O Desafio de Moçambique: a quem se deve desarmar?
Contrariamente ao que se procura fazer acreditar, o que constitui uma verdadeira ameaça à Paz e à estabilidade política em Moçambique não é a RENAMO, mas sim a configuração proibitiva das regras que determinam o acesso ao poder político e económico, pelo cidadão comum, ou por grupos de cidadãos que os desejam aceder por mérito.
Que nos dominantes círculos do poder político em Moçambique, incluindo até no círculo académico, e parte da sociedade em geral, predomina sobremaneira uma certa convicção de que a RENAMO constitui a maior ameaça à verdadeira Paz e estabilidade política do País não deve constituir novidade para ninguém. Porém, o que deve constituir novidade é a convicção contrária a esta, que aqui defendo, segundo a qual, o que ameaça, verdadeiramente, a Paz e a estabilidade política são as prevalecentes atitudes e regras de jogo que têm estado a governar e a determinar o acesso (bem como o controlo) do poder político e económico (bem-estar) em Moçambique. Isto pelo facto de estas favorecerem o surgimento e o florescimento de atitudes e comportamentos, de per si, atentatórios à Paz e ao progresso do País. Ou seja, pelo potencial que essas regras e atitudes têm de criar outras reacções e comportamentos (reactivos) revoltosos que assumem diferentes formatos, entre os quais, a RENAMO.
A convicção de que a RENAMO é a grande ameaça da nação não apenas tem sido verbalmente expressa, como também traduzida em acções concretas visando a sua eliminação física do espaço geográfico nacional, de modo que o País possa encontrar, finalmente, o tão desejado caminho rumo ao progresso. Esta convicção, fundamenta-se no facto de a RENAMO possuir força militar de que se tem beneficiado, quando lhe convém forçar determinadas decisões a seu favor. Essas decisões estão, para alguns, totalmente “desalinhadas” com os verdadeiros objectivos da nação moçambicana, como por exemplo, o objectivo da unicidade do Estado, etc. O exemplo mais recente e ilustrativo desta atitude por parte da RENAMO, tem sido o actual recurso à força das armas, para impor o seu e já conhecido projecto de províncias autónomas. Atitude esta, por sinal, recorrente. Este argumento, apesar de factual não é, contudo, determinante na explicação dos factores que condicionam o estado de Paz e estabilidade no País.
No meu entender, contrariamente a RENAMO, ainda que com todo o seu já comprovado poderio militar, o que se constitui na verdadeira ameaça à Paz e à estabilidade política em Moçambique é a configuração proibitiva das regras que determinam o acesso ao poder político e económico, pelo cidadão comum, ou por grupos de cidadãos que os desejam aceder, por mérito. São as intransponíveis barreiras impostas ao accesso e ao exercício do poder, por mais central ou descentralizado que tal poder esteja posicionado; quer ao nível do Governo central, Província, Município, Distrito, Localidade, Vila, Bairro, Quarteirão, etc; até mesmo ao nível das mais “insignificantes” associações de cidadãos que se localizam afastados do perímetro governamental (estudantes, pescadores, camponeses, futebolistas, etc).
Constitui ameaça à Paz e estabilidade as atitudes e práticas que restringem os serviços e deveres do Estado à uma pequena minoria, que se acredita identificar-se e praticar uma certa ideologia política dominante. Ameaça à Paz um Estado que confina e privilegia, por exemplo, as suas funções de segurança, justiça, educação e saúde, entre outras, à um círculo restrito de indivíduos que o controla, gerindo-o à seu bel-prazer. É ameaçador um sistema de justiça injusto, de tão contrário à prática do seu próprio objecto. É ameaçador quando o Estado, na sua acção directa e indirecta promove e premeia, comportamentos e atitudes desviantes, oprimindo, desta forma, os cidadão que se destaquem pela grandeza e nobreza dos seus actos, por falta de alinhamento em relação à um determinado regime ou interesse particular.
Na minha convicção, ao invés de um objectivo concreto, o desarmamento da RENAMO constitui-se apenas um objectivo abstracto (marginal), ou o que se pode classificar de mero resultado “positivo” de um obejctivo nacional concreto, para o qual toda a nação se deve concentrar, que é o do desarmamento do País e do Estado dessas regras e atitudes injustas e revoltantes. É, por conseguinte, urgente desarmar o Estado de todo esse conjunto de factores que determinam que, mesmo depois de uma pausa de mais de vinte anos, ainda haja moçambicanos (tão patriotas quanto todos os restantes) que encontrem motivos e argumentos suficientes para recorrer ao uso da força das armas para que, com as suas diferenças, sejam ouvidos, aceites, e que se sintam parte integrante do projecto de edificação da nação moçambicana.
A convicção da qual não alinho, não parece considerar estes aspectos. Pois, ela não é susceptível de explicar a lógica do uso recorrente da violência em Moçambique como o aparente único mecanismo de obtenção de concessões políticas, sociais e económicas. Ela peca por não poder explicar a racionalidade que governa a atitude de um homem qualquer, que mesmo depois de ter experimentado longos anos, sob a tranquilidade que a Paz oferece, opte pelo caminho da guerra, repetidamente, com força e, provavelmente, determinação ainda maiores do que as do passado. Ela não permite descortinar, para poder combater, as verdadeiras condições estruturais que tem estado a determinar o estado de guerra ou de Paz em Moçambique.
Para mim, o verdadeiro desafio de Moçambique é, neste sentido, simplesmente, o seu auto-desarmamento. O desarmamento das mentes e das atitudes que governam as relações entre cada um dos moçambicanos e o seu próprio Estado e, consequentemente, dos mecanismos que condicionam e determinam o acesso aos benefícios que desta relação podem advir.
* Fredson Guilengue trabalha com a Fundação Rosa Luxemburgo, região da África Austral, sediada em Joanesburgo.