Este 13 de maio de 2013 marca os 125 anos da Abolição da Escravatura no Brasil. Na contramão da História considerada oficial, esta efeméride não reduz-se à promulgação da Lei Áurea, subscrita pela princesa Isabel, que num ato de extrema “bondade” teria concedido a liberdade aos negros escravizados, mas, fundamentalmente, traz à superfície as múltiplas formas de insurreição negra (quilombos, revoltas, atos de rebeldia, instauração de uma tradição negro africana) como núcleos vitais de resistência coletiva à escravidão no Brasil, o último país das Américas a extingui-la.
Este 13 de maio de 2013 marca os 125 anos da Abolição da Escravatura no Brasil. Na contramão da História considerada oficial, esta efeméride não reduz-se à promulgação da Lei Áurea, subscrita pela princesa Isabel, que num ato de extrema “bondade” teria concedido a liberdade aos negros escravizados, mas, fundamentalmente, traz à superfície as múltiplas formas de insurreição negra (quilombos, revoltas, atos de rebeldia, instauração de uma tradição negro africana) como núcleos vitais de resistência coletiva à escravidão no Brasil, o último país das Américas a extingui-la.
Portanto, mais do que legítimo, torna-se um exercício de reparação histórica considerarmos a abolição como resultante de um conjunto de fatores, com prevalência inequívoca da luta dos movimentos de consciência negra, que trouxe em seu cerne as sementes do protesto contemporâneo contra as desigualdades sociais, o racismo, o preconceito e a discriminação racial. Afigura-se, portanto, como gesto fundamental realçar neste dia de hoje o papel importante d aliderança de mulheres e homens negros na qualidade de agentes responsáveis por minar as estruturas do escravismo de diversas formas: seja pela via da religião, das variadas expressões artísticas, da ciência e da tecnologia, do enfrentamento político, a exemplo da Revolta dos Malês, uma das mais expressivas manifestações políticas contra a discriminação e a imposição religiosa, em 1835.
Considerando esse legado dos povos negros, como podemos reeditar o 13 de maio a cada ano? Embora não vivamos mais sob a égide da escravidão, convivemos, lamentavelmente, abrigados em um sistema que alimenta o racismo e a discriminação que, sistematicamente, põe sob o manto da invisibilidade as conquistas históricas do movimento negro brasileiro, como a comemoração do 20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra. Atualmente, mais de 750 municípios instituíram legalmente a data como feriado, medida que é constantemente ameaçada por aqueles que alegam sua inconstitucionalidade, como acontece hoje no Estado do Rio de Janeiro e na cidade Londrina, norte do Paraná. É inaceitável que essa interferência incida no único feriado destinado a pôr em cena o protaganismodo líder negro Zumbi dos Palmares na busca pela emancipação do país.
É essencial que todas as formas de celebraçãoe reconhecimento do papel ativo da população negra sejam preservadas e publicizadas em grande escala. Desse ponto de vista, tanto o 13 de maio quanto o 20 de novembro possuem um caráter pedagógico de valor exponencial para o nosso país reconhecer-se naquilo que o constitui visceralmente: colocam em cena eventos, personagens e histórias até bem pouco tempo desconhecidas ou subvalorizadas pela narrativa oficial, reconhecem a resistência das comunidades tradicionais e quilombolas que, em condições completamente adversas, almejam estatuto de cidadania, onde inclui-se prioritariamente o direito ao território, à preservação das práticas culturais ea novos rearranjos no dinamismo socioeconômico.
Nessa busca por um Brasil sem racismo, por uma nação democrática e desenvolvida, o 13 de maio de 2013 permite-nos observar os fios que ligam as manifestações do passado com as do presente. Um dos exemplos mais emblemáticos pode ser extraído dos casos de intolerância religiosa, que tentam bloquear o exercício do direito do povo negro aos cultos religiosos de matriz africana. No entanto, a todas essas práticas que tentam subjugar o legado cultural afro-brasileiro, a herança insurgente do negro escravizado fornece o combustível que põe em marcha reações antirracistas e anti-discriminatórias de diversos matizes e intensidade nos dias atuais. A queda da iniciativa baiana que tentava proibir uma manifestação religiosa no Estado é um episódio que revela a força expressiva dos movimentos de resistência, significando uma vitória do povo de santo. Há que se dizer que a mobilização popular foi determinante para essa conquista.
Além desse episódio, já histórico, podemos arrolar outras conquistas que devem ser inseridas nessa densa paisagem da qual o 13 de maio, sob a ótica da população negra, constitui-se em um ponto de inflexão: dez anos da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República), que veio para converter as principais demandas dos movimentos sociais negros em políticas públicas, transversalizandoo tópico racial na agenda do governo federal; os 10 anos da Lei 10.639, que tem potência para suscitar novos olhares e novas perspectivas sobre o patrimônio afro-brasileiro; o início da Década Internacional dos Povos Afrodescendentes, instituída pela ONU, baseada em três pilares: reconhecimento, justiça e desenvolvimento; os 25 anos da Fundação Cultural Palmares, que serão comemorados em agosto, primeiro órgão federal criado parapreservar, proteger e disseminar a cultura negra. Acrescente-se que para esta gestão é fundamental, também, a concepção de uma política cultural honesta, inclusiva e verdadeiramente democrática.
Considerar esse conjunto de conquistas e avanços, seja da sociedade civil, seja do Estado brasileiro, nos faz conferir outros sentidos ao 13 de maio anexando-o às iniciativas políticas da população negra no decorrer dos últimos séculos: Palmares, Revolta dos Malês, Revolta da Chibata, Frente Negra Brasileira, Movimento Abolicionista, Movimento de Mulheres Negras, Teatro Experimental do Negro, Resistência das Religiões de Matriz Africana, da Capoeira, do Samba, das Escolas de Samba, dos Blocos Afros, do Movimento Hip Hop.
Essa trilha, pontilhada também por recuos e retrocessos, nos faz lembrar que há séculos estamos reivindicando por cidadania plena, reconfigurando a dinâmica social brasileira. Nesse embate, também integrou o escopo das tarefas das organizações negras a interlocução com homens e mulheres que tiveram sua autoestima violada, a estética corporal rebaixada, a humanidade subtraída…
É com esse espírito que que a Fundação Cultural Palmares marca o 13 de maio de 2013: dando impulso renovado ao que a data representa para a população negra, aproximando-a cada vez mais dos propósitos verdadeiramente libertários dos nossos antepassados; reatualizando o debate sobre a persistência vergonhosa do racismo e da discriminação; reafirmando o papel da instituição em promover a cultura brasileira, a partir do resgate do legado afro-brasileiro e diaspórico, num exercício constante de promoção dos direitos humanos da população negra. Esse deslocamento de sentido do 13 de maio nos possibilita, assim, dimensionar a profundidade das desigualdades e pôr em destaque o importante papel de homens e mulheres negros para a construção e consolidação de um outro projeto de Nação, em que todos possam dela participar ativamente.
Finalizo fazendo referência a um intelectual negro brasileiro reconhecido mundialmente, o professor Milton Santos, cujo texto encerra o espetáculo da Cia dos Comuns “A Roda do Mundo”:
“Como reprodução do universo perfeito, e para ajudar os homens e as mulheres na labuta, criando máquinas e engenhos e jogos e maravilhas, foi inventada a roda. Não estamos então aqui para inventá-la de novo. Não é disso que se trata, mas de dizer como a fazemos funcionar em nosso canto do mundo; como queremos que ela funcione, entendendo que em cada lugar e para cada povo a roda gira de um jeito. Reconhecer isto será um enriquecimento para o mundo da roda e um passo a mais no conhecimento de nós mesmos”.
*Hilton Cobra é presidente da Fundação Palmares
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