A multinacional que veio do Brasil
Vale conclui megaprojeto para exportação de carvão em Moçambique que expulsou mais de 10 mil pessoas e hoje emprega menos de 2 mil trabalhadores locais
“Para cada problema africano existe uma solução brasileira.” A frase do professor queniano Calestou Juma para celebrar a cooperação brasileira no governo Lula é lembrada com ironia pelo jornalista Jeremias Vunjanhe enquanto conversamos em um café no inverno ameno de Maputo. O jovem ativista de direitos humanos faz um paralelo com a Amazônia para explicar a decepção dos movimentos sociais de seu país com as promessas brasileiras. Lá como cá, ele me diz, a receita de desenvolvimento à base da exploração dos recursos naturais e incentivo ao agronegócio desandou em degradação ambiental e expulsão das comunidades tradicionais. Um problema gigante em um país em que 67% da população de 27,2 milhões de habitantes vive em áreas rurais. “A terra é o legado da independência para os camponeses”, ressalta Vunjanhe.
Desde a expulsão dos colonizadores portugueses, que submeteram os camponeses a trabalhos forçados em pleno século 20, a terra é do Estado em Moçambique. Naquele mesmo ano de 1975, Samora Machel declarou o país socialista e se tornou seu primeiro presidente. Em 1987, um ano depois da morte de Samora, o país massacrado por uma década de guerra civil recorreu ao FMI e teve de se declarar uma democracia nos moldes ocidentais, mas a Constituição de 1990 continuou a impedir a comercialização da terra. Legislação que se manteve depois da assinatura do acordo de paz entre a Frelimo (Frente da Libertação de Moçambique) e a Renamo (Resistência Nacional de Moçambique) em 1992.
Até hoje as duas forças políticas se enfrentam – no momento o país vive uma crise política e um surto de violência militar que geraram 6 mil refugiados no Malavi, mas se transformaram em partidos políticos bem diferentes de suas origens. A Renamo, que nasceu como guerrilha anticomunista financiada pelos países vizinhos e seus aliados na guerra fria, foi ganhando apoio dos camponeses moçambicanos até se tornar a principal força de oposição aos ex-revolucionários da Frelimo, que estão no poder desde a independência. Estes, por sua vez, são os responsáveis pela entrada dos projetos de desenvolvimento dos investidores estrangeiros, baseados na exploração dos recursos naturais e na concessão de terras, que pressionam o território dos camponeses.
Toda a região de influência da Vale, incluindo o recém-inaugurado corredor logístico de exportação de carvão, fica no norte do país, área simpática a Renamo. As minas ficam em uma área de 220 km2, concessionada à mineradora desde 2004, na bacia carbonífera de Moatize. É dali que vem a maior parte dos refugiados do Malavi, não reconhecidos como tais pelo governo. O distrito (município) de Moatize tem 80% das terras ocupadas pela mineração e fica na província (estado) de Tete, a mais atingida pelos atuais conflitos. Nas eleições passadas, mais uma vez vencidas pela Frelimo, a Renamo obteve a maior parte dos votos em Tete, gerando grande frustração na província – é o presidente eleito que indica os governadores em Moçambique.
O problema se repete nas províncias de Niassa e Nampula, atravessadas pela ferrovia controlada pela mineradora brasileira e por uma de suas acionistas, a japonesa Mitsui. Ali a inquietação dos camponeses também se deve à implantação de outro projeto polêmico, o ProSavana, em colaboração com os governos do Brasil e do Japão. A meta é “modernizar” a agricultura através da concessão de terras para a produção de commodities, tal como foi feito no cerrado brasileiro nos anos 1980, que resultou na expulsão da população tradicional. Uma história que eles temem que se repita em seu país.
Longe dos centros urbanos como a capital Maputo, no sul do país, a terra em Moçambique continua a ser um bem compartilhado nas aldeias, que vivem da agricultura familiar e mantêm os costumes e a língua de sua etnia há gerações. “Nos fóruns mundiais, os companheiros latino-americanos sempre questionam: por que vocês não assumem a identidade indígena como nós? Mas, respondemos, se dizer indígena significa que se é indígena em relação a alguém. Nós somos os donos do nosso país”, explica Vunjanhe, 31 anos, que nasceu em uma aldeia de Sofala e é um dos fundadores da Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (Adrecu).
Formada por jovens de origem rural como Vunjanhe, graduado na Universidade Eduardo Mondlane, a Adecru promove os direitos humanos levando informação à parcela mais pobre do país – com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,393 em 2013, um dos mais baixos do mundo e inferior à média da África subsaariana, de acordo com o Banco Mundial. Conforme o relatório da FAO, divulgado em outubro do ano passado, 25% dos moçambicanos passam fome, e a desnutrição crônica atinge 40% das crianças menores de 5 anos de idade. Na área rural, dois terços dos habitantes vivem abaixo da linha da pobreza e mais de 60% são analfabetos, segundo o relatório.
Vunjanhe conhece a rotina de trabalho com a enxada de cabo curto na machamba (roça) para garantir a chima, a papa de milho branco que é a base da alimentação moçambicana, e as hortaliças vendidas no mercado para completar a renda. Foi assim que conseguiu estudar – as escolas só são gratuitas até o fim do 7o ano e o material escolar é por conta do aluno. Ele também é funcionário da União Nacional de Camponeses (Unac) – que congrega mais de 100 mil agricultores familiares moçambicanos e vem constatando que as promessas de desenvolvimento podem trazer ainda mais pobreza para os que vivem da terra. Mesmo quando o PIB cresce mais de 7% ao ano, como acontece em Moçambique desde 2001.
Com investimento total de US$ 8,5 bilhões, equivalentes a 60% do PIB do país africano, o projeto Carvão Moatize, da mineradora Vale, é visto hoje como uma grande promessa frustrada de melhoria de vida da população. De 2009, quando a primeira mina de carvão a céu aberto começou a ser construída, à recente inauguração do Corredor Logístico de Nacala, com potencial para exportar entre 30 a 40 milhões de toneladas de carvão por ano, 3.165 famílias foram expulsas de suas terras pela companhia brasileira (1365 em Moatize e 1800 no corredor de Nacala). Outras 10 mil famílias “foram impactadas de outras formas, e as indenizações estão sendo realizadas de acordo com o que estabelece as leis vigentes em Moçambique e no Malavi”, conforme e-mail da assessoria de imprensa da Vale.
Do lado da geração de empregos, porém, a conta do megaprojeto é modesta. Com a conclusão das obras de ampliação das minas, que elevaram o potencial anual de produção de 11 milhões para 22 milhões de toneladas de carvão por ano, e do corredor logístico que atravessa o norte do país (e o vizinho Malavi) até o porto de Nacala-a-Velha no Índico, a companhia tem hoje apenas 2 mil trabalhadores próprios no país – 1.860 deles, ou 93%, moçambicanos – e cerca de 9 mil trabalhadores terceirizados, segundo sua assessoria de imprensa. De acordo com o Relatório de Sustentabilidade da Vale de 2013, porém, apenas 35% dos cargos de liderança são ocupados por moçambicanos.
SUL-SUL
Moçambique foi um dos primeiros países visitados por Lula ao assumir o poder em 2003. O então presidente da Vale, Roger Agnelli, estava na comitiva presidencial. Um dos pilares da política Sul-Sul defendida pelo ex-presidente é a entrada de empresas nacionais no continente africano, que criaria possibilidades de desenvolvimento para os países pobres ao mesmo tempo em que abriria oportunidades para o capital nacional. Em artigo assinado na Folha em maio de 2003, três meses antes da visita, o então chanceler Celso Amorim já falava em “um grande interesse moçambicano em contar com a participação do Brasil no projeto de exploração de carvão de Moatize”.
Como revelariam os e-mails trocados pela embaixada de Maputo e Brasília entre 2003 e 2004, obtidos e publicados pela jornalista Amanda Rossi no livro “Moçambique, o Brasil é aqui”, a Vale contou com o empenho sem limites do Itamaraty para obter a vitória na concorrência internacional pela concessão da mina de carvão em Moatize. Do perdão da dívida de Moçambique com o Brasil, prometido por Fernando Henrique Cardoso mas concretizado no governo Lula, a favores pessoais aos envolvidos no processo de concessão.
O contrato para explorar carvão por 25 anos (renováveis por mais 25) foi assinado, em junho de 2007, no mandato do presidente Armando Guebuza (2005-2015), favorecendo a companhia brasileira com uma série de isenções tributárias. Agnelli se tornaria próximo do ex-presidente moçambicano, um dos homens mais ricos do país, a ponto de fazer parte de seu Conselho Internacional, e continuou fazendo negócios no continente mesmo depois de ter deixado a presidência da Vale, em 2011. Em 9 de maio daquele ano, um domingo, Guebuza e Agnelli detonaram a primeira carga de explosivos que deu início à exploração de carvão na mina de Moatize.
As comunidades ficaram com as más notícias. Até a chegada da Vale, o carvão era extraído por uma pequena empresa, a Carbomoc, em minas subterrâneas, mas a mina a céu aberto expulsou os moradores dali. “O governador [Ildefonso] Muananthata disse para nós: vocês estão a cagar em cima do dinheiro, vocês tem que sair”, contam Alfredo Abílio Razão Algundia, Bissai Castro Amoda e Ajuda Saeme Camunda, oleiros de Chipanga, uma das quatro comunidades expulsas pela Vale. A mesma frase seria repetida à Pública por Rapido Bencham, um ancião expulso da mesma comunidade, reassentado no bairro 25 de Setembro, na periferia de Moatize.
Hoje Chipanga Premium HCC é a marca do carvão metalúrgico exportado pela Vale pelo porto de Nacala-a-Velha, no oceano Índico, que substituirá o uso do porto da Beira, compartilhado pelas outras mineradoras, com a entrada em operação do novo corredor logístico. Em entrevista à Pública, em novembro do ano passado, o ex-chanceler Celso Amorim defendeu a ação pró-Vale no governo Lula como “estratégica” para suprir as necessidades brasileiras de carvão metalúrgico, insumo essencial da indústria siderúrgica. De acordo com o site da empresa, os cerca de 4 milhões de toneladas exportados anualmente do início da produção até o ano passado foram para a Ásia oriental, Índia, Europa e Américas. A assessoria de imprensa não forneceu os dados solicitados sobre a porcentagem desse carvão que veio para o Brasil.
Já os reassentamentos da Vale em Moatize, em especial a vila de Cateme, que abriga 716 famílias em área rural, estão entre os campeões em violações de direitos humanos em remoções, de acordo com organizações como a Human Rights Watch (HRW), que em 2013 publicou o relatório “O que é uma casa sem comida?”, sobre os reassentamentos das mineradoras estrangeiras em Tete. Falta de água potável, insegurança alimentar, separação de famílias, descumprimento de promessas sobre áreas e qualidade de solo para agricultura, projetos de geração de renda e estrutura das casas oferecidas estão entre os problemas listados pela ONG.
No final de 2014, o relatório da HRW e a atitude da Vale perante as recomendações da ONG estavam entre os casos apresentados no Fórum Business and Human Rights da Onu em Genebra. Em entrevista concedida à Pública por email, Nisha Varia, diretora da HRW e autora do relatório, disse que visitou os reassentamentos em maio de 2014 e constatou que a Vale havia tomado “algumas atitudes concretas para mitigar os problemas apontados no relatório”. O principal passo foi “providenciar aos moradores de Cateme uma quantia em dinheiro para que comprassem mais um hectare de terra em um lugar escolhido por eles com solo e quantidade de água adequados ao plantio”. Mas, acrescentou: ” mesmo que todas as recomendações do relatório sejam contempladas, o que vai exigir mais esforços da companhia, os erros cometidos ali foram tão grandes que pode levar anos para que as comunidades consigam se reerguer”, recuperando a autossuficiência que tinham antes da remoção.
Apesar de insistentes pedidos da Pública, a Vale não quis indicar um porta-voz da empresa para falar sobre os reassentamentos. Leia aqui a nota enviada pela empresa por email sobre o assunto.
A riqueza que agrava a pobreza
A falta de oferta de empregos e de investimento regional está entre os motivos apontados pela pesquisadora Fátima Fernandes Mimbire, do Centro de Integridade Pública (CIP), para explicar por que “é complicado falar em benefícios” trazidos pela mineração, apesar do indiscutível crescimento econômico do país.“Na região onde esses recursos são explorados, há um grande número de remoções e, como não se exige nada das empresas estrangeiras, que são aliadas da elite política do país, as comunidades vivem esse desenvolvimento como um pesadelo”, explica a pesquisadora da ONG sediada em Maputo, que reúne diversos bancos de dados sobre o país. “Por outro lado, os empregos para a mão de obra local são provisórios, acabam quando as obras ficam prontas, enquanto a mão de obra qualificada, permanente, é trazida do país de origem”, ela diz.
Em artigo publicado na Review of African Political Economy, o doutor em economia Carlos Nuno Castel-Branco, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Iese), mostra que, apesar de Moçambique ser um dos três países africanos com maior investimento estrangeiro, a porcentagem da população moçambicana abaixo da linha da pobreza – 54,7% – se mantém inalterada desde 2003. O motivo? “Cerca de três quartos da taxa de crescimento do PIB e das exportações são determinados por grandes empresas intensivas em capital, que empregam pouco [25 mil trabalhadores em todo o país], focadas no complexo mineral-energético”, diz o economista Castel-Branco, acrescentando que o foco da produção não está nas necessidades da população, mas na demanda externa por commodities.
Os pesquisadores do CIP e do Iese observam também que o endividamento público só aumentou nesse período, outra preocupação importante em um país que depende de ajuda internacional para financiar cerca de um terço de seu orçamento. O que se explica tanto pelo investimento estatal prioritário nos projetos das multinacionais como pelos subsídios concedidos a essas empresas sob forma de renúncia fiscal. “Por exemplo, uma Vale tem por aí oito a dez anos a pagar metade do IRPC [Imposto de Renda para Pessoas Colectivas], além de desconto no IRPC da distribuição dos dividendos, dedução de prejuízos fiscais, e mais uma série de benefícios”, detalha a pesquisadora do CIP. “Ou seja, o Estado está a perder receitas que poderiam ir para áreas necessitadas como educação e saúde”, diz. Moçambique tem 42% da população analfabeta e expectativa de vida de 52 anos de idade.
Fátima sublinha que os prejuízos para os moçambicanos que vivem nas áreas exploradas pelas multinacionais são ainda maiores. “As mineradoras se aproveitam da fragilidade institucional do país para desrespeitar os padrões mundiais para os reassentamentos. É só visitar Cateme, o reassentamento da Vale, para ver o quanto esse processo tem sido desumano, cruel”, afirma a pesquisadora.
NA TERRA ARRASADA DAS MINERADORAS
Na cidade de Tete, as mulheres ainda lavam roupa no rio Zambeze, povoado de crocodilos e hipopótamos, indiferentes ao trânsito na ponte Samora Machel, um dos sintomas do aquecimento da economia trazido pela mineração. Enquanto a população de Moçambique cresceu 21% entre 2007 e 2014, na província de Tete o aumento foi de 35%, passando de 1,7 milhão para 2,4 milhões no mesmo período. No distrito de Moatize, onde ficam as reservas de 2,5 bilhões de toneladas de carvão, a população ultrapassa 300 mil pessoas, superando os 200 mil habitantes da capital provincial, Tete.
De dentro do chapa – a lotação precária que faz o transporte público tanto em Maputo como em Tete – não há como deixar de notar o esgoto correndo a céu aberto nas ruas de terra, lotadas de gente, a alguns quarteirões do centro. Mas é fácil encontrar um hotel cinco-estrelas, um bom restaurante ou um supermercado moderno onde se vende cerveja importada para “os brasileiros de Tete” e quase não se escuta o Nyungwe (nhugué), o idioma banto falado por 400 mil pessoas nas duas margens do rio Zambeze.
De acordo com dados do Cadastro Mineiro, divulgados pela Human Rights Watch, o governo de Moçambique aprovou pelo menos 245 concessões mineiras e licenças de exploração na província de Tete até outubro de 2012, cobrindo aproximadamente 34% de toda a sua área. Em Moatize, cerca de 80% da terra foi designada para concessões de mineração e licenças de exploração. Somadas às licenças então em andamento, essa porcentagem sobe para 60% do território de Tete.
“Foi no comecinho dos anos 2000, com a alta mundial do carvão. Ninguém sabia o que estava a chegar. De repente foi tudo tomado pelas mineradoras. Olhando para a geografia de Tete, é impressionante. Parece que não temos mais espaço nem para reassentar as pessoas. Estamos agora a correr atrás dos prejuízos ambientais, sociais e econômicos que estão a impactar as comunidades”, conta Rui Caetano, na sede da organização fundada e dirigida por ele, a AAAJC – Associação de Apoio e Assistência Jurídica às Comunidades. “Nosso papel essencial é de conscientização da comunidade sobre os seus direitos. Eu sempre digo que o conhecimento provoca conflitos, então nós provocamos conflitos”, explica, risonho, o moçambicano de Tete, que passa do português para o nhugué para atender as muitas ligações telefônicas. Quando retoma a conversa, ele explica que atua também juridicamente em defesa da população local em parceria com a Liga Moçambicana de Direitos Humanos.
“Nós temos uma lei que consideramos uma das mais progressistas do mundo e que assegura a posse da terra por uso das práticas costumeiras. Basta estar a ocupar um espaço há mais de dez anos, a comunidade tem posse da terra. Não precisa ter um documento, é dona da terra. Mas existe a outra face que diz: a terra pertence ao Estado; em caso de utilidade pública, pode-se expropriar a terra. Aí é onde as coisas não estão muito bem-feitas. Mesmo com o documento em papel, quando há a necessidade de instalar um investimento público, que interessa ao Estado, eles expropriam a terra. Nós temos muitos casos aqui na província de Tete com relação à Vale, Rio Tinto, as empresas indianas estão aqui, a Jindal, todas essas empresas expropriaram terras dos camponeses. Umas reassentaram. E os reassentamentos sabes que foram polêmicos pela qualidade das casas, pela qualidade dos solos, pelos lugares onde as pessoas foram enviadas”, comenta.
A organização de Rui assessorou organizações internacionais como a Oxfam e a Human Rights Watch em pesquisas sobre as comunidades removidas pelas mineradoras em Tete. Além de pioneiro, o processo de remoção da Vale foi o que expulsou mais gente: 1.365 famílias a partir de 2009. Mais do que a anglo-australiana Rio Tinto (84 famílias em 2011 e 595 em 2013) e a indiana Jindal (484 famílias a partir de 2014) somadas. Das 1.365 famílias expulsas pela Vale, 1.004 foram reassentadas, 106 famílias receberam “compensação assistida” (compra de outra casa) e 254 famílias, “compensações simples” (dinheiro) por “casas, quintas e prédios comerciais na área do Plano do Reassentamento”, de acordo com a mineradora.
O prejuízo para as comunidades começou com a divisão em dois reassentamentos diferentes: o 25 de Setembro, com 288 casas para famílias com ocupações “urbanas”, na periferia da cidade de Moatize; e a Vila de Cateme, distante 37 km dali, com 716 casas para os que viviam do cultivo da terra. Uma separação que não faz sentido no modo de vida daquela população, como explica Rui. “As famílias rurais são extensas e, conforme a cultura, não monogâmicas, há toda uma forma de elas se organizarem geograficamente nesse sentido. Além disso, é comum que alguns membros da família trabalhem na cidade enquanto outros ficam nas machambas, ou que façam os dois trabalhos para melhorar a renda familiar”, diz. “As pessoas tiveram que escolher entre ter uma área para as machambas ou morar perto da cidade, enquanto antes elas plantavam e viviam a poucos quilômetros do mercado. Muitos idosos, por exemplo, foram para o assentamento urbano para ficar perto dos filhos e dos serviços de saúde e aí ficaram sem as machambas”, conta.
“Eu acompanhei o reassentamento da Vale desde que eles começaram a fazer as primeiras pesquisas, em 2005. E o reassentamento da Vale foi um reassentamento fraudulento. A nós, as organizações, não foi permitido participar do processo de decisão. As reuniões que eles faziam com a comunidade eram apenas para comunicar: ‘Olha, aqui há recursos, vocês vão ter que sair, mas vamos colocar as comunidades em outros sítios com condições melhores do que essas’. Era uma consulta enganosa. E as pessoas, dentro da ignorância e na perspectiva de que ‘sua vida vai melhorar’, aceitam: ‘Vou ter uma casa nova, um emprego’. Sabíamos que o emprego não era permanente, era temporário, só para a construção da Vale. Havia aquelas empresas terciárias que absorviam mão de obra – pedreiros, carpinteiros, motoristas – e agora não é mais necessária. Na fase do funcionamento, precisam de pessoas qualificadas.” Dados dos sindicatos apontam para 12 mil pessoas que passaram para o desemprego, conta Rui. “Agora, a comunidade está a saber que, afinal de contas, foi uma farsa. O discurso da Vale era enganoso, não havia emprego nenhum, o desenvolvimento que havia era só pra eles. Nós passamos por esses bairros, vocês viram. Essa é uma cidade mineira. Não tem saneamento básico, calçamento… Justifica? É muita hipocrisia mesmo”, diz o diretor da AAAJC.
Rui não isenta as autoridades moçambicanas da responsabilidade pelo sofrimento das famílias expulsas pela Vale. “Eles [governantes] estão com a Vale, sempre estiveram. Quando houve o primeiro protesto por causa dos problemas no reassentamento de Cateme, em 10 janeiro de 2012, e as pessoas bloquearam a ferrovia da Vale e paralisaram o comboio de carvão, o protesto foi barbaramente reprimido pela Força de Intervenção Rápida da polícia, comprometida em proteger a logística da Vale sempre que há greves e manifestações”, afirma.
No dia 19 de fevereiro passado, a mesma Força de Intervenção Rápida da Polícia da República de Moçambique abriu fogo contra os grevistas da Vale em Tete, “em uma aparente tentativa de fazê-los voltar ao trabalho”, de acordo com a imprensa de Moçambique. A greve acabou no mesmo dia, como “fruto do diálogo entre trabalhadores, a Vale, sindicato e governo”, diz a companhia.
PROTESTOS PÚBLICOS, JANTARES PRIVADOS
Os protestos de 2012 resultaram na detenção de 14 reassentados e seis feridos graves e repercutiram na Rio+20, realizada em junho do mesmo ano. Com a pressão dos movimentos sociais, Vunjanhe, barrado sem explicações no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, conseguiu retornar a tempo de denunciar na conferência as violações aos direitos humanos, os danos ambientais e o desrespeito às regras internacionais dos reassentamentos das mineradoras estrangeiras em Moçambique.
Enquanto isso, como noticiou a imprensa de Moçambique, o presidente Armando Guebuza jantava na casa de Murilo Ferreira, o novo presidente da Vale.
Em julho de 2012, logo depois da Rio+20, a Vale assinou um memorando de entendimento com o governador da província de Tete para realizar reparos e adicionar fundações em todas as casas (mal) construídas pela empreiteira Odebrechet, aumentar as oportunidades de capacitação e fornecer dez árvores frutíferas para cada família nos reassentamentos de Cateme e 25 de Setembro. Em outubro do mesmo ano, porém, em uma carta ao presidente Guebuza, 28 ONGs do país tiveram de repetir as queixas de “infraestrutura de má qualidade, más condições de habitação, concessão de terra imprópria para a prática de agricultura, dificuldade de acesso à água potável, falta de transportes” que persistiam nos reassentamentos da Vale. Em abril de 2013, os protestos que bloquearam a ferrovia se repetiram, dessa vez noticiados pela imprensa brasileira.
Quando estivemos na vila de Cateme, em agosto de 2015, as casas estavam sendo remendadas pela segunda vez, agora pela empresa moçambicana Ceta, de propriedade de um preposto do ex-presidente Armando Guebuza. Foi também a Ceta que fez as obras do reassentamento de 25 de Setembro e do bairro vizinho, reservado aos funcionários moçambicanos da companhia. Não tivemos acesso ao bairro dos funcionários brasileiros da Vale nem à área de operações da empresa, apesar do pedido para visita feito três semanas antes da viagem. Sheila Cheman, da assessoria de imprensa da Vale Moçambique, enviou a seguinte resposta: “infelizmente não estamos nesta fase abertos a visitas externas devido a questões estratégicas, pois a nossa postura é low-profile e muito orientada para produção”.
CAMPONESES NO EXÍLIO
Os imensos embondeiros – que conhecemos como baobás – dominam a paisagem do vale do Zambeze, com seus largos afluentes, entre Tete e Moatize. Estão com as folhas secas no inverno, mas as famílias guardam o malambe – o fruto amarelo do baobá, rico em vitaminas e sais minerais – para misturar no mingau de chima que alimenta Rapido Bencham, 74 anos, enquanto ele trabalha na carpintaria do quintal de sua casa, no reassentamento 25 de Setembro, na periferia de Moatize.
Raul Luís Pensado, da AAAJC, faz o papel de intérprete. Pergunta em nhugué, tentando vencer o barulho da serra, se ele pode nos contar a sua história. O homem magro e rijo para de cortar a madeira e nos olha por cima dos óculos. Quando responde, o tom é de inconfundível mau humor. Pensado traduz: “Aparece pessoa, conta, aparece pessoa, conta. A vivência é assim, colocaram a gente nessa casa”, diz.
Ele nos aponta umas cadeiras no quintal, e Pensado toma coragem de puxar conversa de novo. Depois nos conta que a família dele – são quatro filhos e seis netos – é natural de Chipanga, como seus avós e bisavós. Ele tem saudade do rio, da casa em que morava, das árvores, da vida com a comunidade unida. “Aqui tem muito desemprego, jovem sozinho, isso pode trazer criminalidade”, traduz Pensado. “A mãe quer dizer alguma coisa”, atalha, chamando a atenção para a mulher de Rapido, que se aproxima. Sanista Massavula aperta nossas mãos e nos olha com tristeza no fundo dos olhos. A voz dela é aguda, parece zangada. Quando acaba de falar, ele traduz: “Eles estão a dizer que somos analfabetos, que somos brutos e então vão buscar pessoas de Maputo para trabalhar [na Vale]. Agora estão vedando a mata, porque ali ainda dá para se viver da mata, apanhando lenha, maçanica [maçãzinha da qual se faz compota], malambe, e aqui tem que pagar até pela água, que é pouca. Antes era o rio, cada um ia pegar”.
Pensado conta que eles se sentiram enganados porque receberam indenização pequena demais pela machamba e porque disseram que iam receber uma casa melhor. Rapido faz questão de mostrar as rachaduras na parede, os panos cobrindo as janelas, o telhado de zinco. “Me puseram aqui porque disseram ‘ele é carpinteiro, tem ocupação’, mas quando chegamos não encontramos os bens que tínhamos. Pensei que ia morrer, deixar em Chipanga uma casa boa para os meus filhos, com sombra, fruta, mandioca, mapira, feijão, amendoim. Mas é isso que estão a ver, quando chove, pinga aqui dentro”, diz.
Peço que ele me conte como foi que ficou sabendo que teria de deixar sua casa. “Chegaram nas casas e começaram a escrever. Por número na porta. Apareceu o governador e disse: ‘Vocês saiam porque estão a sentar em cima de riqueza, a cagar em cima de dinheiro’. Se recusavam, eles diziam: ‘Vamos trazer máquina Caterpillar e empurrar essas casas’. Levavam para o restaurante, galinha assada, cervejinha. E aí diziam que estava tudo bem, mandavam entrar no autocarro, a máquina já estava lá para derrubar a casa”, conta, traduzido por Pensado. “Criamos comissão dos moradores para negociar com a empresa e o governo. O que faltou? Eles serem sérios na linguagem. Não apanharam nada do que foi prometido”, continua o carpinteiro. “Não nos entregaram um papel, um documento, a nossa vida, pra eles, é um jogo.”
Pensado explica que, em junho de 2013, as famílias do reassentamento 25 de Setembro paralisaram o processo de reabilitação das casas, protestando contra a qualidade das obras. Enquanto os moradores fechavam as passagens para o estaleiro [canteiro de obras] da Ceta, encarregada das obras de reabilitação, a polícia cercava o bairro. Depois traduz para o nhugué o que contou para nós. Rapido finalmente abre um sorriso. “Quando houve protesto, a Ceta se retirou, tirou as máquinas e saiu correndo”, ele diz, finalmente abrindo um sorriso. “Precisa fazer alguma coisa que tenha resultado, que traga a mudança, é a nossa esperança”, sentencia.
TRISTEZA EM CATEME
Entre Tete e Moatize, passamos por comunidades que tiram areia do rio, lenha das matas, barro para fazer tijolos. Chipanga era uma dessas aldeias e, mesmo com as casas demolidas, alguns dos antigos oleiros acampam por lá, dormindo nas tendas improvisadas até fazer a queima dos tijolos. A indenização que eles receberam da Vale quando foram expulsos não é o suficiente para substituir a renda que tinham mensalmente. Eles precisam fabricar e vender os tijolos para fazer as compras em Moatize e levar para as famílias, que vivem a 37 km da cidade.
Na vila de Cateme não há emprego, nem roça, nem fruta, nem mesmo sombra. Também não há peixe para pescar, nem rio pra beber e tomar banho. Aqui a água sai aos trancos dos fontanários de metal para encher os galões de plástico amarelo como a terra seca que enche os olhos de poeira e desolação. Os cabritos e galinhas não estão à vista. E ninguém aparece para oferecer hortaliças e milho assado, como acontece sempre que paramos o carro nas aldeias de Moçambique.
No mercado de Cateme, uma construção pequena e nova no meio do nada, as hortaliças oferecidas para a freguesia escassa são compradas em Angônia, a 250 quilômetros dali, como me conta Anista Socosse Chagaca. O marido trabalhava na Vale, mas está desempregado, e ela pega quatro conduções para comprar as hortaliças por um preço melhor e revender ali. “Muita gente ainda não consegue produzir porque sua machamba está em terreno rochoso”, explica. “A nossa zona era mais preferida, tínhamos de tudo, mas tivemos que vir para cá, o que fazer? Somos pessoas acostumadas a trabalhar”, diz a mulher, removida em 2010 de Mithete, com nove filhos para criar.
Antes de chegar à aldeia coberta de areia vermelha, tivemos que perder um bom tempo na sede da Administração Distrital (prefeitura) para conseguir uma permissão para visitar o reassentamento. Depois que ficou tristemente famoso, as autoridades moçambicanas passaram a exigir que os líderes comunitários só falassem com jornalistas e ativistas da sociedade civil que tivessem “credenciais” para visitar Cateme. Conseguimos apenas um protocolo de espera – não havia nenhuma autoridade – o suficiente para que o secretário local da Frelimo, José Lapisson, 42 anos, aceitasse nossa presença por ali. Ele deixa claro que ainda está zangado com a Vale e com o governo. “Eu tenho duas famílias – duas esposas – e aqui me deram uma casa só, como vou fazer?”, reclama em português antes de conferir a identidade de Pensado, da AAAJC. “Ah, você é, como se diz mesmo? Da sociedade civil?”. Ele confirma e explica que sou jornalista brasileira, fazendo um trabalho em Moçambique. Por fim, ele permite que eu ligue o gravador e me conta sua história.
“Eu estava lá desde o início, quando o presidente Chissano fez uma reunião em Tete e pediu para ajudar a empresa. Em 2005, eles já estavam chegando, para fazer as pesquisas, e do princípio até no fim eu trabalhei muito com a Vale. Mas não recebi nada da empresa, nem obrigado. Eu que andava a mobilizar as pessoas que eles precisavam remover na minha comunidade, Mithete, a primeira a sair. A equipa estava a andar comigo no campo, eu começava com eles às 7h até às 17h e tanto, eu andava com sete a oito carinhas da Vale, ia em todas as zonas. Ninguém que não me conhece. Eu a dizer para eles: ‘olha naquela casa não podemos chegar agora’. Porque eu conheço o defeito de cada pessoa. Sabia a hora certa de falar com cada um, de convencer a aceitar. Mas as promessas estão a me doer agora, fomos prometidos e a empresa não cumpriu”, afirma.
Ele aponta para a casa onde vive. “Vocês olham aqui. Tem uma sala, um quarto. O que disseram? Vão a receber uma casa com dois quartos, uma sala. Quando viemos aqui foi ao contrário. Outra coisa: prometeram-nos quando forem pra lá vão ser beneficiados com alimentação. Porque no ano de remodelação de lá para cá viemos atrasados, não dava mais tempo para cultivar. Passamos a fome. Outro caso: andaram a distribuir as machambas e recebemos nas rochas, que não interessa a ninguém. Não tem como semear. Depois o tipo das casas, não é o tipo que nós queríamos. Prometeram boas casas, e o que você vê? Rachas. Tudo rachado. Discutimos tanto, prometeram duas vezes e mandaram uma empresa chamada Ceta. Reabilitaram as casas duas vezes. E reclamamos: nem vale a pena reabilitar essas casas. Deveriam entregar dinheiro para cada pessoa construir sua casa. Mas aí dizem: ‘vocês querem dinheiro, querem dinheiro’”, balança a cabeça.
Os vizinhos vão se aproximando sem disfarçar o riso. Um deles, grita: “Chefe, chefe, não está bom?”. Ele finge não ouvir e continua. “Prometeram um campo de futebol melhor que na cidade. E depois esse campo foram fazer em Moatize. Na vila. Prometeram vamos dar um transporte coletivo, machimbombo. Vieram aqui, de fato, mas só circulou um ano. Só agora mandaram outro mas vem de tarde somente. De manhã não. E se vai à vila de tarde vai dormir aonde? E viram como está a estrada?”
Uma roda vai se formando. As reclamações se multiplicam. Tem famílias que estão sem machamba desde 2010, dizem. Recentemente a empresa finalmente cumpriu a promessa de indenizá-los em um hectare de terra – eles haviam prometido lotes de 2 hectares para as machambas mas só entregaram um.
Joaquim Afonso Chafatar, 55 anos, toma a palavra. Conta que é cego, mas nem por isso deixou de participar das manifestações de 10 de janeiro de 2012. “Me jogaram gás e eu não conseguia saber por onde ir”, conta. Ele diz que protestou por causa dos filhos. “Deram a escola primária, secundária que é boa, mas nem todos conseguem dinheiro para pagar o fardamento (uniforme) os livros, cadernos. Prometeram empregos para os jovens e aqui todos os jovens estão desempregados. Vai trabalhar aonde? O que nós vamos fazer aqui? A Vale não empregou ninguém. Empregaram pequeninho e precisavam de jovens que tinham 12a [equivalente ao último ano do Ensino Médio] E todos vão ter essa classe? Esse jovem com 12a não poderia ter um auxiliar? Só a pessoa que tem 12a tem direito de trabalhar?”, pergunta indignado.
O sol vai se pondo na aldeia empoeirada. Não há nada para comprar ali, nem o caril (a “mistura” de carne, legumes ou feijão) para acompanhar a chima. Temos que ir embora. Antes de se despedir, Lapisson diz, como quem se desculpa: “Eu sou secretário do partido do governo, mas isso não quer dizer que eu também não tenha sido enganado. Me dói ver minha comunidade assim. Essa empresa explorou-nos mesmo. Mas não tínhamos escolha. Alguns ficaram em Mithete. Agora estão a beber água turva, água contaminada, a política deles é de terra arrasada”.
AFINAL, O QUE ACONTECEU COM A FRELIMO?
Impactada pela realidade de Cateme e com a fala do secretário da Frelimo – há sempre um representante do partido do governo em todas as comunidades – procuro o antropólogo José Luís Cabaço, 74 anos, em busca de explicações. Descendente de portugueses, com formação em sociologia na Itália e doutorado de antropologia na Universidade de São Paulo, ele nunca se conformou com as cenas de camponeses castigados com palmatória e de homens acorrentados indo para o chibalo (trabalho forçado) que assistiu na infância em Moçambique. Juntou-se aos revolucionários da Frelimo e chegou a ser ministro do governo Samora Machel, mas se afastou do governo da Frelimo no final dos anos 1980.
“O grande erro que nós cometemos após a independência foi exatamente tentarmos modernizar o país com rapidez”, diz. “Como agora?”, pergunto. A resposta é incisiva. “A gente fazia muitas asneiras mas sempre se preocupava com o que estava acontecendo com o povo. O povo hoje não existe para a Frelimo, sinceramente não existe. Existe o dinheiro só”.
Dá um gole no café, antes de explicar: “Os pais dos ministros são camponeses, o meus não eram, mas os deles são. Como eles podem, por exemplo, não compreender o problema dos reassentados, se eu compreendo? A população, tradicionalmente, aqui, está profundamente ligada à terra. E a terra significa propriedade da família, o local aonde estão enterrados os mortos e aonde você estabelece a sua ligação com a ancestralidade; significa os laços de solidariedade que foram criados ali naquela comunidade ou naquela região. Quando você desloca uma população, a coisa que vão retirar é a casa, mas o que as populações vão perder é essa capacidade de sobrevivência, que é mais espiritual”, diz.
“O problema é que aqui não há um processo de desenvolvimento, o que se faz é um projeto de desenvolvimento. Que põe de lado tudo que é história, tudo que é cultura, tudo que é a essência da vida das pessoas. E as pessoas reagem. O único desenvolvimento possível neste país é um desenvolvimento em que as relações da modernidade, seja ela qual for, são absorvidas paulatinamente, lentamente e gradualmente pelas populações, e elas, no seu próprio patrimônio cultural, integram o fator desenvolvimento. Então, elas partem pra um processo de desenvolvimento a partir da sua própria cultura, da sua própria história, não esse projeto imposto pelo governo”, aprofunda.
Comento com ele que no Brasil ainda se vê a Frelimo como “esquerda” e a Renamo, como “direita”. “Nem uma coisa nem outra. A Renamo é basicamente um movimento de camponês. As pessoas esquecem que uma guerra civil de 16 anos tem uma dinâmica… O início da guerra com a Renamo é a continuação da guerra colonial, porque é a confrontação com o colonialismo, nesse caso já não português, mas sul-africano, britânico. Mas a Renamo depois cria uma dinâmica própria, ela vai se impondo como partido da tradição, o partido da sociedade camponesa. Quer dizer, de forma muito bruta, a Renamo é o partido da tradição e a Frelimo é o partido da modernidade. Da má modernidade”.
E, nós, brasileiros, somos imperialistas?, insisto. “Os capitalistas brasileiros são imperialistas como os capitalistas de qualquer país. Mas eu acho que a política do governo brasileiro não é imperialista”, diz. “A gente é que tem que defender e dizer ‘não queremos este tipo de investimento aqui, vão se embora!’. Mas não há nada disso, por corrupção e por incompetência, as duas coisas. A Frelimo desaprendeu completamente. A esquerda hoje em Moçambique são os movimentos sociais e a sociedade civil”, define.