Racismo na infância: as marcas da exclusão

Como uma pessoa se torna racista e que tipo de efeitos a criança vítima de discriminação carrega para a vida adulta? A reportagem que você lerá a seguir propõe uma reflexão sobre essas e outras perguntas.

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Como uma pessoa se torna racista e que tipo de efeitos a criança vítima de discriminação carrega para a vida adulta? A reportagem que você lerá a seguir propõe uma reflexão sobre essas e outras perguntas.

A pequena estudante*, de quatro anos, acordou alegre naquele dia. Estava orgulhosa por ter sido escolhida pela professora para ser a noivinha da festa junina da escola. Os cabelos crespos foram cuidadosamente arrumados pela mãe e enfeitados com um véu branco, que emoldurava um rosto expressivo e sorridente. Era para ser uma data especial na vida daquela criança. Porém, o encantamento durou pouco.

Durante a quadrilha, a avó do colega que fez par com a menina mostrou indignação ao ver que o neto dançaria com uma aluna negra. Dias depois, voltou à escola para tirar satisfações. Segundo consta no boletim de ocorrência registrado pela família da vítima, a senhora de 54 anos entrou aos berros, perguntando por que fizeram o neto, que é branco, dançar com aquela “preta feia, horrorosa”.

A professora Denise Aragão lembra que tentou, em vão, conter a agressora, que continuava a gritar insultos racistas. As pessoas da sala ao lado vieram acompanhar o que estava acontecendo e a menina ficou em um canto, ouvindo tudo. Ela era a única negra em meio a uma turma de 14 crianças brancas. “Isso mexeu tanto comigo, foi uma chibatada. Tinha muita maldade naquelas palavras”, conta a educadora.

Denise denunciou as ofensas à responsável pelo colégio, que tratou a situação com desdém. “A diretora disse que isso acontece sempre e, se fosse brigar com cada família preconceituosa, a escola já estaria fechada”, afirma. Inconformada com a conivência de quem deveria ajudar a proteger os alunos, ela pediu demissão. Esperou dois dias para ver se os pais seriam comunicados e, quando viu que nada foi feito, resolveu ligar para a mãe da menina para contar tudo.

A massoterapeuta Fátima Souza disse que tinha mesmo estranhado o comportamento da filha. No dia em que foi humilhada na escola, a criança não conseguiu comer nem dormir direito e estava muito assustada. Depois disso, passou a vomitar com frequência, tinha crises de choro e pânico de ficar longe dos pais.

Mais de um ano após o episódio, as sequelas permanecem. Fátima conta que a filha faz acompanhamento psicológico uma vez por semana desde o fato, mas a recuperação do trauma é um processo lento. “Ela era muito independente, esperta, resolvia tudo sozinha. Hoje, chora por qualquer coisa, diz que é negra, feia e que eu não gosto dela. Isso causou um estrago na vida da minha filha. É muito doído”, emociona-se.

O caso aconteceu em uma escola particular de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar do Brasil. A realidade da discriminação racial no país faz com que muitas pessoas sejam submetidas, todos os dias, ao ódio e à intolerância. E o que pouca gente percebe é que tipo de consequências isso pode trazer quando a vítima é uma criança, em processo de formação da própria identidade.

De acordo com a diretora-presidente do Instituto AMMA Psique e Negritude, Maria Lúcia da Silva, entre 8 meses e 3 anos de idade, o ser humano começa a notar as diferenças físicas entre ele e os outros. A especialista destaca que, nesse período, é fundamental que ele se sinta aceito, acolhido e valorizado nessas diferenças. “Esse poderá ser o início do conflito que o bebê ou a criança irá travar com seu corpo com base nas representações negativas que a sociedade tem e que se manifestam através de toques, olhares, chacotas, apelidos e imagens depreciativas”, explica.

Ela ressalta que o desenvolvimento da autoestima se dá nos primeiros anos de vida, por meio do modo com que a criança é tratada pela família e também nas relações sociais. A inferiorização de determinados grupos raciais não deve ser negligenciada, sobretudo na infância. Na opinião de Maria Lúcia, as brincadeiras pejorativas entre colegas, muitas vezes tidas como “inocentes”, podem esconder padrões de comportamentos que ajudam a perpetuar o racismo na sociedade. “Ao ser xingada, a criança sente-se humilhada, envergonhada. Ela é destituída de seu nome próprio e de sua humanidade quando, por exemplo, lhe atribuem alguma característica animal”, alerta. Entre os efeitos da constante exposição a situações vexatórias, estariam o sentimento de desvalorização, a rejeição da própria imagem, a inibição e a dificuldade de confiar em si mesma.

O mito da democracia racial

E como as relações de dominação étnico-racial são aprendidas nessa fase? Para a professora e doutora em Psicologia Social pela Universidade de Brasília (UnB) Jaqueline de Jesus, não é preciso que se diga explicitamente a uma criança que uma parcela da sociedade é considerada menos importante do que a outra. Os exemplos não são poucos e estão na televisão, nos livros didáticos e nos espaços subalternos, geralmente vinculados à servidão a pessoas brancas.

Ela acredita que a ideia de lugares adequados e inadequados para negros, por exemplo, pode ser o primeiro impacto para crianças que testemunham a segregação ainda existente hoje. “O racismo fica explícito quando se observa que a população pobre é majoritariamente negra, que as seleções de emprego preferem as pessoas brancas, quando a maioria da população carcerária é negra, quando leis contra o racismo simplesmente não são aplicadas”, destaca.

A opinião da psicóloga é confirmada pelas estatísticas. Um estudo, lançado em 2010 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mostrou que, no Brasil, vivem 31 milhões de meninas e meninos negros e 140 mil indígenas. Ao todo, representam 54,5% de todas as crianças e adolescentes do país. Mesmo sendo a maioria da população nessa faixa etária, o acesso a serviços básicos de Saúde, Educação e à moradia para eles é bem diferente. Segundo o levantamento, uma criança negra tem 70% mais risco de ser pobre do que uma criança branca.

O respeitado sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) costumava dizer que os brasileiros têm “preconceito de ter preconceito”, no sentido de que existe um esforço maior em negar o preconceito no País do que, efetivamente, em buscar soluções para combatê-lo. Jaqueline concorda com a ideia e defende que o primeiro passo para mudar esse quadro é acabar com a falsa concepção de que aqui existe uma “democracia racial”, o que seria responsável por mascarar uma série de desigualdades. “O cínico racismo brasileiro é um legado histórico e social no qual estamos incluídos, e que, mantido estruturalmente pela lógica do sistema econômico vigente, ressignificou o antigo escravo negro, agora livre, como um subcidadão, uma pessoa com menos capacidades intelectuais e técnicas do que um branco”, afirma.

O papel da escola

O investimento em Educação seria um dos meios mais eficazes para garantir uma mudança real na sociedade. Disso, ninguém duvida. Porém, pesquisas revelam que, nessa área, está longe de haver uma igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos. Ainda segundo os dados publicados pelo Unicef, uma criança negra entre 7 e 14 anos tem 30% mais chance de estar fora da escola. E uma criança indígena tem quase três vezes mais chance de não frequentar as salas de aula em relação a uma criança branca na mesma faixa etária. Se o acesso ao ensino é difícil, permanecer nos bancos escolares também pode não ser uma tarefa simples.

Para a assistente social e mestre em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Yvone Costa, a escola precisa se firmar como um espaço que valoriza a diversidade cultural, a troca de experiências, o respeito mútuo e, dessa forma, ajudar a promover a desconstrução de estereótipos racistas. “No cotidiano das instituições de educação infantil, percebemos crianças negras querendo os seus cabelos ruivos, louros e escorridos. Isto é, buscando a ideia do belo que lhes é transmitida através de um processo excludente e preconceituoso”, observa.

Yvone ressalta que faltam projetos pedagógicos dispostos a ir além da visão eurocêntrica dos currículos escolares e, assim, as crianças acabam reproduzindo aquilo que é ditado pelo senso comum. Ela atribui a situação, entre outros fatores, à má qualidade da formação dos professores e à ausência de condições adequadas para o exercício da profissão.
Como forma de tentar incen
tivar uma educação mais inclusiva, em 2003 foi aprovada a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura Afrobrasileira nas escolas públicas e privadas. Embora reconheça a iniciativa como uma conquista dos movimentos sociais, Yvone reforça que é preciso colocá-la em prática no dia a dia dos alunos, e não apenas como um assunto a ser discutido em datas pontuais, como o Dia do Índio ou da Abolição da Escravatura.

Para ler com as crianças:

O Menino Marrom de Ziraldo
O livro revela a amizade entre dois meninos, um negro e um branco. O autor utiliza a convivência e as aventuras deles para pontuar as diferenças humanas e falar sobre preconceito.
Cabelo Ruim? – A história de três meninas aprendendo a se aceitar de Neusa Baptista Pinto

A descoberta da beleza e da autoaceitação são o assunto central desse livro, que traz como personagens três meninas negras e pobres que enfrentam manifestações preconceituosas em relação ao seu cabelo crespo. Aos poucos, elas vão aprendendo a amá-lo do jeito que ele é.

Meu Vô Apolinário: Um mergulho no rio da minha memória
Daniel Munduruku

O autor resgata as memórias de como os ensinamentos de seu avô o motivaram a conhecer e se orgulhar da sua ancestralidade, relatando fatos da própria trajetória como criança indígena. Além disso, narra diversas histórias de seu povo, passadas de geração em geração.

Raízes históricas
E é justamente no período de quase 400 anos dominados pela escravidão no Brasil que o historiador Sidney Lobato se concentra para explicar as expressões do racismo na atual sociedade. “Os filhos de escravos tinham um lugar marginalizado. Nessa época, eram comuns as situações de violência física e de brincadeiras sádicas da criança branca em relação à negra. Hoje, existe uma violência simbólica dada de forma mais sutil, mas ainda seguindo os mesmos padrões”, enfatiza.
Ele lembra que, após a libertação dos escravos, houve uma ação intensa por parte das autoridades para atrair imigrantes europeus como forma de alavancar a modernização do País a partir do “branqueamento” da população. Afinal, eram atribuídos às pessoas brancas os padrões estéticos, morais e intelectuais considerados desejáveis para uma nação desenvolvida. Dessa maneira, formou-se uma massa cada vez mais numerosa de negros excluídos.
Sidney ressalta que os indígenas também foram preteridos ao longo da História. Ele afirma que, com o crescente desmatamento e a disputa por terras, foi sendo tirado o direito desses povos à própria sobrevivência. “Eles não têm como se sustentar. E as crianças, assim como os mais velhos, são os que mais sofrem com isso”, alerta.

No Brasil, apesar de todos os esforços que asseguraram uma taxa de mortalidade infantil em torno de 19 mortes para cada mil crianças nascidas vivas, a taxa de mortalidade infantil indígena ainda representa um desafio para a saúde pública. Em 2010, relatório oficial da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) revelou o índice de 41,9 mortes infantis para cada mil crianças indígenas nascidas vivas, valor muito acima da média nacional.
Os suicídios também são uma importante causa de mortalidade nessa população. De todos os óbitos registrados entre crianças, adolescentes e jovens indígenas, 5,8% deles foram por suicídio – o que equivale ao triplo da proporção quando comparada à dos brancos, que apresentam um índice de 1,9%. Os dados são do Sistema de Informações sobre Mortalidade, compilados durante cinco anos e divulgados em 2008 pelo Ministério da Saúde.

Em busca de um caminho possível
A diretora-presidente do Instituto AMMA Psique e Negritude, Maria Lúcia da Silva, frisa a importância de pais e educadores para fortalecerem na criança a necessidade de respeitar as diferenças. Ela sugere que o assunto seja debatido de forma lúdica, por meio de jogos, conversas e filmes. “Os educadores, assim como os pais, são figuras fundamentais na vida da criança. Eles representam autoridade, ocupam lugar de admiração e modelos de identificação”, observa.
E, ao notarem isolamento e tristeza causados por um ato de discriminação, a especialista afirma que é preciso uma atenção especial. “As crianças têm de ser elogiadas, reforçando a beleza da sua cor, do seu cabelo, da sua história e de seu povo”, ensina. Outra dica é reunir meninos e meninas de várias culturas para falar sobre a diversidade de alimentos, músicas e brincadeiras que eles podem aprender uns com os outros.
Procurada para falar sobre o assunto, a assessoria da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) – pasta responsável pelas ações voltadas às crianças e aos adolescentes no âmbito federal – afirmou que estão sendo desenvolvidas atividades com foco na inclusão social. Entre elas, mutirões de registro de nascimento, campanhas para incentivar a adoção de crianças de variadas etnias e apoio ao projeto Olhares Cruzados, que contribui para a redução da mortalidade infantil indígena.

MC JAPÃO
Rapper
“As pessoas que ajudaram a construir Brasília não tiveram o direito de morar no centro. Elas foram levadas para vários locais distantes, criando as cidades-satélites. Sou de uma delas. Eu nasci na Ceilândia em 1971, mesmo ano em que foi fundada. Vim de uma família de nordestinos. Éramos um dos poucos casos de famílias negras que tinham pai e mãe. A maioria ou tem pai ou tem mãe, nunca os dois.
A questão da discriminação já vem de muito tempo e, hoje, continua a mesma coisa. Comecei a estudar durante o regime militar. Havia muita repressão e, dentro da repressão, havia o preconceito. Eu vivi no meio disso tudo. Se você é negro, já é inferior. Não são as pessoas da comunidade que pregam, é o próprio sistema. Lembro como se fosse hoje. Na escola, a menina branca era a princesa. O menino branco era o inteligente e o menino negro vai ser sempre “o neguinho”.
Isso vem desde a formação do País, desde 1500. Os portugueses já chegaram aqui como patrões. A questão do racismo é muito difícil e não vai parar tão cedo. Até entre os negros existe uma competição. Eu tenho um sobrinho negro e ele diz que não é negro, diz que é marrom. Para ele, marrom é superior ao preto. Ele é baseado no que vê, no que aprende. A escola ensina que a cor negra é feia. A cor branca é que é a cor da paz, da pureza. Quais são nossos heróis? Dom Pedro I, Princesa Isabel. Escola alguma fala de Zumbi, de Dandara. Para o sistema, eles são vilões.

A nossa assistência tem que ser imediata. Nós não temos assistência a longo prazo. Eu estou com fome, tenho que comer agora. Não posso esperar para daqui a uma semana. E, quando você liga a televisão, tem uma família branca sentada, com uma mesa cheia de comida. Todo mundo bonito, todo mundo pregando o amor, sabendo que o amor, muitas vezes, é baseado no dinheiro. A TV brasileira tem uma cota para negros. São uns 10%, só para dizer que é contra a discriminação. Isso é fachada. Nós somos a maioria da população do País, mas uma maioria impedida de vencer.
Quando eu era garoto, a escola em que eu estudava tinha umas festas black. A turma que eu andava era o Amendoim, o Verminoso, o Ricardo Beição… Nós só éramos conhecidos por apelidos. Tínhamos destaque na dança, mas quem ganhava todo o mérito eram os meninos branquinhos da escola. Eu passava por esse sofrimento. Passei por isso, mas não me deixei abater. O rap sempre pregou o não à discriminação, o não ao preconceito. Dizem que o rap é violento, mas ele é o relato fiel da comunidade.”

DANIEL MUNDURUKU
Escritor
“Nasci no estado do Pará, no coração da Floresta Amazônica. Minha vida na aldeia era sempre muito alegre, divertida e cheia de aventura. Quando fui para a cidade para estudar, sofri um grande impacto, porque foi uma mudança muito drástica e traumática. Fui vendo que a diferença que eu carregava comigo incomodava a mim mesmo e, por um bom período, desejei não pertencer a um povo indígena e até neguei minha origem. Isso porque a escola dizia que eu era muito diferente e que precisava ser mais parecido com os outros para ser normal.

Como eu havia sido educado em uma cultura que aos outros parecia estranha, era considerado um estranho. O que as pessoas da cidade não sabiam é que, para mim, os estranhos eram elas. Para o “um”, o outro é sempre diferente e, para o outro, o “um” é que é. Quem vence essa guerra de nervos? Aqueles que são alimentados pela ideologia do poder. A tentativa do “um” dominar se dá pela desqualificação, diminuindo as outras pessoas através da criação de estereótipos. E não foram poucos os estereótipos de que os povos indígenas foram vítimas: atrasados, preguiçosos, sujos, canibais.

Para quem sofre o preconceito, há sempre marcas que perduram para a vida toda. Normalmente, a gente acaba aceitando o que falam da gente ou acaba odiando ser quem a gente é. São sentimentos que marcam nosso corpo e nossa mente e, infelizmente, eu também fiquei marcado por esse tipo de preconceito, o que me levou a negar a minha própria cultura. Graças a um avô que tive é que consegui não me perder de mim mesmo.

As taxas de mortalidade entre as crianças indígenas revelam que o contato das sociedades indígenas com a não indígena é nocivo para a parte mais frágil dessa corrente. Muitas doenças têm ocasionado a morte de crianças indígenas, e parte dessas doenças é causada por agentes externos, como alimentação e a água poluída, que causa disenteria e a consequente desidratação; resfriados ou vírus alienígenas ao universo das crianças; além do péssimo atendimento médico prestado às comunidades indígenas.

A causa disso tudo é a desvalorização dos saberes tradicionais, trazida especialmente pela televisão. Tenho a impressão de que isso tudo tende a piorar nos próximos anos. Os povos indígenas trazem consigo um destino muito cruel: suas culturas irão ser cada vez mais desvalorizadas, sua educação tradicional esquecida e as crianças sem chance de manterem vivo tudo o que seus antepassados viveram.” F

JOSEFINA SERRA
Advogada
“Sou de Cajapió, no interior do Maranhão. Minha mãe era quebradeira de coco-babaçu e meu pai trabalhava na roça. Fui afastada da família aos 5 anos, quando me levaram para uma fazenda para ajudar a lavar roupa, cuidar do gado e servir os vaqueiros. Era tratada como escrava. Com 6 anos, comecei a trabalhar em casa de família na capital, São Luís. E, a partir daí, fui sendo levada de um lugar para o outro, e morei também no Rio de Janeiro e em Brasília. Não tinha qualquer pagamento.

A maioria das meninas negras é muito humilhada, muito abusada. Recebia roupas velhas. O sapato que ganhei uma vez era muito maior do que meu pé e me enchia de feridas. Não podia ver televisão, só que sempre dava um jeitinho de assistir escondida atrás da porta. O tempo foi indo e nada mudou. Eu lavava, passava, cozinhava, fazia faxina e cuidava de outras crianças, mas não podia subir com elas no mesmo elevador. Tinha que pegar o de serviço, sem entender direito o porquê.
Insisti muito para poder estudar. E, na escola, não era fácil. Fui chamada de cabelo de Bombril, urubu, macaca, miserável. Era motivo de piada, e isso vai te marcando. Eu não falava nada, só ia guardando. As minhas colegas não me convidavam para brincar porque eu era empregada doméstica. Por ser negra e estudiosa, diziam que eu era metida. Na infância, não tive amigos. Aliás, não posso nem dizer que tive infância. À noite, ficava lendo sozinha no quarto escuro, à luz de vela, porque não podia nem gastar a luz.

Fui assediada sexualmente por vários patrões, sofri ameaças, xingamentos. Segui nessa vida até a faculdade. Acordava muito cedo, vivia cansada. Dormia na sala de aula. Quando passei no vestibular, algumas pessoas fizeram vaquinha para pagar a matrícula. Eu me formei em Direito, sou advogada e atuo no movimento negro. Ainda me sinto muito fragilizada, insegura. Hoje, me pergunto como é que eu aguentei tudo isso. Na verdade, acho que a gente nunca consegue superar totalmente.”

Relembre alguns casos:

Julho/2013 – Dourados-MS
Um menino de 3 anos foi abandonado em um terreno baldio. Foi encontrado sujo, com fome e chorando muito. Depois de contar muitas versões contraditórias, a mãe admitiu à polícia ter sido um ato desesperado, pois estava de mudança para a capital para viver com um novo companheiro, e ele não aceitava ter em casa uma criança negra. O menino foi encaminhado para um abrigo, enquanto espera a decisão da Justiça sobre quem terá a nova guarda.

Março/2013 – Recanto das Emas-DF
Uma menina de 12 anos foi agredida com socos, chutes e arranhões por quatro jovens. Ela teve a camiseta rasgada e ficou com hematomas e partes do corpo inchadas. A vítima contou que pegou o ônibus errado para ir à escola e entrou em um beco. Duas garotas a seguraram e outras duas bateram nela. Motivo: disseram que negros não podiam passar pelo lugar e que teriam de “pagar por isso”.
J
aneiro/2013 – Rio de Janeiro-RJ
O filho adotivo do casal Ronald Munk e Priscilla Celeste foi expulso de uma concessionária da BMW na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. “Você não pode ficar aqui dentro. Não é lugar para você. Saia da loja! Eles pedem dinheiro e incomodam os clientes”, disse o vendedor, referindo-se ao menino negro, de 7 anos. Em nota, a empresa afirmou não saber que a criança estava acompanhada dos pais e que tudo não passou de um “mal-entendido”.

Janeiro/2012 – Goiânia-GO
Uma pastora evangélica foi denunciada pelo Ministério Público Federal de Goiás por escravizar uma criança indígena em Goiânia. Ficou constatado que a menina, de 11 anos, foi submetida à condição análoga à de escravo no período de maio de 2009 a novembro de 2010, quando era obrigada a realizar trabalhos domésticos. As investigações apontaram que a criança foi ameaçada com castigos corporais e submetida a longas horas de serviços diários.

Janeiro/2011 – São Paulo-SP
Acusado de furto em um hipermercado de São Paulo, um menino de 10 anos foi levado por três seguranças a uma sala reservada, onde, segundo contou, foi chamado de “negrinho sujo e fedido”. Ele diz ter sido ameaçado com um canivete e obrigado a tirar a roupa. Segundo o boletim de ocorrência registrado pela família, só após revistarem e insultarem a criança é que foi encontrada a nota fiscal dos produtos que ele levava: biscoitos, salgadinhos e um refrigerante.

Como denunciar
Em casos de discriminação racial contra crianças, é possível buscar ajuda nos conselhos tutelares, nas ouvidorias dos serviços públicos e nas delegacias de proteção à infância e à adolescência, por exemplo. A prática do racismo é uma violação de direitos condenável em vários países e, no Brasil, é crime inafiançável, previsto em lei.

* A identidade foi preservada em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

Este artigo primeiro publicado na revista Fórum, outubro 2013 e gentilmente autorizada a reprodução pela autora.

*Maíra Streit é jornalista.
*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
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