainado o fervor revolucionário dos primeiros anos da proclamação da independência nacional, sabe das coisas e, ainda tem muita história para contar.
Mas justiça seja feita, o autor bem que se esforça por cumprir com o prometido, no itinerário traçado à partida ao justificar a escolha do título do livro: “’Memórias em Vôo Rasante’, por quê? Porque é mesmo rasante, rasando a terra, as árvores, os postes, as pontes, rasando as verdades e as mentiras da história recente, para verificar, ver, reconhecer e talvez surpreender”.
*Wilson Gomes é Engenheiro Agrônomo pela Universidade de Sofia/Bulgária e foi docente em Moçambique
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