A ausência de médicos negros na periferia e na zona rural brasileiras está diretamente relacionada com a ausência de estudantes dessas regiões nos cursos de Medicina. O ano de 2013 já pode entrar para a história como tendo sido marcado por um visível recrudescimento do reacionarismo ativo da requentada Casa Grande.
A ausência de médicos negros na periferia e na zona rural brasileiras está diretamente relacionada com a ausência de estudantes dessas regiões nos cursos de Medicina. O ano de 2013 já pode entrar para a história como tendo sido marcado por um visível recrudescimento do reacionarismo ativo da requentada Casa Grande.
No entanto, esse conjunto de situações reflete, não só o medo por parte de quem não aceita mudanças de paradigmas propulsoras das transformações sociais e políticas, mas também serve de constatação dos avanços em termos de consciência de povo e das conquistas da cidadania negra no Brasil. E os revezes da direita nos dão a dimensão da complexidade que é este país.
No início do ano, a Comissão Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal passa a ser presidida por Marco Feliciano, pastor fundamentalista, declaradamente homofóbico, sexista e racista, o qual, além de permanecer no cargo, não obstante milhares de manifestações nas ruas e nas redes sociais, foi um dos articuladores do projeto denominado “Cura gay”.
Em fevereiro, a mídia solidarizou-se com a indignação das madames contra a aprovação da PEC das domésticas. Um mês depois, a virulência das campanhas midiáticas a favor da redução da maioridade penal. Em maio, intensificou-se a sistemática criminalização das lutas indígenas no Mato Grosso do Sul e Bahia. Em junho, o Brasil assistiu atônito à centenas de manifestações perigosamente esvaziadas das bandeiras sociais. Em julho, todo o recuo à proposta da tão premente Reforma Política. Soma-se a essas reacionaridades o não aprofundamento do debate sobre a necessária desmilitarização da polícia militar que continua matando Maicons e Amarildos impunemente.
No final de junho, ainda sob os ventos das manifestações que chacoalharam o país, manifestantes vestidos de jalecos, bem mandados e resguardados por organizações corporativistas, bradaram, em passeatas sem pautas populares, palavras de ordem – e ira – contra o anúncio do programa “Mais Médicos”. Os mesmos que logo mobilizaram mais de 17 mil falsas inscrições para o programa. Não bastasse fazer feio em casa, eles foram praticar mais violência na chegada dos colegas cubanos. Os médicos da Ilha Socialista já assustavam pela medicina que trazem no coração e nas mãos. E, de repente, ao desembarcarem, trazem no silêncio de sua cor uma mensagem gritante que nos desmascara enquanto um país igualmente negro, comparado a Cuba (contra espanhóis e portugueses não se viu essa fúria).
Uma fúria racista expressa nos comentários da jornalista potiguar ao dizer (e saber que não pensa sozinha assim, o erro dela foi pensar alto e na rede) que médicos tem que ter “postura” e “cara”. E, ainda, destilando que a aparência de empregada doméstica dos médicos cubanos colocaria em xeque sua credibilidade profissional. Ela chega a dizer ter pena do povo que será atendido pelos médicos cubanos. Um cúmulo do cinismo, mesclando ironia, xenofobia e racismo, ao defender o critério de “boa aparência” para legitimar a confiança nos médicos. E lembrar que essa exigência – racista – já acompanhou anúncios de empregos para trabalhadoras domésticas, vendedoras e secretárias, antes das leis anti-racismo vigorarem no país. No entanto, ainda aguardamos a veiculação de uma digna matéria televisiva sobre a expectativa das comunidades com relação à chegada de médicos.
E eis que, há duas semanas, o Governo federal acertou em cheio ao começar trazer os quatro mil médicos cubanos. E é a população majoritariamente negra a que mais precisa e não tem quem vá lá porque quem se forma (99% de brancos) em Medicina no Brasil (com nosso suado dinheiro) acha que sua profissão tem muito "valor" pra ser desperdiçada com pobres (e negros).
Essa mesma elite branca e raivosa abomina cotas raciais, por não querer perder os privilégios da perpetuação de loteamento dos espaços de poder e quer manter o restante da população nos "lugares" de sempre. O “medo branco da onda negra” ainda está bem vivo. Após 10 anos do início da instituição das cotas no ensino superior, mais de 90% dos alunos de Medicina ainda são brancos, mesmo na Bahia. E isso também é reflexo de nossa estrutura racista de sociedade.
Precisou de uma década para que o governo federal resolvesse agir com coragem e encarar o classismo dos enjalecados, na busca de garantir serviços de saúde para os mais pobres, investindo na recuperação da qualidade da atenção básica, uma das bases da medicina preventiva e que pode solapar o paradigma de uma saúde pública transformada em um balcão de vendas dos laboratórios transnacionais.
Um governo que prioriza o social mas não mexesse no paradigma mercantilicista do sistema de saúde brasileiro, continuaria a reproduzir as estruturas racistas que mantém as assimetrias sociais. E agora não pode mais repetir um erro do "Ciências Sem Fronteiras" que, ao enviar mais de 30 mil pra estudar fora - a maioria absoluta branca - excluindo pobres - a maioria, negros -, exigiu bom desempenho acadêmico e domínio da língua do país de destino.
É hora de a população sair às ruas em apoio à chegada dos médicos cubanos, em especial. E que essa pauta alcance, além das manifestações contra a postura do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, os demais CRM’s e a sede do CFM, em Brasília. O momento é agora. Acolher bem os médicos brasileiros ou estrangeiros será um passo importante na consolidação de um novo paradigma na saúde. Acolher e fiscalizar que eles estarão lá cumprindo sua agenda. Já nesse segundo dia de apresentação às Unidades de Saúde, vários municípios registraram casos de desistência dos médicos contratados, alegando “falta de estrutura”. A realidade nua e crua desconcerta.
Nas Pedrinhas, bairro negro e estigmatizado de Vitória da Conquista, cuja Unidade Básica de Saúde tem passado, nos últimos anos, por alta rotatividade de médicos, um dos quatro médicos do "Mais Médicos" começa suas atividades esta semana. É a comunidade da periferia sendo respeitada pelo poder público, em seu direito à política pública de qualidade. O mesmo bairro que tem a jovem Jolucia Alves Santos iniciando esta semana o curso de Medicina na Escola Latino-americana de Medicina, em Havana, através de uma bolsa integral conquistada junto à Rede Educafro de Cursinhos Comunitários.
Entretanto, precisamos ir além da acolhida aos médicos estrangeiros. O que já aprendemos nesse momento é que a ausência de médicos negros na periferia e na zona rural brasileiras está diretamente relacionada com a ausência de estudantes dessas regiões nos cursos de Medicina. Não adianta esperarmos pelo milagre de que filhos da burguesia se formarão e irão de bom grado para além das fronteiras de seu mundinho. O Governo Federal precisa garantir uma medida que promova o real ingresso, permanência e formação de qualidade de pobres, negros e negras nos cursos de Medicina, daqui e de outros países. Não é aceitável que a quinta economia mundial trate os sonhos de sua juventude com descaso.
Acolher os médicos cubanos é importantíssimo. Tão importante quanto é acolher os médicos que estão reprimidos dentro de milhares de jovens pobres, negros, indígenas, quilombolas e das demais comunidades tradicionais nas periferias do Brasil. As formas existem, ao menos, enquanto possibilidades: FIES MEDICINA, Bacharelado Interdisciplinar de Saúde (UFBA), PROUNI, COTAS, CIÊNCIAS SEM FRONTEIRAS. O governo federal precisa investigar o porquê esses programas não têm sido suficientes para formar mais médicos negros.
A criação de pré-vestibulares específicos para as populações tradicionais é uma forma de promover o real preenchimento das vagas destinadas reservadas para negros e pobres e as vagas adicionais específicas para as populações tradicionais. Em Vitória da Conquista, desde 2009, o Pré-Vestibular Quilombola, mantido pela Prefeitura Municipal enquanto política pública de reparação, através do Núcleo de Promoção da Igualdade Racial, mobiliza o voluntariado de 20 professores e as parcerias com o Conselho das Associações Quilombolas do Território e a UESB, tendo já promovido a aprovação de mais de 140 quilombolas nas universidades públicas da Bahia, inclusive, para Medicina. Dos 60 atuais alunos, 03 buscam a realização de serem médicos e voltarem para atuar em suas comunidades.
O cursinho quilombola também mantém o Núcleo Medicina Conquista, projeto de mobilização e preparação para candidatos a Medicina e que cursaram escola pública. Acredito que depois desses acontecimentos, muitos jovens das comunidades pobres começarão a olhar para o seus sonhos com outra perspectiva.
Precisamos pressionar e o momento é agora! Espero que o Governo Federal envie, sim, milhares de brasileiros pra cursar Medicina fora – em especial, para Cuba – o que sairá relativamente mais barato que um curso aqui no Brasil ou que a manutenção de médicos estrangeiros a R$10.000,00 reais por mês, em contratos temporários. Um investimento na formação de novos (em todos os sentidos) médicos - "especialistas em gente", como disse o ex-ministro Jatene. E que só será um passo na superação do racismo se, no mínimo, 50% das vagas forem para jovens negros e negras, filhos e filhas das guerreiras empregadas domésticas.
Respeito e Reparação, já!!!
*Flávio Passos contribui para Afro Press onde este artigo primeiro apareceu.
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