Não acredito nas comunicações para mudar Angola. Não acredito mais em conferências. Neste país o diálogo para alterar a realidade é impossível porque os possíveis interlocutores não conhecem a lógica do diálogo, mas a das armas que os permite impôr todas as suas vontades porque partem do pressuposto de que todos que têm uma opinião contrária é inimigo e alvo a bater.
Inicialmente gostaria informar aos possíveis interlocutores que este textinho é fruto de uma conferência proferida em 2013 na província do Huambo à convite do FORDUM.
Não acredito nas comunicações para mudar Angola. Não acredito mais em conferências. Neste país o diálogo para alterar a realidade é impossível porque os possíveis interlocutores não conhecem a lógica do diálogo, mas a das armas que os permite impôr todas as suas vontades porque partem do pressuposto de que todos que têm uma opinião contrária é inimigo e alvo a bater. Enquanto os ingênuos da sociedade civil acreditam na lógica da racionalidade discursiva para o convencimento, o poder adoptou a lógica da irracionalidade. Diante desta lógica, não temos outro caminho se não a revolução similar à do Egipto ou da Tunísia.
Por esta falta de crença no debate e no diálogo para alterar o estado das coisas em Angola, talvez alguém perguntaria o seguinte: se não acredita porque participa neste tipo de actividades? Participo nestas actividades por uma razão antropológica. Sendo humano sou um ser social, político e dialógico que precisa praticar estas dimensões sob pena de morrer: aqui está a razão da minha presença aqui e agora!
Expostos os pontos prévios, gostaria apresentar as ideias centrais que expressam o tema acima anunciado.
Aspectos chaves da democracia numa sociedade moderna
A democracia é o sistema político que assenta nos direitos individuais dos cidadãos, tendo como substrato a hipótese ficcional segundo a qual todos nascemos com estes direitos. No caso de não ter nascido com estes direitos, os direitos historicamente construidos devem ser partilhados por uma questão de solidariedade. Isto significa que a democracia assenta nos direitos individuais das pessoas, que na realidade prática traduz-se na igualdade, fragmentalismo (pluralismo), tolerância, igualdade etc. Na democracia, a midia tem o dever de promover estes valores de uma sociedade moderna.
O que é a modernidade? A sociedade moderna costuma ser entendida como um ideário ou visão de mundo relacionada ao projeto empreendido a partir da transição teórica operada por Descartes, com a ruptura com a tradição herdada - o pensamento medieval dominado pela Escolástica - e o estabelecimento da autonomia da razão, o que teve enormes repercussões sobre a filosofia, a cultura e as sociedades ocidentais.
O projecto moderno consolida-se com a Revolução Industrial e está normalmente relacionado com o desenvolvimento do capitalismo.
Que papel é reservado aos jornalistas numa sociedade moderna? Para a compreensão do papel do jornalista na sociedade democrática moderna, parece importante recorrermos ao auxílio de Antonio Gramsci, filósofo Italiano:
“Odeio os indiferentes.
Acredito que viver significa tomar partido.
Indiferença é apatia, parasitismo, covardia.
Não é vida.
Por isso, abomino os indiferentes.
Desprezo os indiferentes,também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes.
Vivo, sou militante.
Por isso, detesto quem não toma partido.
Odeio os indiferentes.”
Na mesma linha de Gramsci, o arcebispo Sul-africano Desmond Tutu, afirma que “onde existe injustiça, quem se mantêm em silêncio significa que está ao lado dos opressores”. Estas ideias mestras permitem-nos identificar de forma clara o papel do jornalista numa sociedade de opressão, que a lei diz ser democrática, mas esta modernidade e democracia não passa de um ideal no qual só chegaremos com o papel de jornalistas sérios que não têm nada a ver com as máquinas de propaganda e ferramentas, instrumentos (pseudo-jornalistas) ao serviço da manutenção da dor, da currupção, do mal, da humilhação, da espoliação em definitiva da destruição de um povo feliz e inocente de ser escravo por causa da ingnorância politicamente construida.
Ainda em defesa da liberdade de expressão e do papel dos joranlistas, parece útil evocar a posição do velho Marx. Em sua defesa da liberdade de expressão, ele nunca vacilou na denúncia da ditadura capitalista. Para ele, o jornal deveria ser uma arma de combate à opressão e à exploração e não um veículo neutro. “A função da imprensa é ser o cão-de-guarda, o denunciador incansável dos opressores, o olho omnipresente e a boca omnipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”. Noutro texto, afirma: “O dever da imprensa é tomar a palavra em favor dos oprimidos a sua volta. O primeiro dever da imprensa é minar todas as bases do sistema político existente”. Por estas idéias libertárias, ele foi processado e perseguido.
Este papel nobre que Marx confere para os jornalistas e a imprensa o torna agenciador desta visão moderna, dentro de critérios éticos e exigências civlizacionais do nosso tempo conforme estabelecem os códigos deontológicos nacionais e internacionais (BERTRAND, 2000).
Quando um jornalista tem consciência do seu papel deve transformar as informações que tem acesso como histórias, deve pôr em dúvida as fontes de informação, sobretudo as fontes oficiais, deve comparar, analisar e colocar os dados de que tem acesso em confronto.
Converter dados brutos em histórias sob pena de enganar e manipular!
As notícias de natureza política e económica têm uma consequência directa imediata para a vida dos cidadãos, sobretudo quando tem a ver com decisões. Estas notícias que afectam directamente a vida das pessoas não poucas vezes é de grande complexidade pelo nível técnico terminológico, o que inviabiliza a compreensão por parte dos cidadãos, por isso, é que os jornalistas devem fazer esforços para que as pessoas, os utentes dos seus serviços comprendam os números e outros dados de diferentes naturezas.(CHRISTOFOLETTI, 2008).
Para sustentar o axioma acima expresso, gostaria citar um caso de análise do Orçamento Geral do Estado de Angola de 2013, em que Rafael Marques transformou dados complexos, emotivos, enganadores, números em história conforme as recomendações e deveres de um jornalista numa sociedade civil moderna e democrática.
Segundo os instrumentos humanos e ferrementas mediáticas do regime, este orçamento
“registou um aumento de cerca de 50 porcento em relação a 2012, fixando o total do orçamento no montante recorde de 6.6 triliões de kwanzas (cerca de US $69 biliões).” Marques dissecou alguns sectores do OGE que se seguem:
a) Soldados e Armas para o Presidente. A Presidência tem um orçamento de Kz 172.6 biliões (US $1.8 bilião), substancialmente mais do que a verba atribuída ao Ministério da Saúde (Kz 120.2 biliões, equivalente a US $1.5 bilião). Desta verba, José Eduardo dos Santos irá gastar Kz 140.2 biliões (US $1.4 bilião) em defesa militar, correspondente a 81 porcento da despesa da Presidência.
Negligenciada por muitos é a verba atribuída ao pessoal paramilitar da Presidência, Kz 6.4 biliões (US $67.9 milhões). Para além desta despesa, mais Kz 14.4 biliões (US $150.2 milhões) foram atribuídos aos membros da Unidade da Guarda Presidencial (UGP) e à Unidade de Segurança Presidencial (USP). Um guarda presidencial recebe, em média, um salário de kz 100,000 (US $1,050) por mês. Feitas as contas, calcula-se que José Eduardo dos Santos tenha a seu cargo uma guarda de mais de 11,000 homens. O salário de um guarda presidencial é cinco vezes superior ao salário de um soldado regular do exército.
b)
Relações Públicas e Marketing. As relações públicas são também um elemento importante nos planos do Presidente. A Presidência conta com um orçamento geral de Kz 4.6 biliões (US $49 milhões) para marketing, um acréscimo em relação aos US $40 milhões do ano passado. Em 2012 a verba foi integralmente atribuída a uma empresa privada, Semba Comunicação, propriedade de dois filhos do Presidente, Welwitschea “Tchizé” e José Paulino “Coreon Dú”.O OGE cabimenta, em conjunto para a defesa e ordem pública, 17.6 porcento do total das verbas. Verifica-se um aumento das despesas, com o referido sector, em relação aos 15.1 porcento do ano passado.
A despesa com o sector social aumentou 0.6 porcento face a 2012. A maior fatia do orçamento deste ano foi atribuída ao Ministério da Defesa, com Kz 549 biliões (US $ 5.7 biliões), enquanto a verba para o Ministério do Interior foi fixada em Kz 446.3 biliões (US $4.7 biliões).
a) A Verdade Social. Dos 33.5 porcento da verba atribuída a serviços sociais, apenas 5.29 são destinados à saúde e 8.09 à educação, num total de 13.38 porcento do orçamento. As verbas atribuídas à Presidência são muito mais altas do que a totalidade dos fundos destinados ao sector da saúde, que recebe apenas Kz 120.2 biliões (US $1.3 bilião).
Em África, enquanto poucos governos cumprem os compromissos da Declaração de Abuja e destinam 15 porcento dos seus orçamentos à saúde, muitos países gastam mais de 10 porcento, e alguns até 25 porcento, no sector da educação. É uma vergonha para Angola que um país como a Costa do Marfim, a recuperar de uma guerra mais recente, gaste 30 porcento do seu orçamento na educação. Outros países de pequenas dimensões e de escassos recursos, como a Suazilândia, o Lesoto e o Burkina Faso, investem muito mais na educação, respectivamente 25, 17 e 16.8 porcento dos seus orçamentos gerais.
Angola, o segundo maior produtor africano de petróleo, governada por um regime obsecado em ser uma potência regional, não pode sequer sonhar em competir com a África do Sul, que destina um quarto do seu orçamento à educação, nem com o Gana, cujo orçamento ultrapassa os 30 porcento.
b) Mais Espionagem, Menos Agricultura. As contradições do orçamento de 2013 ultrapassam qualquer tentativa de entendimento. O governo continua, por exemplo, a promover a ideia da diversificação da economia para quebrar a dependência do petróleo, cujas receitas constituem mais de 95 porcento das exportações do país. No entanto, o objectivo governamental é contraditório com o facto de o orçamento do Ministério da Agricultura não ultrapassar os Kz 58.6 biliões (US $611 milhões), enquanto os Serviços de Inteligência e Segurança de Estado (SINSE) recebem uma verba de Kz 66.6 biliões (US $695 milhões). Angola tem grande potencial para ser um exportador competitivo de produtos agrícolas, uma vez que tem alguns dos solos mais férteis de todo o continente, assim como recursos hídricos abundantes. No entanto, a prioridade parece ser a espionagem.
Pela mesma bitola de prioridades, a espionagem no estrangeiro é mais importante do que o desenvolvimento de uma política externa coerente. Os Serviços de Inteligência Externa (SIE) dispõem de uma verba de Kz 32.6 biliões (US $340 milhões) destinada inteiramente a serviços de espionagem no estrangeiro, enquanto o orçamento total do Ministério das Relações Exteriores é de Kz 36.5 biliões (US $380.4 milhões).
Sobre a espionagem no estrangeiro há duas fortes possibilidades. A primeira delas aponta para as autoridades poderem estar a recrutar serviços privados de inteligência externa, pagos a preços exorbitantes, para fazer o seu trabalho. É questionável a legitimidade do executivo do Presidente dos Santos em autorizar um desbaratamento de verbas de tamanha dimensão, tal como o orçamento parece indicar. Do mesmo modo, a aposta no desenvolvimento do país, frequentemente invocada pelo governo, não faz sentido quanto à distribuição geográfica de recursos. Sete das 18 províncias de Angola têm orçamentos menores ou iguais à verba destinada aos Serviços de Inteligência Externa.
Lunda-Sul (0,40 porcento), Namibe (0.41 porcento), Zaire (0.42 porcento), Kwanza-Norte (0.46 porcento), Cunene (0.48 porcento), Bengo (0.50 porcento) e Kuando-Kubango (0.57 porcento) beneficiam dos Programas de Investimento Público, geridos a partir de Luanda, mas estes, uma vez implementados, não irão trazer diferenças significativas aos orçamentos destas províncias.
Conclusão: os jornalistas e a imprensa como perigos à si mesmos.
Revisitando o velho Gramsci encontrei afirmação segundo a qual “o jornal não é apenas um propagandista colectivo e um agitador colectivo. Ele é, também, um organizador colectivo. Neste último sentido, ele pode ser comparado com os andaimes que são levantados ao redor de um edifício em construção, que assinala os contornos, facilitam as relações entre os diferentes pedreiros, ajudam-lhes a distribuírem tarefas e a observar os resultados gerais alcançados pelo trabalho organizado”. Esta afirmção é passível de uma leitura hermenêutica diversa, pelo menos em duas dimensões. Para o caso da realidade angolana os jornalistas e a midia, em maioria são exatamente estas escadas e andaimes que permitem a continuidade da construção da lógica do mal. Neste sentido, os jornalistas em parceria com o factor político e subjectivo são o primeiro perigo a si mesmos e a liberdade de imprensa. Uma das justificativas simplistas destes individuos é o pão dos filhos, esquecendo-se de que eles fizeram escolhas; fizeram opções. É humilhante, vergonhoso e falta de dignidade culpar a tua filha/o por se associares ao ditador! Foi tua opção…
Noutra perspectiva, a midia pode servir para mobilizar as pessoas em defesa dos seus direitos, do republicanismo e em última análise para o derrube do poder hegemónico, mas só é possível quando conseguiram incorporar e viver os valores expressos nas linhas anteriores.
*Domingos da Cruz é jornalista angolano
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