esmo no carnaval, há uma grande diferença entre vestir a camisa e se fantasiar. Penso nisso enquanto vejo várias fotos em que o senhor aparece, sorridente, com a camisa do Ilê Aiyê, bloco afro que, neste ano, homenageou a Jamaica.
27/02/2015
Caro Governador,
Mesmo no carnaval, há uma grande diferença entre vestir a camisa e se fantasiar. Penso nisso enquanto vejo várias fotos em que o senhor aparece, sorridente, com a camisa do Ilê Aiyê, bloco afro que, neste ano, homenageou a Jamaica.
Em uma das fotos dá para ver, na manga da sua camisa, referência à Rebelião de Morant Bay. Esta foi uma rebelião que se gerou a partir de 1864 e teve grande importância não apenas na história da Jamaica, mas também em intensas discussões na Inglaterra sobre como os povos, principalmente os negros ex-escravos ou descendentes de escravos, são tratados por seus governantes. É importante que o senhor conheça tal história e, como já percebemos ser bom em figuras de linguagem, faça a relação com o que vem acontecendo com os pobres e pretos da Bahia e seus governantes, tendo em mente um dos desdobramentos mais recentes: o caso do Cabula.
A escravidão na Jamaica foi abolida em 1834, prevendo mais quatro anos de trabalhos forçados, como uma espécie de ritual de passagem da escravidão para a liberdade. Oficialmente, ex-escravos podiam votar, mas um imposto de votação muito alto fez com que fossem excluídos do processo democrático. Nas eleições de 1864, apenas 2.000 negros estavam aptos a votar, em uma população de 436.000 pessoas, na qual havia uma proporção de 32 negros para 1 branco. Revoltados com esta situação e com a extrema pobreza na qual se encontravam, agravadas por epidemias de cólera e sarampo, pela perda de plantações próprias (para alguns poucos que tinham acesso à terra) provocada, entre outras coisas, por um longo período de seca, pela quebra da indústria açucareira, por rumores de que a escravidão seria restabelecida para balancear a economia jamaicana, os negros resolveram se mobilizar.
Sensibilizado com a situação, Dr. Edward Underhill, britânico secretário da Sociedade Missionária Batista, escreveu à rainha da Inglaterra (de quem a Jamaica era colônia), mas sua carta foi interceptada pelo governador Edward Eyre, que negou qualquer problema. Quando a resposta da Rainha Vitória chegou, perceptivelmente influenciada pelas palavras do governador, ela apenas dizia que os negros deveriam trabalhar mais, negando-se a ajudá-los. Um rico fazendeiro e político mestiço chamado George William Gordon (um dos rostos estampado na sua camisa, governador) começou a incentivar o povo a encontrar maneiras de se fazer ouvido, e seu apelo achou terreno fértil no diácono negro Paul Bogle (também na sua camisa, governador).
Em 7 de outubro de 1965, precisando trabalhar, um ex-escravo invadiu uma fazenda abandonada e foi mandado para a prisão, enfurecendo ainda mais o povo negro. Durante seu julgamento, a manifestação indignada de outro homem negro, James Geoghegon, e a violência com que a polícia tentou calá-lo e tirá-lo da Corte, levou a uma briga generalizada entre negros e policiais. Dois policiais foram atacados com paus e pedras, o que levou vários dos presentes ao julgamento, tendo ou não participado dos ataques, serem acusados e presos por tumulto, resistência à prisão e ataque à polícia. Entre eles, estava Paul Bogle, que conseguiu fugir.
Em 11 de outubro, no entanto, Paul Bogle voltou a Morant Bay e, com um grupo de manifestantes, foi recebido por uma milícia policial que abriu fogo e matou sete deles. Com seus mortos, os manifestantes recuaram, mas foram perseguidos pelas tropas enviadas pelo governador John Eyre, com a ordem de levarem Paul Bogley de volta a Morant Bay, a qualquer custo, para ser julgado. Sobre essa perseguição, um dos soldados depois se regozijou: “… nós matamos todos com quem cruzávamos… homem ou mulher ou criança”. A chacina resultou na morte de 439 jamaicanos negros e na captura e posterior execução de mais 354, sem julgamento. Entre estes últimos estava Paul Bogley (esse aí mesmo, da sua camisa), executado no mesmo dia em que foi capturado. Outros 600 negros (homens, mulheres e crianças) foram torturados e surrados, e milhares foram jogados nas cadeias, com penas longas e, de novo, sem qualquer julgamento. Gordon, aquele político que disse que o povo negro deveria arrumar um jeito de mostrar as reais condições em que viviam, e que, não se esqueça: estampa a sua camisa, também foi executado, depois de ser levado de Kingston até Morant Bay, para que sua morte pudesse acontecer nos tribunais de exceção, sob lei marcial.
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O senhor pode procurar e repercussão e as mudanças que as atitudes do governador John Eyre provocaram na relação do governo inglês com a escravidão e o governo das colônias, governador, porque quero deixar essa história fresca na sua cabeça para que o senhor responda à pergunta: ao exibir, sorridente, os rostos de tantos heróis da luta contra a escravidão, a servidão e as injustiças sofridas pelo povo negro ao longo da História, o senhor estava vestindo a camisa ou se fantasiando? E tomo a liberdade de perguntar porque me lembro do senhor, há menos de um ano, na qualidade de deputado e candidato a governador, na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia, celebrando entre os nossos, como se fosse um de nós: “Menino nascido e criado no bairro da Liberdade, periferia pobre da capital baiana onde vive o maior número de negros da América Latina, eu sei bem da importância desta nossa vitória.”
“Capital baiana onde vive o maior número de negros da América Latina”. Palavras suas, governador, que só fazem sentido se vierem acompanhadas do respeito à NOSSA história. E se o senhor acha que a história do povo negro da Jamaica não lhe diz respeito, tomemos então a história dos negros da Bahia. Não sem antes nos lembrarmos da frase que talvez o senhor tenha ouvido nos seus tempos de militância sindical: “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.História que vai continuar se repetindo, se não prestarmos atenção a ela. E com maior intensidade a cada geração que a herda, porque ações e atitudes que tentam apenas mascará-la são construídas sobre escombros cada vez mais frágeis e contestáveis, exatamente porque ela, a História, se acumula e ganha peso.
Na sua camisa, governador, há também o rosto de Nanny dos Maroons, assim chamada por ter sido uma das mais importantes líderes quilombolas (conhecidos como marrons, na Jamaica) do século XVIII. Passando para a Bahia, talvez sua luta possa ser comparada à de Zeferina, mulher igualmente guerreira e líderança no Quilombo do Urubu. Pesquise um pouco, governador, e o senhor vai perceber que a Revolta do Urubu foi a revolta mais famosa organizada por um quilombo, e aconteceu em Salvador no ano de 1826. Silvia Maria Silva Barbosa, em “O poder de Zeferina no Quilombo do Urubu”, nos ensina que:“O poder de Zeferina tem feito parte da memória histórica de resistência da comunidade suburbana, que tem permitido salvaguardar essa história de luta enquanto referencial guerreiro de resgate da autoestima dessa população excluída economicamente, principalmente. E é nesta compreensão mítica de resistência negra que a guerreira Zeferina “renasce das cinzas”, conferindo poder de memória subversiva a cada ato de protesto e luta de libertação no bairro do atual quilombo e arredores baianos”. Sabe onde ficava o Quilombo do Urubu, governador? No Cabula. O historiador João José Reis, ao falar sobre quilombos e rebeliões escravas, diz que “A própria existência do quilombo e sobretudo sua defesa militar e incursões em território inimigo podem ser consideradas revolta”. Analisando essa frase tendo em vista os acontecimentos atuais, ouso dizer que a existência de comunidades como o Cabula, no abandono em que se encontram por parte do poder público que nada mais faz do que criminalizar a pobreza que ele mesmo ajudou a construir ao longo dos anos, já pode ser considerada revolta. E resistência. E perpetuação desse poder mítico deixado por mulheres como Zeferina, não sendo passível de destruição porque está em cada mãe, esposa, avó, namorada, filha, amiga que sobrevive aos seus mortos; e é captado e sentido igual por quem tem sensibilidade e humanidade para tanto.
A História é um fio inquebrantável, governador, e por isso acho importante falar de rebeliões escravas. E repressão por parte das polícias. Outra rebelião importante a ser lembrada, e que também possui ligações com o Cabula, é a Rebelião Malê, cuja repressão foi uma das maiores já perpetradas pelo governo brasileiro, mas cuja repercussão, hoje sabemos, foi de suma importância para começar a se pensar sobre o fim da escravidão no Brasil. Imagine-se, governador, vivendo naquela época e sendo responsável pela segurança pública da capital baiana onde já vivia, talvez, o maior número de negros da América Latina. Depois, informe-se um pouco sobre o que foi essa rebelião e as ações tomadas contra os negros da Bahia, sendo eles participantes ou não, e responda daqui, da segurança concedida por décadas de distanciamento: o senhor estaria do lado dos que combatiam o status quo, ou dos que combatiam os que combatiam o status quo? Pergunto porque, ainda hoje, sendo quase unanimidade a condenação à escravidão, podemos ler lá no site da polícia que o senhor coordena: “(…) E assim tem feito a Polícia Militar da Bahia durante seus 181 anos de existência prestando relevantes serviços a (SIC) Nação e ao Estado baiano, quer seja através de inserções para conter rebeliões de escravos, como na Revolta dos Malês; (…)“. Analisando, à luz do que se conhece hoje – porque é hoje que o site ostenta tal informação -, que instituição governamental, a não ser uma que tenha sido criada para combater aquele tipo de situação e não tenha se livrado ainda dos ranços de nascença, se orgulharia, a ponto de colocar em sua apresentação institucional, o fato de ter combatido rebeliões escravas, autorizando que falemos em genocídio do povo negro? A sua polícia, governador. A polícia que o senhor coordena, a partir desta capital baiana onde vive o maior número de negros da América Latina, descendentes da escravidão. A sua polícia; sobre a qual o senhor declarou, em sua conta em uma rede social:“Segurança Pública é um dos temas que chamei p/ mim. Estarei ao lado dos cidadãos de bem q doam suas vidas a serviço da população baiana.“
Chame para si também, governador, a tarefa de entender a História que nos conduz à situação de insegurança pública que vivemos hoje. Um excelente ponto de partida é exatamente o contexto histórico e as reações a partir de rebeliões escravas como a dos Malês. Aqui, governador, valho-me do trabalho da socióloga, historiadora e professora de criminologia Vera Malaguti Batista, na palestra “Medo, violência e política de segurança”. Vale a pena assistir na totalidade, mas abaixo saliento alguns pontos importantes.
Vera Malaguti Batista parte da ideia de que precisamos entender que é o medo que produz as demandas por ordem e lei, e ele – o medo – sempre foi usado pela hegemonia conservadora para justificar políticas autoritárias e controle social. O discurso do medo sempre foi usado pelos colonizadores e passado adiante para os que governaram depois deles. No Brasil, com sua história violenta de extermínios e dominações, é assim desde sempre; e foi nas décadas posteriores à Independência que o discurso do medo se intensificou, com as várias rebeliões escravas que aconteciam país afora. Como inimigo a temer e, portanto, castigar e/ou eliminar, justificado pelo racismo científico, estava o africano, o negro da terra, o escravo, o fujão e desobediente, portador do caos e da desordem. É neste contexto, e com o objetivo de manter o status quo, ou seja, o regime escravocrata, que surge o Corpo de Polícia, mais tarde chamado de Polícia Militar. O medo de que os negros, em maioria numérica em algumas regiões, como Salvador, tomassem o poder, fez com que grandes esforços fossem concentrados na repressão das rebeliões. E é exatamente nesse momento que, com o governo fechando os olhos para o caráter político dessas manifestações, que os manifestantes e revoltosos começaram a ser criminalizados. Outro momento em que a criminalização é reforçada, governador, e com o seu passado de sindicalista o senhor deve saber muito bem, é durante a ditadura, o grande momento da Polícia Militar que o senhor agora coordena. Assim como as rebeliões escravas, as manifestações e as greves, por exemplo, foram desinvestidas do seu caráter político e tratadas como questões de polícia, para que os “desviantes” pudessem ser perseguidos, torturados física e psicologicamente, presos, desaparecidos, mortos. Antes, infundia-se o medo para justificar a barbárie com quem se levantava contra a escravidão, depois, para legitimar a luta contra o comunismo, inimigo que agora passa a se chamar “guerra às drogas”. Os métodos são os mesmos, apenas o inimigo muda de nome, permitindo que também seja mantida a estrutura de controle social repressiva e conservadora que, na época da escravidão, publicava nos jornais “precisamos ter uma polícia que a nós inspire confiança e aos escravos infunda terror”, pedindo mais polícia e mais violência no controle dos “violentos”, sem ao menos tentar entender ou questionar contra o que eles se rebelaram, sendo, no caso, a escravidão, violência por si só.
O “nós” tratados aí acima, refere-se à elite de sempre (civil ou militar), os que o senhor hoje já aprendeu a chamar decidadãos de bem, mas também conhecidos como “humanos direitos”. O que sobra para os outros, que não fazem parte dessa elite, e que hoje habitam os quilombos transformados em favelas, senhor governador? Porque o bem só existe em contraponto ao mal, assim como o humano surge a partir da comparação com o não-humano. Um dos produtos mais insidiosos da criminalização da pobreza é a desqualificação jurídica do pobre e do negro (ele não precisa ser tratado como inocente até que se prove o contrário, porque sua cor e sua condição social são tidas como justificativas suficientes para sua condenação), fazendo com que sua palavra não tenha o mesmo peso da palavra que, sem provas, muitas vezes o condena. Exemplo disso: “prefiro acredita (SIC) na versão dos meus policiais”, dito pelo Secretário de Segurança Pública da Bahia, Maurício Barbosa, mesmo com suspeitas de que os policiais poderiam estar mentindo. E, em campanha eleitoral, o senhor disse que sabia haver na polícia elementos cujas palavras e atitudes não são confiáveis: “Infelizmente, têm alguns, como em toda profissão, que não honram a sua profissão e o seu trabalho e acabam se desviando, ou para o mundo do crime, ou para atitudes como essa que têm que ser fortemente reprimida e entregue essas pessoas à Justiça para que elas possam responder pelos seus crimes”.
Se há dúvida, se há duas ou mais versões sobre um mesmo fato, porque apenas uma delas deve ser levada em conta? Não seria o caso de, diante da mínima dúvida que seja, um agente público pago com dinheiro dos impostos tanto dos policiais “dele” como dos familiares dos mortos (usando argumento que o conservadorismo entende), abster-se de pender para um lado ou outro até o caso ser esclarecido? Acontece, governador, que outro produto dessa criminalização da pobreza e da cor, além da desqualificação jurídica, é a desumanização. Por isso causou tanta revolta (olha a palavra aí de novo, e aqui, por favor, revestida de todo o seu caráter político) a declaração que o senhor deu com tanta naturalidade, comparando o momento em que um policial deve decidir se atira para matar alguém com o momento em que um artilheiro deve decidir como vai chutar a bola para dentro de um gol. E, sendo ainda mais cruel, tudo aconteceu exatamente em uma área conhecida como “campo”, ou “campinho”, de chão batido, como desses de futebol de várzea. Se isso não é a banalização do desrespeito à vida humana, seja daquelas perdidas no campinho do Cabula, ou daqueles que as choram, podemos decretar a falência da humanidade. Nesse mesmo discurso, o senhor ainda usa o termo “famílias de bem“, como sendo aquelas que a sua PM deve respeitar. O que é uma “família do mal”, governador, partindo do pressuposto lógico de que a existência de uma depende da existência da outra? Se em uma família, um dos elementos cai no crime, a família inteira não precisa ser respeitada? Suas dores e seus lutos podem ser banalizados, tripudiados e comemorados através de figuras de linguagem? Dê uma olhada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em campanha (“Fernando Sodake: Tem como justificar essa forma como a polícia vem agindo? / Rui Costa: Olhe, eu diria que não tem justificativa. Nós temos que implementar, repito, a polícia cidadã, que respeite os direitos humanos”), e responda: quantas violações o senhor pode perceber, por parte do seu governo, no desenrolar e nas justificativas do acontecido no Cabula?
Quem cai na criminalidade, governador, leva consigo uma história que o empurra para lá e que, quase sempre, está relacionada à ausência do Estado e/ou a injustiças cometidas em seu nome. Tenho visto o senhor e outros agentes do seu governo falarem apenas em combate à violência sem que, em nenhum momento, falem também de tentar entender sua persistência ao longo da história. Analisando mais de 1.000 processos de jovens que foram parar no universo das drogas e se encontravam internados em FEBENS, FUNABENS etc…, nesse vídeo linkado acima, a professora Vera conta uma história que, para mim, ilustra muito bem o tipo de julgamento rápido que o senhor quer que seus policiais façam diante da decisão de condenar e eliminar uma vida. Primeiro, a questão da injustiça: quando um jovem branco, classe média (talvez o que o senhor chama de pertencente a uma família de bem) é pego com determinada quantidade de droga, é encaminhado para atendimento em casa, psicológico; e quando um jovem negro, pobre, morador de favela, é pego com a mesma quantidade, cai no sistema correcional ou prisional. Ela conta sobre um laudo de um desses meninos, preso já havia algum tempo, com a seguinte avaliação psicológica: “pelo brilho no seu olhar eu pude perceber como ele ainda desejava coisas que não se coadunam com a vida de um salário mínimo: guloseimas, roupa nova, garotas; e então, ele ainda está fascinado pelos ganhos fáceis”. E, segundo a professora Vera, “o garoto ganha mais dois anos só pelo brilho no olhar, porque – ela achava, pelo brilho no olhar – [que"> ele ainda desejava todas aquelas coisas que qualquer garoto da idade dele também deseja“.
E se o brilho no olhar, governador, (ou aquele lampejo de pensamento, rápido, com frieza, como o senhor propõe), tão importante para o julgamento – a decisão na hora do gol – tivesse sido apenas um raio de sol que, acidentalmente, entrou pela janela? Ou o reflexo de lágrimas? Ou um tiquinho de esperança que, se posta em liberdade naquele momento, junto com o corpo que a carregava, teria mudado sua trajetória? Que tipo de polícia é enviada para o confronto com um grupo perigoso e articulado de assaltantes de banco, como foi divulgado por membros do seu governo, depois de informação obtida através do monitoramento do Serviço de Inteligência, sem analisar todas as possibilidades e despreparada para agir? A justificativa da ação em si já é prova mais do que suficiente do quanto ela foi falha. E do quanto a corporação também não está preparada para proteger as vidas de seus integrantes, tratando-os como os pelotões de soldados negros e escravos que foram mandados para a Guerra do Paraguai para servir de bucha de canhão.
Agir por reflexo; parece ser a única coisa que resta ao seu sistema de segurança pública. Reflexo. Quantos brilhos nos olhares o sistema prisional, correcional, policial e judiciário tem tratado de apagar, senhor governador? Quantos futuros esses julgamentos precipitados e carregados de racismo e preconceito tem evitado de existir, governador? Quantos jovens negros e pobres os “policiais do mal”, acobertados e incentivados por um sistema no qual nem eles acreditam ou podem confiar, empurraram para a criminalidade, junto com suas famílias e suas comunidades? Sim, porque quando alguém sofre uma violência ou uma injustiça, ela também afeta todos aqueles ao seu redor ligados por laços de afeto ou geográficos. “Se aconteceu logo ali, na porta ao lado, pode acontecer aqui”, pensam os vizinhos. Hoje, principalmente com quase todos andando com câmeras em celulares, quase nada do que acontece nas comunidades passa sem registro. Ações violentas, arbitrárias e injustas do Estado (sim, o Estado é responsável por sua polícia, agindo ela em conformidade com as leis ou não, a mando dele ou às escondidas) circulam de tela em tela, e só não chegam até nós por causa da barreira do medo erguida por aqueles mesmos que tratam de difundi-lo. Lembra-se, governador: é o medo, e não o respeito ou a autoridade, que funciona como controlador social nos dias de hoje. E porque quem deveria estar zelando pela segurança de todos prefere acreditar sempre “nos seus policiais” que, por sua vez, se valem do silêncio do medo e de leis de exceção, como os autos de resistência, essas provas ficam por lá, alimentando a revolta, a sensação de insegurança, invisibilidade e injustiça, que assassinam ainda no nascedouro qualquer possibilidade de brilho no olhar que poderia levar crianças e jovens a sonharem com o que todas as outras crianças e jovens “do bem” são incentivados a sonhar: estudo, trabalho, família, tranquilidade, cidadania. E mesmo depois de mortos, governador, o Estado continua seu serviço de matar também suas reputações, como se isso justificasse a ilegalidade da pena capital e inconstitucional. No caso do Cabula, o Estado “informou” a imprensa que eram todos bandidos, que “informou” a população que a periculosidade de 12 bandidos havia sido tirada de circulação, junto com suas armas, munições e condição de indesejáveis; população que, por sua vez, aplaude o Estado e pede mais Estado, mais violência, mais ação, mais exibição de corpos e de armas.
Ato em memória
Imagem destacada: Audiência Pública: A ação da Rondesp no Cabula: limites para o uso da força da Polícia Militar. Foto: Leo Ornelas. Campanha Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta.
Este vídeo ilustra bem o tipo de mídia mentirosa e ardilosa que, a partir de informações fornecidas pelo Estado, alimenta o medo e a sanha da população. Uma das jornalistas faz a chamada: “Doze bandidos foram mortos em um tiroteio com a polícia quando se preparavam para assaltar um banco em Salvador.” E a outra complementa: “Segundo a polícia, a quadrilha com 30 homens armados e vestidos com roupa do exército, planejava roubar o banco na madrugada desta sexta-feira, quando PMs chegaram e foram recebidos a tiros. (No filme ilustrativo, homens armados e fardados atacam a polícia, em frente a uma agência bancária). No intenso tiroteio, 12 criminosos foram mortos e quatro ficaram feridos; entre elas, um sargento da polícia militar”. “Doze bandidos”, os “criminosos”, governador, sendo que apenas um deles tinha ficha criminal. É neste tipo de manipulação informativa que o seu governo (e os anteriores) se apoia para justificar e implementar uma política de segurança pública intrusiva e violenta. Investir em segurança pública, na atual conjuntura de uma sistema viciado, não deveria deixar de passar por investir em transparência. A transparência, governador, e não o medo, fará a polícia (e, consequentemente o Estado que a controla) ser respeitada e eficaz, em vez de apenas temida. É Kant quem diz que “todas as ações relativas ao direito de outros homens, cuja máxima não é suscetível de se tornar pública, são injustas”.
E quando falamos em transparência, principalmente em uma área tão cara a todos nós, como segurança pública, há que se encarar com honestidade e coragem os graves problemas que há muito nos deixam – Estado, inclusive – reféns da militarização. Para além desse episódio do Cabula, é necessário, governador, que se coloque em pauta, urgente, com participação popular, o fim dos autos de resistência, o fim da polícia militar, a discriminação das drogas, o sistema carcerário ineficiente, a formação humanista de uma polícia que não confunda autoridade com humilhação e violência, inclusive dentro de seus modelos hierárquicos. É preciso que a polícia se reinvente a partir de suas bases, fora dos gabinetes, levando em conta as necessidades de quem realmente tem ido para as ruas, mal treinado, mal pago, amedrontado, desestimulado, doente e invisível aos olhos de seus superiores. O senhor disse, governador, que os policiais envolvidos nas mortes do Cabula não seriam afastados de seus cargos, a não ser que aparecessem provas contra eles. Não é e não deve ser considerado normal que alguém envolvido em uma situação onde há perda de tantas vidas, e aqui não há que se distinguir entre civis e policiais, esteja apto a voltar ao trabalho no dia seguinte. Haverá algo de errado com esses policiais se não sentirem o trauma, assim como também haverá algo de errado se o sentirem. Não há saída fácil; não há vitórias nas e nem é saudável a comemoração das perdas, independente de que lado elas se deem. Há acompanhamento psicológico?, ou, melhor ainda, há estímulo e liberdade para que o policial procure acompanhamento psicológico para tratar tanto os traumas que geram insensibilidade quanto os que podem gerar ansiedade, crises de pânico, dores, culpas, medos, silêncios, violência? É preciso também que lhes sejam dadas condições e segurança para que ajudem no trabalho de denúncia, sejam seus pares ou de seus superiores, de policiais que agem na ilegalidade e contaminam toda uma corporação.
O tenente-coronel Adilson Paes de Souza, em sua dissertação “A educação em direitos humanos na polícia militar“, os chama de Super-homens e traça um perfil bem abrangente: “Eles são pessoas idealistas. São bons trabalhadores, são dedicados ao serviço e querem o bem da sociedade. Seu maior desejo é servi-la, é dar-lhe proteção e afastá-la do perigo. Aparentemente são pessoas iguais às outras. Têm família, pai, mãe, esposa e filhos. São dotados de um estrito senso de honra que deve ser observado, com rigor, em todos os momentos. Na Polícia Militar são respeitados. Muitos são tidos como bons exemplos. São condecorados e recebem tratamento diferenciado. São, pois, reverenciados.
Como todo super-herói que conhecemos, eles apresentam contradições, desilusões e, frente a uma realidade que desconheciam e com a qual não sabem lidar adequadamente, como será demonstrado em seguida, desenvolvem um código de conduta próprio. Não acreditam mais nas instituições, se veem em constante guerra com os denominados agressores da sociedade. Cada dia de serviço é um dia de batalha.
Diante desse quadro, eles evocam para si poderes que outras pessoas não possuem. A partir de um dado momento, movidos pelo sentimento de revolta com a situação deparada, eles personificam todos os órgãos do Estado responsáveis pela aplicação da Justiça. Como heróis anônimos buscam fazer justiça com suas próprias mãos de acordo com critérios estabelecidos.
Eles assumem, num só corpo, as atribuições conferidas aos juízes, promotores de justiça e advogados. As audiências de julgamento e a sentença, de morte, são instantâneas.
Eles estão em uma guerra e, nesse contexto, instala-se a lógica da eliminação do inimigo no campo de batalha. Confundem justiça com vingança e esse sentimento norteia suas ações.
(…) Ao final, reproduzindo o mesmo quadro que os levou a agir dessa maneira, eles assumem o papel dos delinquentes que combatem e atuam com a mesma impunidade que, um dia, lhes causou a revolta.”
Na referida dissertação, há quatro depoimentos desses policiais “super-heróis homicidas”, que valem muito a pena ler. Uma delas, apesar de bastante longa, colo aí abaixo, porque acredito que este tipo de experiência pode ajudar a pensar em como o Estado também é responsável pela produção de policiais homicidas, e que poderia ser interessante o uso de experiências e de depoimentos como este na prevenção e conscientização de mais “super-heróis homicidas”.
“1 – Por que ingressou na Polícia Militar?
Sou de origem de família nordestina. A honra era mais importante que qualquer outra coisa. Na hora do jantar todos se reuniam. Meu pai, policial militar aposentado, contava histórias da época em que estava no serviço ativo e sempre falava que os Oficiais eram homens importantes, com muita autoridade. O que eles mandavam fazer era feito.
Ao completar dezoito anos de idade, e uma vez que estava terminando o ensino de segundo grau, comecei a me preocupar sobre o meu futuro e sobre a escolha de uma profissão. Foi aí que recordei o que meu pai sempre comentava sobre a autoridade exercida pelos policiais militares. Inscrevi-me e, no primeiro concurso, fui aprovado e iniciei o curso de formação.
2 – O que aconteceu depois?
Concluí o curso com êxito. No dia da formatura sentia uma imensa felicidade, pois havia realizado um sonho.
Fui designado para trabalhar numa Unidade da Polícia Militar situada na periferia da cidade de São Paulo.
Comecei a ver uma realidade que não conhecia, favelas, meninas estupradas, pessoas pobres vítimas de roubo, o que causou revolta. Cada vez mais fiquei revoltado com o contexto que estava tomando conhecimento naquele momento, na área onde trabalhava.
3 – Como era o serviço?
Movido pela revolta com a situação com que me deparei, comecei a trabalhar além do horário normal. Trabalhava muito além das oito horas diárias. Só depois que tudo aconteceu, percebi que era um erro e que meu comandante deveria ter-me impedido de continuar nessa rotina. Infelizmente meu comandante foi omisso.
Comecei a prender todo mundo. Daí percebi uma outra realidade que também não conhecia. Muitas pessoas presas por mim e conduzidas ao Distrito Policial eram soltas.
Numa ocasião, prendi duas pessoas em flagrante delito, por terem praticado roubo a um supermercado. Isso aconteceu pela manhã.
A ocorrência foi apresentada no Distrito Policial, mas na mesma data, à noite, deparei com essas duas pessoas livres, andando normalmente pelas ruas de um bairro. Estranhando a situação realizei a abordagem em ambos, quando um deles disse que tudo estava certo e que a quantia em dinheiro destinada a mim, estava com o delegado de polícia na respectiva Delegacia, uma vez que houve acordo para liberação deles.
Nesse momento percebi que a corrupção existente nos Distritos Policiais da área, onde trabalhava, gerava a impunidade dos delinquentes.
4 – O que aconteceu em seguida?
Em seguida passei a frequentar velórios de policiais militares mortos em serviço.
Certa vez, uma situação ocorrida num velório causou-me revolta. Foi quando houve a condecoração e a promoção, por ato de bravura, de um cabo morto em serviço.
Para mim não havia sentido algum prestar homenagens e honrarias a alguém morto, isso deveria ser feito em vida. A partir desse exato momento tomei o lugar de Deus. O que significava que evoquei a condição de juiz supremo para mim. Eu é quem decidia quem deveria morrer.
Eu era juiz, promotor, advogado. Levava a vítima para um matagal, concedia-lhe um minuto para oração e o sentenciava à morte.
5 – Por que matava?
Primeiro porque me sentia investido de autoridade para tal, no sentido de que podia fazer de tudo. Segundo, devido à impunidade. Eu prendia as pessoas que, uma vez conduzidas ao Distrito Policial, eram soltas. Muitas vezes mediante o pagamento de propinas aos membros da Polícia Civil. Terceiro, a revolta e o ódio que sentia pela situação que deparava no dia-a-dia do meu serviço até então (extrema pobreza, violência de todo tipo, miséria etc). Quarto, a revolta com a morte de Policiais Militares, como se fosse alguém da minha família. Revolta, inclusive com a própria instituição que dava valor ao policial somente naquele momento.
6 – O que aconteceu então?
Matar alguém se tornou um vício. Contudo, não percebi que, com o tempo, o que enxergava de errado no outro não enxergava em mim mesmo. Não enxergava a impunidade em mim mesmo, diante dos atos que praticava.
Acabei sendo preso pela prática de homicídio.
7 – Como foi esse fato?
Fui preso, acusado e condenado pela prática de homicídio a tiros e facadas. O fato ocorreu num matagal e os corpos foram lá deixados sem serem enterrados, para serem localizados.
No auge da prática do ato senti que estava cheio de ódio e acabei descarregando tudo sobre o corpo da vítima. Tinha um sentimento de ódio generalizado, de tudo.
8 – Qual foi sua pena?
Fui condenado a bem mais de vinte anos de reclusão.
9 – O que sentiu na prisão?
Fui preso durante as investigações no antigo Serviço Reservado da Polícia Militar, atual Corregedoria, sendo mantido numa sala fechada, vestindo somente roupas íntimas. O colchão sujo de urina e de fezes. A alimentação era resto de comida de outras pessoas. Sofri tortura psicológica.
Como não me alimentava fiquei doente. Conduziram-me ao Hospital da Polícia Militar, onde permaneci internado no Setor de Psiquiatria, na época denominado Primeira Enfermaria. Lá me trataram como uma pessoa com distúrbio mental e prescreveram medicação indicada para tal quadro, o que me dopou.
Lá presenciei uma pessoa internada sendo brutalmente espancada por enfermeiros da repartição. O motivo? O paciente era Oficial e os enfermeiros eram praças. No dia seguinte foi dada a versão de que o paciente apresentou um surto psicótico durante a noite, tendo apresentado um comportamento violento e se auto-lesionado, até ser contido, inclusive, com o uso de medicação pesada para tal.
Quando fui recolhido ao Presídio Militar, logo no primeiro momento na cela senti que não era aquele super-homem que podia fazer tudo. Percebi que era prisioneiro dos meus próprios desejos e da minha própria consciência e que, logo de pronto, mesmo possuindo graduação em cursos de nível superior, realizados fora da corporação, a partir daquele momento, passaria a efetuar faxina nos banheiros do presídio. Daí tive consciência de que havia tido muitas oportunidades, mas que as havia desperdiçado.
A sensação é de que o mundo acabou e que não havia mais razão para existir. Queria me fazer de forte perante os outros, principalmente durante as visitas.
Também senti ódio porque muitos policiais militares, companheiros de serviço na Unidade que trabalhava, visitavam-me, não por solidariedade e para prestar apoio, mas sim para saber se eu os havia delatado em virtude de outras ocorrências. Senti-me, nesse momento, abandonado e que os referidos policiais militares não estavam preocupados comigo e nem com minha família.
Fui condenado no primeiro julgamento e pude aguardar novo julgamento em liberdade. Nesse período trabalhei no serviço administrativo da Polícia Militar. Aí percebi a existência de uma outra realidade na corporação. Lá as pessoas trabalhavam tranquilas, havia horário para a realização de atividades físicas e recreativas duas vezes por semana. Era uma outra Polícia, diferente da que conhecera até então.
10 – Quais foram as consequências do erro cometido?
A primeira foi o sofrimento da família. Muitos de meus familiares ficaram doentes física e psicologicamente. A segunda, a perda de função, uma vez que fui expulso da Polícia Militar. Um sonho se despedaçou. A terceira, a discriminação que minha esposa e meus filhos passaram a sofrer. A quarta, o sofrimento pela ausência do pai e do marido, no seio da família, em datas específicas (Natal, aniversários, formatura de escola etc). A quinta foi que minha esposa tentou suicídio. A sexta, a cobrança da família por ter me abandonado. A sétima, a sensação de abandono e rejeição que senti.
11 – Na sua percepção, por que um policial militar pratica homicídio?
Primeiro por ser uma questão cultural, baseada na questão de honra herdada da família, por exemplo.
A isso se adiciona o ambiente em que o policial militar trabalha, favorecendo o sentimento de se perceber como super-herói e, em razão disso, tudo pode fazer e nada vai acontecer.
12 – No seu ponto de vista, há a possibilidade de ser realizado um trabalho preventivo?
Sim. Primeiro a realização de acompanhamento psicológico. Não só em ocorrências graves, como é realizado atualmente, mas sim no dia-a-dia do policial militar.
Baseado na minha experiência, não sentia mais compaixão, não chorava mais. Nada mais me abalava. Perdi o sentimento. Eu mesmo constatei que a pessoa endurece aos poucos e não percebe.
Daí a necessidade de acompanhamento psicológico constante, dada a característica do trabalho policial-militar. Mesmo que ele não solicite, pois pode estar afetado psicologicamente e não perceber tal condição.
Segundo, os Comandantes de Unidade precisam estar realmente presentes e preocupados com o serviço, e prestar atenção ao comportamento adotado pelos policiais subordinados. No meu caso, os comandantes foram omissos, quando não estimulavam o comportamento nocivo através da concessão de condecorações e de honrarias.
Terceiro, o combate à impunidade. Em meu caso, nunca nenhum superior fez qualquer menção ou adotou qualquer atitude para que eu parasse de praticar os atos que pratiquei.
Quarto, a realização de um trabalho de conscientização de valores, por meio da instrução e do diálogo constantes.
Não podemos esquecer que o homem deve ser entendido em sua integralidade, pois ele é constituído de espírito, alma e corpo, e se não houver um equilíbrio nestas três áreas, em algum momento haverá problema.
Na parte do corpo – a preocupação com hábitos alimentares, com higiene, com a saúde e com a prevenção de doenças.
Na parte da alma – entra a psicologia (mente, livre arbítrio e emoções), na fisiologia fala-se do cérebro.
Na parte do espírito – comunhão com Deus, criador de todas as coisas, a palavra religião em sua essência “religar o que foi desligado”, o homem sem Deus andará em próprios desejos, em suas próprias vontades, e as consequências serão drásticas, no entanto. Todo homem precisa saber: Quem ele é? Por que ele existe? E qual seu propósito?
Tudo isso para que o policial militar não se sinta um super-homem pelo fato de usar farda e portar arma. Para que ele seja e se perceba como uma pessoa normal, que se emociona, que sente dor, medo e compaixão.”
E tudo em que o senhor pensa, governador, é colocar mais policiais armados nas ruas (o BOPE, inclusive!), sem mexer nessa estrutura doente e falida, capaz de produzir mortos e homicidas em quantidades assustadoras, sem nunca ter que parar para se repensar? Capaz de, há décadas, manter a mesma mentalidade que projeta para fora de si o inimigo que de fato é, chamando-o, quando lhe convém, de quilombola, escravo fujão, rebelado, macumbeiro, capoeirista, comunista, bandido, delinquente, criminoso, traficante?
Um pouco de informação sobre o que aconteceu em Bogotá, na Colômbia, também pode dar mais ideias dos efeitos de implantação de uma programa de redução de violência chamado “Cultura Cidadã”, por ser exatamente focado em mudanças culturais que promovem a segurança do cidadão, entre os quais se inclui a polícia. O seu programa se chama “Polícia Cidadã” , que, já, de saída e no próprio nome, exclui o não-policial. Na edição 182 da Revista IHU On-Line, entre várias outras entrevistas que poderiam te interessar, há a de Antanas Mockus Sivickas, na época candidato a presidente da Colômbia e ex-prefeito, duas vezes, de Bogotá. Há várias alternativas à segurança pública belicista e militarizada, senhor governador, sendo que as mais eficazes são aquelas em que, na formação de Conselhos de Segurança, a polícia é apenas uma das vozes a serem ouvidas, e as vozes da população nunca deixam de ser ouvidas.
Dentre essas vozes, por exemplo, em Salvador, estão os integrantes da ação Reaja ou será morta! Reaja ou será morto!, criada em 2005 para denunciar e combater o genocídio do povo negro, e que o senhor se negou a receber no último dia 06 de fevereiro. Já acompanhei o pessoal da Reaja! em visitas à cadeia da Mata Escura, na grande passeata de agosto do ano passado, contra o genocídio do povo negro, na caminhada em memória dos mortos no Cabula, no último dia 11/02, até o campo onde aconteceu a chacina, e vejo que eles ocupam espaços que, ou o Estado deveria estar ocupando, ou que não seria necessário ocuparem se o Estado fizesse sua parte. Assim se apresentam: “A Campanha Reaja ou será mort@ é uma articulação de movimentos e comunidades de negros e negras da capital e do interior do estado da Bahia, articulada nacionalmente e com organizações que lutam contra a brutalidade policial, pela causa antiprisional e pela reparação aos familiares de vítimas do Estado (execuções sumárias e extrajudiciais) e dos esquadrões da morte, milícias e grupos de extermínio”. Ainda, segundo um de seus principais articuladores, Hamilton Borges, que sempre tem seu nome circulando de maneira ameaçadora em listas de policiais, “a Reaja é um grupo duro, que vive nas esquinas, nos becos, nas vilas e prisões, e nossas demandas de cuidado incluem alimentar pessoas, buscar remédios, proteger da policia que mata, fazer manifestações, levantar barracos, chorar junto – porque não damos conta, enterrar menino com dinheiro cotizado pro caixão”.
Desde que começou sua atuação em Salvador, e principalmente em seguida a cada denúncia, demanda e/ou atuação, membros da Reaja! e das comunidades que atendem e protegem têm sofridos as mais diversas intimidações, como vigia ostensiva, abordagens, invasões e tentativas de invasões de domicílio a partir de supostas denúncias anônimas e sem os devidos mandatos, ameaças de morte via telefonemas ou nas redes sociais. Anteriormente, os militantes da Reaja! já protocolaram pedidos de proteção para os quais nunca obtiveram resposta. Neste caso do Cabula não tem sido diferente. Na carta que eles queriam entregar ao senhor pedem a retirada das tropas policiais militares que ocupavam a comunidade, intimidando e infringindo terror psicológico, investigação das intimidações e ameaças sofridas por militantes da Reaja!, que têm se manifestado pacificamente e em conjunto com organismos locais e internacionais de direito, proteção imediata às testemunhas, perícia técnica correta e transparente, afastamento preventivo dos policiais envolvidos na ação, início de um debate acerca do controle externo da atividade policial com a participação da sociedade e, não menos importante, uma retratação pública do governo pelas opiniões oficiais precipitadas e baseadas em uma única versão dos fatos, pré-investigação, o que influencia também o pré-julgamento da opinião pública e a sociedade civil. É pedir demais, governador, frente aos anos de ameaças, invisibilidade, luta, apoio a famílias destruídas e clamor por justiça? É pedir algo que, aliás, vá além da justiça pura e simples?
Atenciosamente,
Ana Maria Gonçalves, escritora, autora de Um defeito de cor
*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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