Nota sobre a abolição da escravidão e o racismo no Brasil.

A abolição da escravidão é um tempo de longa duração. O evento terminou, mas o tempo dele perdura.O racismo, como sistema ideológico, não é desdobramento da escravidão. Trata-se de uma formulação construída no século XIX para justificá-la, para ratificar a inferioridade atribuída às pessoas escravizadas.

A abolição da escravidão é um tempo de longa duração. O evento terminou, mas o tempo dele perdura.
O racismo, como sistema ideológico, não é desdobramento da escravidão. Trata-se de uma formulação construída no século XIX para justificá-la, para ratificar a inferioridade atribuída às pessoas escravizadas.

Discutir o racismo, explicitá-lo, combatê-lo, é mais profícuo e profundo do que insistir nos efeitos da escravidão que fossilizam o lugar da lentidão inexorável das mudanças socioeconômicas necessárias para o crescimento da população negra, atribuído ao ônus da escravidão. Vil armadilha!
É o debate sobre o racismo que nos permite decodificar a estratégia de pessoas brancas e até mestiças confusas e embranquecidas que ressignificam o lugar da casa-grande a cada pequena ação. Dia desses publiquei crônica que narrava uma cena de discriminação racial protagonizada por um homem negro que discriminava uma mulher negra durante cena de novela e tive exemplo desse raciocínio.

O texto ativou o seguinte comentário: “Ah! Por favor! Adoro a página (Nomes Afro e Africanos e Seus Significados) e estou sempre na luta contra o racismo, intolerância religiosa, na luta dos gays, violência doméstica e tudo mais… mas, sinceramente, já virou paranoia, até a novela? Pelo amor de deus!!!!!! Nada mais se pode falar que é discriminação, bulling, etc… até negro falando com negro vocês agora acham que é racismo? Vocês estão precisando procurar um tratamento, porque o racismo está em vocês, me desculpe.”

É uma assertiva pobre, previsível, fácil de analisar à luz do modus operandi do racismo no Brasil, vejamos:

1 – O texto citado pela leitora é autoral, assinado, mas ao invés de criticar a autora, sabidamente negra, ela se dirige ao coletivo negro, aconselhando-o a procurar tratamento psicoterapêutico ou psiquiátrico, pois o racismo estaria internalizado nos membros do coletivo, adoecendo-os. O racismo funciona exatamente assim, toma parte pelo todo. Os racistas destacam parte do grupo, fazem generalizações absurdas e tentam atingir a todos, porque não importa o indivíduo, importa que ele integre o coletivo discriminado.
2 – Como o objetivo de se auto-preservar e proteger, a pseudo defensora dos negros, em primeira mão, nomeia as causas em que está envolvida: adora coisas de negros (a fan page citada), luta contra o racismo, violência doméstica, intolerância religiosa, a favor dos gays e deve saber o que é melhor para esses sujeitos, pois quando os discriminados ousam levantar a voz contra a opressão, cometem exagero.
3 – O mundo do entretenimento, da novela ideologicamente construída seriam locus inofensivos, segundo o raciocínio rastejante da leitora. Logo, enxergar o racismo ali seria despropositado, paranóico.
4 – Por fim, a contradição: o racismo seria um problema internalizado pelos negros, segundo sua compreensão, mas estes não cometeriam atitudes discriminatórias em relação a outros negros. Deste modo, a percepção da autora quanto à discriminação racial de uma personagem negra contra outra seria absurda, ainda mais, em uma novela.
5 – Como coroamento de tudo, um pedido de desculpas que infantiliza os leitores e leitoras do comentário, como se a autora dissesse: “Sinto muito, mas eu precisava alertá-los, vocês são idiotas.”

Viram? Não é difícil. É cansativo, mas não é difícil. Se nos detivermos no legado da escravidão faremos o jogo da leitora, estacaremos no lugar de vítimas, na moradia da subalternidade. Ficaremos de braços abertos para sermos resgatados por redentoras, como ela.
Contudo, se assumimos o lugar de alvos do racismo, olharemos dentro dos olhos dos racistas, decodificamos suas práticas e ardis e poderemos destruí-los.

*Cidinha Silva é autora e blogueira em Blogueiras Negras, onde este artigo foi primeiro publicado
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