Às vezes, penso em quem seria se não fosse biólogo. Não posso senão concluir que, durante vinte anos, a disciplina da Biologia me ajudou a sair de mim e a viajar por múltiplos seres que tecem o milagre da Vida.
"Uma arrogância antropocêntrica sedimentou em nós a impressão que apenas os seres humanos são inteligentes e inventores".
Às vezes, penso em quem seria se não fosse biólogo. Não posso senão concluir que, durante vinte anos, a disciplina da Biologia me ajudou a sair de mim e a viajar por múltiplos seres que tecem o milagre da Vida.
Algumas das lições que aprendi não me trouxeram apenas conhecimento: ensinaram-me a ser outro. Por exemplo, o facto de não sermos o centro da vida nem o topo da evolução. E ainda o quanto somos feitos de identidades diversas, o quanto somos compostos por centenas de espécies que não apenas nos habitam mas que nos fazem ser o que somos. Os milhares de espécies de bactérias que integram o nosso corpo fazem-nos ser uma entidade mestiça, simbiótica e plural. Afinal, o que nos faz ser humanos são, sobretudo, seres não humanos.
Outra lição consiste em saber que a evolução natural resulta não tanto da luta dos mais fortes contra os mais fracos mas do modo como os seres vivos são capazes de criar alianças de solidariedade. Mas a realidade na Natureza é uma outra: a grande arte da sobrevivência não é a habilidade para competir mas a disponibilidade para a entreajuda e a simbiose. Estes são apenas alguns exemplos do quanto a contribuição da Ecologia deveria transbordar para outros domínios. Estas sugestões deveriam conduzir a repensar radicalmente o mundo e o nosso lugar nesse mundo. Infelizmente, esse poder de questionamento da Ecologia foi recuperado e substituído por uma espécie de modismo, uma fórmula para melhorar a miséria, um receituário do tipo «poupe água e energia» para salvar o planeta.
*Mia Couto é escritor moçambicano
** Texto originalmente publicado em http://www.africa21digital.com
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