Neste instigante artigo, Rafael Marques relaciona o campeonato africano denominado Taça de África das Nações com a questão da corrupção que assola determinados países no continente. Tráfico de influência é o assunto que irá dominar a tônica de seus argumentos, na medida em que, há comprovadas e visíveis informações sobre elementos da presidência da república angolana e do MPLA no caso.
A 31 de Janeiro de 2010, o Egipto sagrou-se, pela sétima vez, campeão africano de futebol. No Cairo foi a festa. Em Angola, país que organizou a Taça de África das Nações, a final do futebol marcou o retorno à realidade.
O governo angolano proclama ter dispendido mais de 600 milhões de dólares na construção dos quatro estádios. Em Luanda, o Estádio 11 de Novembro, com capacidade para 50.000 espectadores, ficou orçado em 227 milhões de dólares. Num país onde a corrupção e o desrespeito pela legislação em vigor constituem o modus operandi do governo, a realização de investimentos públicos despoleta sempre resoluções institucionais obscuras sobre os contratos do Estado, para benefício primário de dirigentes.
Entre os jogos de futebol cuidei de investigar os potenciais focos de corrupção e tráfico de influência decorrentes da organização do CAN – Orange 2010. A fiscalização da construção, do Estádio de Luanda pela Soenco, uma empresa do vice-ministro das Obras Públicas, José Joana André, é o primeiro caso que reporto.
A 28 de Outubro de 2009, em sessão presidida pelo Presidente da República, José Eduardo dos Santos, o Conselho de Ministros aprovou “o contrato de prestação de serviços de coordenação e fiscalização da empreitada de construção, fornecimento e montagem de equipamentos para o Estádio de Futebol de Luanda, no âmbito do Campeonato Africano das Nações de 2010, celebrado entre os Ministérios das Finanças e Obras Públicas e a empresa Soenco – Projectos e Consultoria, Limitada, no valor de USD 11 344 433,30”.
Em termos práticos, o Conselho de Ministros apenas certificou o contrato que já se encontrava na sua fase final de execução.
A Soenco é uma empresa criada a 30 de Agosto de 2006, pelo vice-ministro das Obras Públicas José Joana André. A 8 de Fevereiro de 2010, José Joana André foi empossado no cargo de secretário de Estado da Construção do novo governo da III República. Mantém a mesma função mudando apenas o título.
Na Soenco, o governante tem como sócios Rui Celso da Silva, que até ao princípio de Fevereiro passado exercia as funções de director de gabinete do ministro das Obras Públicas, assim como Maria Manuela Ferraz, assessora do referido ministro, e Celso Paulo Correia Teixeira. O actual secretário de Estado da Construção, José Joana André, exerce, de forma cumulativa, as funções de sócio-gerente da Soenco. Rui Celso da Silva e Maria Manuela Ferraz também gozam do estatuto de gestores da empresa.
Do ponto de vista legal, o contrato entre os Ministérios das Finanças e Obras Públicas com a Soenco, viola o Artigo 10° (2) da Lei 21/90, conhecida como a Lei dos Crimes Cometidos por Titulares de Cargos de Responsabilidade. Esta disposição jurídica proíbe os governantes de participação económica em negócios, nos seguintes termos:
“O titular de cargo de responsabilidade que, por qualquer forma receber vantagem patrimonial por efeito de um acto jurídico-civil relativo a interesses de que tenha, por força das suas funções,no momento do acto, total ou parcialmente, a disposição, a administração ou fiscalização, ainda que sem os lesar, será punido com prisão e multa correspondente.”
O governo atribuíu ao Ministério das Obras Públicas a tutela da construção e gestão dos estádios de futebol. Por essa razão, no âmbito das suas atribuições oficiais, José Joana André teve poder de influência e decisão na preparação e gestão das infrastruturas para a Taça de África das Nações. Coube-lhe realizar várias visitas de acompanhamento e supervisão das obras encomendadas pelo Estado para o efeito e, nessa condição, oficialmente acompanhou o trabalho da sua empresa no Estádio de Luanda, cuja construção esteve a cargo da empresa chinesa Shanghai Urban Construction Group Corporation. Rui Celso da Silva, enquanto director de gabinete do ministro das Obras Públicas, também está abrangido pela mesma lei, assim como Maria Manuela Ferraz, que é também directora do projecto do Novo Campus da Universidade Agostinho Neto, pelo Ministério do Urbanismo e Construção. Este organismo do Estado resulta da fusão entre os ministérios das Obras Públicas e do Urbanismo e Habitação, realizada com a nomeação do novo governo, em Fevereiro passado.
De forma retórica, a 28 de Junho de 2008, na abertura da XI Reunião Extraordinária do Comité Central do MPLA, o Presidente da República e Chefe do Governo, José Eduardo dos Santos disse: “Um membro do Governo pode ser accionista, pode ser detentor de quotas numa empresa, mas não deve ocupar-se da sua gestão, nem desrespeitar o princípio da isenção e da imparcialidade no exercício das suas funções administrativas”.
Esse discurso presidencial tem sido usado como um incentivo ao abuso de poder e à corrupção institucional na medida em que o próprio presidente ignora a legislação em vigor ao fazer tal afirmação. Vários são os dirigentes com dezenas de empresas, geridas por contratados nacionais e estrangeiros, cujo sucesso comercial depende exclusivamente dos contratos que os seus proprietários obtêm dos pelouros do Estado a si confiados.
Mesmo que o secretário de Estado da Construção José Joana André não assumisse as funções de sócio-gerente da Soenco, o facto deste facilitar ou decidir a atribuição do contrato, pelo Ministério das Obras Públicas, a uma empresa sua viola a lei.
Exemplo ilustrativo dessa cultura de corrupção ilimitada, no seio do governo, pode ser aferida na atribuição do contrato de fiscalização das obras de reabilitação do Aeroporto do Luena à Soenco, em 2008.
Essa promiscuidade entre o dever público e o interesse privado tem causado incontáveis prejuízos ao Estado e a realização de obras públicas a custos inconcebíveis e de qualidade desastrosa. É do conhecimento público o modo de corrupção no topo da cadeia de governo. Assim, as empresas estrangeiras também se juntam e fomentam o festim de ilegalidades para maximização dos seus dividendos pessoais e lucros
comerciais.
*Rafael Marques de Moraes é jornalista e coordenador do projeto Makaangola.com
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