Relações Brasil-Moçambique: Notícias de Tete

Muito tem se falado das atuais relações entre o Brasil e o continente africano. As opiniões dividem-se sobremaneira e as categorias utilizadas para defini-las, partem de “colaboração” a “neocolonialismo”. Entendendo que o tema é extenso, e que este pequeno texto não alcançará tal amplitude, apontarei três esferas onde o Brasil se faz presente em Moçambique, de onde escrevo.

A primeira das esferas talvez seja aquela não quantificável nos relatórios macro-econômicos, a influência dita sócio-cultural, já tratado em outros textos do Pambazuka . Refiro-me às novelas (exibidas em canal aberto e fechado), às inúmeras igrejas evangélicas, à moda e à música. Estes campos de relação vertical, onde só os daqui parecem “consumir” os de lá, produz um imaginário sobre o Brasil, nem sempre correspondente à amplitude das realidades brasileiras. Obviamente que este Brasil restrito, consumido inclusive por muitos brasileiros, não é a única imagem que circula entre os moçambicanos. Não há dúvidas que eles conhecem melhor a nós, do que nós a eles.

O segundo ponto, refere-se aos projetos da chamada cooperação técnica. De acordo com a Agência Brasileira de Cooperação, existem 99 projetos, em diferentes áreas, desenvolvidos ou em desenvolvimento, em Moçambique . Entre estes, destaca-se o Programa de Expansão da Educação Superior à Distância, cuja parceria, com universidades brasileiras e moçambicanas, oferece a quase 700 estudantes, cursos de licenciatura nas cidades de Maputo, Beira e Lichinga com pretensão de, em 2015, alcançar cerca de 2000 alunos. Na área de saúde, projetos diversos são desenvolvidos em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com destaque para a fábrica de antirretroviral (coquetel contra AIDS) do município da Matola. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Empraba), também se faz presente em solo moçambicano com projetos que envolvem da semeadura para agricultura familiar até o polêmico Programa de Desenvolvimento Agrícola e Rural nas Savanas Tropicais em Moçambique (PROSAVANA). Voltado para o agronegócio no corredor de Nacala (Províncias de Niassa, Zambézia e Nampula), o programa vem sendo criticado por estabelecer bem a experiência do cerrado brasileiro como modelo “bem sucedido” e propício ao solo moçambicano. O PROSAVANA é encabeçado pelo Brasil, Japão e Moçambique e promete ampliar a produção de grãos, sem, contudo, ao que parece, inserir de forma ampla a população local no projeto.

Um fator problemático destas inciativas é a forma como são postas em prática. O termo “transferência de conhecimento” é usado com frequência. Isso deslegitima o conhecimento local e concentra o poder de mudança naqueles que estão fora do país. Tudo indica que no âmbito da cooperação, é importante que haja mais pesquisas analíticas para se avaliar a complexa dimensão de tais projetos. Quais são as estratégias da população local frente a eles?

Finalmente, o terceiro ponto, em que este texto se assenta, trata dos megaprojetos, em especial o projeto de extração de carvão em Moatize, realizado pela mineradora Vale. As atividades da Vale em Moçambique se iniciaram em 2007, com a assinatura do contrato, e em 2009, na província de Tete, de onde relato impressões preliminares sobre as transformações da região. Importa lembrar que na onda dos megaprojetos, as missões empresariais brasileiras se tornaram cada vez mais frequentes, sobretudo ao que se refere à construção de infraestruturas como a Odebrecht e a Camargo Correia.

Notícias de Tete

A partir da chegada da Vale, e de outras grandes empresas mineradoras como a anglo-australiana Rio Tinto, a província de Tete viu surgir fenômenos até então desconhecidos. O primeiro deles, ressaltado por inúmeros moradores, foi a especulação imobiliária. Os alugueis de casa, por exemplo, quadriplicaram. Mesmo os hotéis que há três anos cobravam 500 meticais (R$ 37,00) a diária, hoje cobram 2200 (R$ 162,00). Por outro lado, isso acelerou o mercado da construção e, famílias como a de Dona Maria, associada à União dos Camponeses de Tete, decidiu logo construir uma casa de aluguer em seu quintal.

Porém, segundo Jorge, agente imobiliário local, os alugueis estão caindo, já que as empresas mineradoras citadas construíram condomínios para seus funcionários. Um fenômeno interessante citado por Jorge se refere à certa adaptação no padrão de construção de moradias. Jorge afirmou que muitas casas estão incluindo o banheiro no interior da morada “como os brasileiros”. Este é um pequeno exemplo que poderia ser explorado no que diz respeito às transformações em Tete. Afinal, a população local também cria estratégias próprias para, de alguma forma, acompanhar as mudanças. Jorge entrou no ramo de alugueis com a chegada da Vale e fazendo uso de um linguajar aprendido com seus clientes, diz já saber o que “um brasileiro acha bacana ou não” em termos de casa.

Mas se o entusiasmo inicial dos alugueis frustrou os proprietários das grandes casas na cidade de Tete, quem tem hóspede garantido é Dona Maria que pode alugar sua casa a um dos inúmeros malauianos, zimbabuanos e zambianos recém-mudados para a região. Outro fenômeno resultante dos megaprojetos é, portanto, a migração regional. Neste quesito, interessante pontuar que alguns moçambicanos, refugiados nos países vizinhos durante a guerra de desestabilização , e que por lá acabaram ficando, estão voltando à região em busca de uma prosperidade, real ou imaginada.

Sobre a cidade de Tete, praticamente não se vê brancos caminhando em suas ruas. Passam em carrinhas (caminhonetes) rumo aos muitos bancos recém-abertos ou em direção ao supermercado VIP. Os moradores comentam que há cinco anos contava-se nos dedos o número de carros na cidade, hoje é preciso estar atento aos engarrafamentos, sobretudo na ponte Samora Machel que cruza o belo rio Zambeze. O dia de ir ao VIP, geralmente sábado, não por acaso, é o dia em que aumenta significativamente o número de pedintes nas ruas, concentrados exatamente na porta do estabelecimento. Este seria outro efeito colateral da presença dos megaprojetos, fala-se também em aumento da prostituição tanto na cidade de Tete quanto em Moatize.

Essa lacuna de experiências cotidianas entre a população local e os funcionários estrangeiros das mineradora é um ponto espinhoso. Há muita expectativa no ar. A Vale é vista como espécie de caviar onde, parodiando Zeca Pagodinho, não se sabe o que é (quanto ela paga e quanto ganha) só se ouve falar. No entanto, importante situar, que o status alcançado ao se trabalhar na Vale é almejado por muitos. Um pequeno exemplo é o uso frequente de camisetas (não uniformes) da empresa em ocasiões festivas, como os shows semanais promovidos no hotel Paraíso Misterioso.

O grande mal-estar no país advém da falta de transparência, resultante de um diálogo circunscrito entre a empresa e o governo central. Parece que nem o governo distrital tem absoluta ciência do contrato assinado em 2007. Já o diretor da Vale, Ricardo Saad, afirmou recentemente ser favorável a divulgação do contrato, mas ponderou que o governo moçambicano também deve estar de acordo. Rebatendo o fato de que a Vale não paga o imposto de renda de forma integral, Saad afirmou que a empresa está em fase de implantação (com investimentos na casa dos 4 bilhões de dólares, que inclui a construção da ferrovia Moatize-Nacala) e que em 2017, quando estiver a pleno vapor, pagará mais de 400 milhões de dólares anuais ao governo, somado aos impostos que já paga. Tal subsídio estaria acordado no tal contrato, que apenas uma minúscula elite política conhece.

O impacto mais visível da Vale refere-se aos reassentamentos na Vila do Cateme (a 35 km de Moatize) e do bairro de 25 de setembro em Moatize. Para lá foram deslocados cerca de 1300 famílias provenientes das comunidades de Malabwé, Mithethe, bairros de Bagamoyo e Chipanga. Neste sujeito, o primeiro esforço, me parece, é pensar os deslocamentos através da história moçambicana. Nota-se que, sobretudo na região do Vale do Zambeze, os deslocamentos forçados são uma prática antiga. Seja por meio dos prazeiros , que receberam terras da coroa portuguesa e acabaram se dedicando ao tráfico de escravos e de marfim, ou ainda através das companhias concessionárias estrangeiras como a Companhia do Zambeze , que decompôs seu vasto território em sub-concessões. Soma-se a isso a produção de culturas obrigatórias e a migração laboral para as minas na primeira metade do século XX .

Contudo, o fenômeno do deslocamento contemporâneo se manifesta de forma enfática em dois principais momentos: no fim da década de 1960, quando a população foi reunida, pela administração portuguesa, em aldeamentos para evitar o contato com os movimentos de independência, como a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO); e após a independência (1975), onde as aldeias comunais ou machambas estatais supostamente edificariam a nova nação pensada pela FRELIMO. Logo veio a guerra de desestabilização e seus milhares de refugiados. Ou seja, os reassentamentos efetivados pelos megaprojetos, reproduz um sistema que desloca pessoas, agora com a roupagem do desenvolvimento.

Os megaprojetos (e não só eles) têm sido amplamente debatidos no cenário moçambicano. Não há uma única semana em que não haja conferências com especialistas no tema, entrevistas televisivas e diversos artigos sobre a questão. Mesmo em Tete, que até 2005 era citada apenas pelo calor e pela carne de cabrito, está vivenciando um tipo de ativismo social, presente nas mais diferentes associações, ONGS internacionais, nacionais, mas também locais. Isso ficou evidente na VIII Sessão do Observatório do Desenvolvimento da Província de Tete, realizado no dia 15 de maio de 2013, na própria cidade. Frente a frente com o governador, e demais dirigentes, figuras como o jovem Carlos, da Associação do Grêmio de Moatize, proclamava que o bairro 25 de setembro é considerado “vip”, pois tem luz nas vias e escolas para as crianças. Mostrando sua indignação, o mesmo jovem de forma segura e provocativa questionou: “E o restante, que não foi reassentado, como é que fica?”.

Ou seja, a chegada de grandes projetos gera expectativas diversas, inclusive no mercado da ajuda, mas também põe em evidência regiões e situações até então adiadas. Por tanto creio que resumir essa complexidade ao termo “neocolonialismo” é ausentar da história (mais uma vez) figuras como o jovem Carlos, Dona Maria, Jorge, os antigos refugiados, agora retornados, e tantos outros... é centrar a história (mais uma vez) em mãos alheias. Com isso, não pretendo amenizar os danos ambientais, sociais, culturais, sociais causados pelos megaprojetos, não há muita dificuldade em listá-los. Proponho olhar um pouco além (ou melhor), em torno deles. Discutir, se possível for, respostas e percepções locais sobre a nova avalanche do carvão.

Extrapolando meu lugar de estrangeira, a dar palpite na casa dos outros, acredito que, ao que tange a “euforia” dos recursos minerais, o debate deve centrar-se no inadiável diálogo entre o governo central moçambicano com sua sociedade civil, esta sim incansável crítica e detentora de consistentes propostas. Em suma, trata-se de convocar a opinião dos moçambicanos, incluindo aqueles que vivem em cima das minas. Afinal, se os reassentados tivessem participado da construção das novas casas, se tivessem tido a chance de opinar sobre o local do reassentamento e das machambas, talvez considerassem a possibilidade de chamar o novo local de “lar”. Mas tudo foi decidido (imposto) pelo governo e a Vale, acatou sem reclamar.

Porém, as manifestações sociais que vem chacoalhando o país, como a greve dos médicos, dos professores e as constantes manifestações da população de Moatize sugerem que o diálogo não tarda a vir. Afinal, como bem salientou o tema da VII Sessão do Observatório do Desenvolvimento em Tete, “Promover o diálogo é fortalecer o desenvolvimento”. Os moçambicanos estão cientes disso, estão atentos ao que se passa em sua casa, lugar que bem conhecem, “basta” os moçambicanos dirigentes agirem com menos distanciamento de sua própria população.

*Fernanda Gallo é doutoranda em História da África na Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, faz pesquisa de campo em Moçambique.
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