Não, não nos silenciarão

Dos casos de intolerância religiosa que tem sido denunciados nos últimos tempos, o que mudou? Será que nunca foi assim, e agora que determinados grupos resolveram iniciar uma batalha entre o bem e o mal? Vejo pessoas interferindo neste contexto de forma pessoal, como se nossas denúncias fossem nomeadas, tivessem endereço, telefone e até CPF.

Dos casos de intolerância religiosa que tem sido denunciados nos últimos tempos, o que mudou? Será que nunca foi assim, e agora que determinados grupos resolveram iniciar uma batalha entre o bem e o mal? Vejo pessoas interferindo neste contexto de forma pessoal, como se nossas denúncias fossem nomeadas, tivessem endereço, telefone e até CPF.

A batalha entre o “bem e o mal” sempre existiu, as mortes, massacres e escravidão em nome de uma redenção espiritual tem séculos de História. O que acontece é que o movimento de reação a dominação hegemônica tem tomado força a cada dia, e isto tem incomodado.

Houve um tempo em que o povo de Santo vivia escondido e para não ser apedrejado, forjava outra “identidade religiosa”. E assim foi se acostumando a oprimir e coagir. Algumas pessoas têm sofrido muito com estas reações do povo de santo, e tem levado para o lado pessoal. Estas pessoas são vítimas de uma educação eurocêntrica e não se dão conta disso.
Faltam leituras que o façam pensar. Faltam leituras que os possibilitem a conhecer a História e principalmente a História contada pelo Outro. Assegurados pela “democracia” e “liberdade de expressão” determinados grupos (hegemônicos), acostumaram-se a insultar os Outros, aqueles que não se encaixam nos padrões da sociedade.

Neste caso específico, os membros das religiões de matriz africana. A nossa sociedade permite que façam piadas com os “macumbeiros” e que demonizem a religião e seus adeptos. Não é difícil escutar o “tá amarrado”, como eu ouvi enquanto passava pela rua, que é pública, no meu período de preceito. Eu nunca faria isso, porque prezo algo muito importante chamado respeito! Respeito este que não se tem quando de forma “inocente” se faz uma piada em relação ao Outro.
Em 1492, quando o Outro é “descoberto” ou encoberto(?), vem a modernidade como um fenômeno exclusivamente europeu. Surgindo o eurocentrismo e o mito da modernidade, onde de forma irracional, se justifica a violência sobre os Outros. De 1492 para cá (2015), as coisas não mudaram muito.

Por fatos ocorridos e noticiados em nossa sociedade, aquele que é considerado o Outro ( gays, negros, membros do culto de matriz africana… ), enfim todos aqueles que não se encaixam no padrão desta sociedade que foi fundada a partir da violência contra o Outro, tem tido continuidade nos dias atuais.

A violência e o preconceito contra os que aqui denomino Outros, tem tentado ser minimizado por falas do tipo: “tanta coisa na política atual para se preocupar…” Pergunto então, se o sofrimento do próximo não é algo para se preocupar?
O que Dussel (1993) descreve em 1492, é o cenário em eu presenciamos em 2015, com a diferença de que agora o ataque tem um contra-ataque do Outro que tem ocupado espaços que antes não tinham acesso. E isto tem incomodado, tem causado desconforto, pois é necessário manter uma relação diplomática com este Outro. Posso me colocar como exemplo, sou professora da rede pública e aluna do mestrado, cheguei a escola de branco e fios de conta, após a minha iniciação. Querendo ou não precisavam me aceitar em um espaço que de acordo com a nossa sociedade, este Outro não é pertencente. Não era, pois agora é a hora do contra-ataque, e estamos aí. Não para usar da ocupação violenta das grandes ocupações cristãs onde:
…Cortando à faca as cabeças dos andulezes mulçumanos em 1487, assim também acontecerá com os índios habitantes e vítimas do novo continente “descoberto”. Alianças e tratados nunca cumpridos, eliminação das elites dos povos ocupados, torturas sem fim, exigência de trair sua religião e sua cultura sob pena de morte ou expulsão, ocupação de terras, divisão dos habitantes entre os capitães cristãos da “Reconquista”. (DUSSEL, p.9)

Mas para atuar de forma epistêmica em locais antes não frequentados pelos Outros. Onde inicia-se uma disputa de saberes. Uma disputa epistemológica, onde outras pedagogias se fazem presentes. (ARROYO, 2014. p.34).
O longo caminho de destruição iniciado nestas ocupações violentas, tem sido refletidas nos dias atuais. A falta de conhececimento da história e a constante reprodução desta que vem sendo reproduzida por grupos hegemônicos, tem provocado uma perpetuação de discursos preconceituosos e racistas. Portanto, estes discursos ocorrem de forma natural, nas redes sociais e perigosamente nas escolas, onde são reproduzidos de geração a geração.

Quando não se tem argumentos a melhor maneira é atacar e através da violência tentar dominar. Sou candomblecista e nunca participei de nenhum culto na minha religião que incitasse o ódio a ouros grupos. Já freqüentei igrejaS evangélicas também, e como uma pessoa pensante, não é difícil perceber como os cultos incentivam ao preconceito. Passam horas e horas perdendo tempo em falar mal e demonizar as religiões de matriz africanas. Para este grupo, somos filhos do demônio, encostos e ficam o tempo todo invocando o diabo que sinceramente, ainda não conheci em nossos cultos no candomblé. Chego a pensar que o diabo é uma criatura inventada pelos cristãos, sim pode ser, para amedrontar aqueles que não conseguem pensar por si. E assim continua o massacre. Massacre este que ocorre no dia a dia quando, por exemplo, uma pessoa sabe que você pertence ao culto dos Orixás e fala: “ Mesmo assim Jesus te ama”. Ora! Quem disse que me importa se Jesus me ama ou não? Me importo de meu Orixá me ama. A vontade de responder “Oxalá também te ama” se perde quando penso que meu Orixá não serve como instrumento de ofensas e sim como algo que me fortalece e merece todo o meu respeito, amor e consideração. Mas se por acaso eu falasse: “Que Exu abra seus caminhos”, tenho certeza que aí sim, seria uma falta de respeito com o próximo e que não presto porque sou da “macumba” do diabo, do encosto e outras coisas mais.

Ver os comentários defensivo/ofensivo e que estão sendo levado para o lado pessoal, só me faz perceber o quanto as pessoas necessitam de uma minuciosa leitura da História a partir das perspectivas do colonizado. Porque a História contada pelo colonizador, esta já está entranhada nas veias da sociedade. Ver comentários de defesa pessoal de professores que são evangélicos, me preocupa no sentido de que ainda teremos alguns anos de perpetuação da ideologia dominante pelos anos que se seguem. De 1492 a 2015, só mudaram os sujeitos, pois as lutas, continuam sendo pelos mesmos motivos.

Apesar da Lei 10.639 e sua obrigatoriedade nas escolas, podemos notar o quanto sua aplicação ainda é precária ou inexistente. É um grande tabu falar da religião de matriz africana nas salas de aulas e o grande perigo de se tornar proibido este assunto, é que desta forma se alimenta o imaginário das pessoas. O não esclarecimento ou a forma errônea de se tratar o assunto é uma grande armadilha que pode contribuir para a manutenção dos preconceitos já existentes em nossa sociedade. Não é porque não se fala mal, que não se contribui para alimentar preconceitos. O silenciamento também é uma forte arma para a manutenção destes estereótipos e preconceitos. Eliane Cavalleiro (2012), fala sobre este silêncio na/da escola, este silêncio que sustenta o preconceito e a discriminação. De modo silencioso é que as situações de preconceito e racismo são ocultadas interferindo na socialização das crianças na escola. Mantendo a hegemonia de um determinado grupo na sociedade. De acordo com a autora, a linguagem usada na escola, seja ela verbal ou não, transmite valores preconceituosos e discriminatórios, comprometendo o conhecimento sobre outros grupos. Com isto, determinados valores reservados ao outro pela sociedade, são reafirmados no cotidiano escolar. O professor transmite aos seus alunos, suas concepções e percepções pessoais que foram adquiridos socialmente, além do padrão estabelecido pela sociedade. Portanto, “como sujeito, é compreensível, embora não seja aceitável, mas não como profissional da educação”. ( CAVALLEIRO, 2012).

Portanto, a mudança ocorre quando estes Outros não se permitem ser silenciados, “mostrando-se presentes, existentes, reagindo a seu silenciamento e ocultamento”. (ARROYO, 2014.p. 37). Por isso, não tentem nos calar, pois saímos do silenciamento que nos foram acostumados para existir na cultura, na religião, na política, nas escolas, nas universidades, enfim, em espaços antes não permitidos/frequentados.

Referências:

ARROYO, Miguel G. Outros sujeitos, outras pedagogias. 2 ed. Petrópolis- RJ: Vozes, 2014.
CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. 6ed. São Paulo. Contexto, 2012.
DUSSEL, Enrique. 1492 O encobrimento do outro: A origem do mito da modernidade. Petrópolis, RJ. Vozes: 1993.

*Kelly é mestranda em Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) – UFRRJ e professora da rede municipal de Seropédica RJ.
*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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