Raul Xavier, de 25 anos, foi dos primeiros a acorrer em socorro do seu líder, José Julino Kalupeteka, a 16 de Abril de 2015. Escondido no tecto da casa de Kalupeteka, acabou por testemunhar o massacre do Monte Sumi, sendo atingido com um tiro que lhe trespassou o tornozelo direito.
O primeiro aniversário do massacre dos peregrinos da seita “A Luz do Mundo” passou despercebido. Dias antes, a 5 de Abril, Kalupeteka, o líder da seita, foi condenado a 28 anos de prisão pelo Tribunal Provincial do Huambo, devido ao sangue derramado de oito agentes policiais e de segurança mortos durante a operação.
Maka Angola publica o primeiro de uma série de relatos de sobreviventes, de modo a assinalar a data e contribuir para um melhor entendimento do que realmente se passou.
O depoimento
Naquele dia, vestido de camisa preta, casaquete preto, calças jeans e chuteiras, Raul Xavier encontrava-se numa roda de conversa, juntamente com muitos outros fiéis, na área dos “bate-chapas”, o conglomerado de casotas de chapas de zinco, onde se alojavam os peregrinos.
Perto das 15h00, “demos conta de que o sítio já estava cercado pela Polícia de Intervenção Rápida e tinham os canos apontados para os bate-chapas”, relata o crente. A testemunha afirma ter visto também uma carrinha, de cor azul escura, “com uma metralhadora grande montada na carroçaria apontada contra o areal” [onde se reuniam os fiéis]. O outro carro trazia cães.
Um grupo de oficiais dirigiu-se ao local onde se encontrava Kalupeteka, junto à sua residência de alvenaria, a certa distância dos “bate-chapas”. “Ouvimos um disparo. Não vimos. Então correu a palavra de que a polícia estava a disparar contra o profeta. Ouvimos que o disparo foi contra o corpo do profeta e era mesmo para matá-lo, quando quatro agentes tentavam segurá-lo. Só por um milagre não foi atingido”, narra a testemunha.
Após o disparo, segundo Raul Xavier, deu-se início ao tiroteio. “Apanhei um tiro no pé, vi alguns a cair [baleados]. Fui o primeiro a ser atingido pelos disparos. Os outros vieram socorrer-me e puseram-nos sentados, encostados à parede da casa do profeta. Éramos seis feridos”, revela.
“Quando os fiéis viram que a polícia estava a matar, aí foi mesmo correr contra eles. Aí era mesmo Deus. Só Deus. Eles [polícias] estavam a disparar contra nós e víamos os canos das armas, o vapor e o fumo. Não víamos as balas”, enfatiza o jovem.
Raul Xavier explica como então um grupo de fiéis se apossou de paus e outros objectos que conseguiram encontrar ali à mão. Com harmonia e desespero em simultâneo, conforme descreve o próprio, o grupo correu para a morte, entoando um hino de fé contra os agentes que disparavam.
Afirma ter testemunhado a pancadaria desferida contra um dos elementos da Polícia Nacional. “O polícia implorava para não o matarem. Gritava ‘não nos matem só, fomos mandados.’”, e o grupo continuou, tombando à medida que prosseguia.
“Os polícias levaram câmaras de filmar. Entraram em formação V e o operador de câmara estava posicionado junto ao carro que tinha o armamento grande”, prossegue. Raul Xavier faz uma pausa. Lamenta o que se passou no julgamento do seu líder e desafia as autoridades: “Eles deviam apresentar os vídeos que filmaram durante o massacre. É só vergonha.”
Mesmo que a comparação pareça desenquadrada, o interlocutor recorre à bíblia para explicar a coragem dos seus correligionários: “Um homem de Deus, mesmo com pedras, pode fazer frente a quem tenha armas. É como o David, que derrotou o Golias. Não foi o nosso poder, a nossa vontade, mas a força divina que nos fez aguentar.”
“Segundo a revelação divina feita ao profeta [Kalupeteka], nós só podíamos usar os paus. Não podíamos tocar em armas”, enfatiza o fiel.
Por volta das 20h00 do mesmo dia, três camiões Kamazes chegaram ao local, levando dezenas de efectivos das Forças Armadas Angolanas (FAA) para apoiar a operação da PIR.
O hino da morte
A sorte de Avelina, de 24 anos, e dos filhos Nandinho, de seis anos, e Ismael, de três anos, tornou-se para Raul Xavier numa preocupação maior do que a sua própria vida. O que teria acontecido à esposa, então grávida de nove meses, que se encontrava nos “bate-chapas”?
“Foi nessa altura que eu e o Samy, que apanhou um tiro no peito, no lado direito, subimos para a cobertura [de chapas] da casa do profeta. Escondemo-nos lá.” Raul Xavier lamenta que “a bala não saiu até hoje”, do peito de Samy.
Raul Xavier refere ainda como agentes da PIR encontraram quatro dos seis feridos sentados junto à casa de Kalupeteka. “Pediram-lhes para cantarem o hino que estávamos a cantar no momento em que iniciou o tiroteio. Depois despejaram-lhes em cima uma rajada. No dia seguinte começaram a matar todos os feridos e sobreviventes que encontravam.”
Assistindo ao horror, Raul Xavier e Samy decidiram arriscar a fuga. Na noite de 17 de Abril, mais de 24 horas depois do início do tiroteio, os dois desceram das chapas.
“Nós estávamos no meio deles. Saímos mesmo assim a arrastar-nos, até ao monte.” O então fugitivo descreve como passaram, na caminhada, por um reservatório de água onde “o mano Samy descalçou os botins [botas de borracha] dele e os encheu com água para bebermos”.
Pelo caminho também passaram por uma lavra da seita, onde tiveram tempo para recolher sete espigas de milho, duas abóboras e algumas batatas renas, que assaram num dos fornos que havia pelas lavras e por sorte estava ainda quente. Após um dia escondidos em arbustos, com o farnel preparado, a dupla buscou refúgio em lugar mais seguro, onde passaram sete dias.
“Deus é aquele!”, repete Raul Xavier. É assim que explica como o Samy, com uma bala alojada no peito, e ele próprio, com o tornozelo fracturado, conseguiam sobreviver.
“A minha situação era mais complicada, porque a bala partiu um osso no tornozelo e não se podia sarar a ferida. Usávamos uma planta medicinal, iumbi, que ajudava como desinfectante”, explica.
O sobrevivente sublinha que os militares montaram várias emboscadas na lavra, para capturar os fiéis escondidos que procuravam alimentos, numa operação apoiada por helicópteros. “Nós estávamos muito próximos deles [dos militares]. Ao sétimo dia, subimos o Monte Sumi.”
Passaram a noite no cimo do monte, aterrados com o movimento frequente de helicópteros. Ao amanhecer, conta, caminharam até à área do Coquengo, a norte do monte.
“Ali ficámos 16 dias sem ver pessoas. Só víamos os helicópteros a passar”, sublinha Raul Xavier.
Durante as duas semanas, os dois amigos alimentaram-se apenas de mel, três mandiocas e algumas goiabas recolhidas durante a caminhada. Acamparam numa zona plana, ao ar livre, próxima de um riacho.
No último dia, “vimos os militares a transportarem os bens que tinham saqueado no Monte Sumi”. Viram também um aldeão em busca de lenha junto do esconderijo, a céu aberto.
Raul Xavier notou, então, que, com a proximidade dos soldados e do aldeão, a sua segurança e do seu companheiro continuavam em risco. “Eu tinha dois telefones e tinha reservado ‘um pau’ de carga. Liguei aos nossos irmãos, a informar sobre a nossa posição, e eles foram buscar-nos. Circulámos mesmo de dia. Deus protegeu-nos e ninguém reparou na nossa presença até sairmos de lá”, conclui.
Raul Xavier reencontrou a esposa, Avelina, já na cidade do Huambo, e conheceu o Nunda, seu filho recém-nascido. No dia do massacre, a esposa caminhara toda a noite até à sede do município da Cáala, na companhia de um grupo de fiéis. Encontrou refúgio em casa de membros da seita, deu à luz no dia seguinte e foi denunciada por um informador. Na sequência desta denúncia, foi detida pela polícia, juntamente com outros membros da seita. Os homens foram levados, as mulheres recebiam castigos... Avelina teve sorte: alguns membros da seita deram-lhe 1000 kwanzas para apanhar um carro que a levou até à cidade do Huambo
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