As expressões artísticas produzidas nas periferias provêm de manifestações culturais que integram a vida cotidiana. Teatro, música, dança e pintura interligam-se a autos populares e festejos sagrados e de rua, contações de histórias e à arte de cantadores- vendedores ambulantes ou seus pregões. As “artes periféricas”, que acabam por ocupar os palcos, as ondas do rádio, a TV ou a internet, vêm, antes de tudo, da presença no dia a dia, da espontaneidade, da quase indissociação entre a vida diária e a vivência artística.
As expressões artísticas produzidas nas periferias provêm de manifestações culturais que integram a vida cotidiana. Teatro, música, dança e pintura interligam-se a autos populares e festejos sagrados e de rua, contações de histórias e à arte de cantadores- vendedores ambulantes ou seus pregões. As “artes periféricas”, que acabam por ocupar os palcos, as ondas do rádio, a TV ou a internet, vêm, antes de tudo, da presença no dia a dia, da espontaneidade, da quase indissociação entre a vida diária e a vivência artística.
Isso se passou e se passa no Brasil, mas também nos países em que a presença da população negra se deu a partir da escravidão, ou seja, em diferentes lugares das Américas e nas ilhas localizadas no mar do Caribe, todos integrantes da diáspora africana. Nas sociedades em que negros e negras participaram de seu desenvolvimento, além do aporte na economia durante a escravidão (lavoura, mineração, pecuária, metalurgia, tarefas domésticas...), cidadãos e cidadãs oriundos da parte ao sul do deserto do Saara africano e seus descendentes traçaram a espinha dorsal das estéticas que conferem identidade a esses países, mantendo a tradição de se expressarem culturalmente na rotina diária, diferentemente da divisão estabelecida por povos europeus que entendiam as expressões culturais e artísticas apartadas do dia a dia, devendo ser desenvolvidas em ambientes próprios, tais quais museus, conservatórios, anfiteatros etc. Foi pelo olhar e pelo fazer da população negra que se deram as misturas de manifestações culturais e artísticas de diferentes etnias de africanos, europeus e nativos (povos naturais das Américas chamados pelos europeus de indígenas), resultando em elaborações estéticas presentes nas ruas e nos quintais das regiões que passaram a se chamar “periferias”.
Sem os folguedos populares como maracatu, reisado e bumba meu boi (surgidos nessa “periferia do Brasil” que é o Nordeste e que ocupou as periferias da cidade de São Paulo, com a migração), sem a congada, sem o jongo ou a capoeira ou o candomblé, ou seja, sem as manifestações culturais negras das periferias simbólicas – porque à margem das elites autocentradas – e reais –, às margens dos riscos cartográficos que delimitam as cidades –, hoje, periferias-cêntricas (lá e cá, em todo lugar), não veríamos surgir repente, embolada, literatura de cordel ou a rica dramaturgia de grupos ativos atualmente, como Teatro Popular Solano Trindade (continuado pela família do poeta e dramaturgo na cidade que o escritor “adotou”, Embu das Artes), Nós do Morro, Cia. Os Crespos, Capulanas e outros que, aos poucos, vão ocupando palcos teatrais em produções cênicas que enchem os olhos, os ouvidos e outros sentidos para além dos espaços periféricos (ambos com igual importância de serem ocupados!).
Chorinho, samba e suas vertentes (samba-choro ou choro de gafieira, samba de breque, samba-enredo, samba de partido-alto, samba-soul, samba-reggae, samba-de-roda, samba-rock), axé music, mangue-beat, baião, xote, xaxado, rap, funk original, funk carioca... Todos esses são gêneros musicais elaborados a partir da vivência do cotidiano nas periferias. Todos gêneros que trazem consigo passos da dança, tornando o espetáculo ao vivo uma experiência para além da fruição, para além da apreciação, uma experiência sensorial, em que o movimento do corpo é permitido, requerido até – seja dançando em pé ou embalando-se na cadeira –, prática antes desaprovada durante as apresentações artísticas de matriz europeia praticadas no Brasil e nas Américas.
A forma de organização social trazida pelos portugueses ao Brasil foi a que prevaleceu por muito tempo. Hoje as manifestações culturais realizadas no ambiente cotidiano das pessoas que as fazem estão mais valorizadas do que eram antigamente. Ainda temos os espaços reservados para a fruição artística, mas já não mais intocável como outrora, quando não havia participação da audiência a não ser nos momentos finais, com aplausos comedidos. Arte produzida para o entretenimento, com a qual não se interagia. Até aquele período, meados do século passado, as artes dividiam-se entre “eruditas” e “populares”.
Com o passar do tempo, às vezes as elites foram trazendo para os espaços cêntricos obras populares sem, contudo, apresentar seus autores. Quando seus autores e suas autoras puderam apresentar-se, saindo dos bastidores, algo geralmente não apontado se fez presente: em grande número, tais obras eram de autoria de representantes da população afrodescendente (que inclui negros e mestiços de negros). Depois, com os gêneros populares integrando a indústria do entretenimento, criaram-se nichos para atuação artística de vertente popularesca, independente das classes sociais das quais provinham. A partir daí, artistas afrodescendentes das periferias perderam a evidência como representantes das artes populares.
Foi assim até o surgimento do hip-hop nos anos de 1980, que voltou a retroalimentar a autoestima das periferias com realizações culturais próprias e efervescentes protagonizadas pela juventude negra e que fez reverberar na proliferação de saraus literários intergeracionais, grupos teatrais e manifestações variadas da cultura afro que têm produzido obras de grande valor estético e que aparecem com maior força para o restante da sociedade em eventos como o Estéticas das Periferias, que teve em 2012 sua segunda edição.
Por ser uma arte de maior alcance via meios de comunicação de massa, a música permite exemplos rápidos sobre a participação fundamental da cultura negra das periferias nos grandes gêneros e com relação aos grandes expoentes surgidos entre os séculos 20 e 21. Essa participação diz respeito a artistas como Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Clara Nunes, Beth Carvalho, Jorge Ben Jor, Tim Maia, Elba Ramalho, chegando às gerações pós-anos 1990: Chico Science, Zeca Baleiro, Chico César, Paula Lima, Fabiana Cozza, Emicida, Criolo... Representantes de gêneros musicais criados a partir da atividade cotidiana das camadas populares periféricas, formadas predominantemente por negros(as) e suas tradições vindas da África. Gêneros criados a partir dos ritmos da liturgia sagrada de orixás e inquices; dos cantos de trabalho de lavadeiras, agricultores e ferreiros; dos ritmos produzidos nos fazeres dessas atividades; dos versos dos pregões dos vendedores ambulantes; do vissungo ou jogo de pergunta e resposta entre a voz solo e o coro; da ladainha das rodas de capoeira...
Foi com o reconhecimento da qualidade estética das artes das periferias que as manifestações populares passaram a ser estudadas sem o peso do preconceito social e também aprendidas em escolas de artes, tendo seus(suas) representantes reconhecidos(as) oficialmente e contratados como educadores(as) para além dos empreendimentos educativos, muitas vezes mantidos por eles(as) próprios(as) em seus bairros ou comunidades. Mas um obstáculo, no entanto, ainda é muito presente. E ele integra as razões da criação da Rede Kult Afro, a qual represento. Trata-se da ausência da abordagem racial a partir da contribuição negra nas discussões públicas sobre as culturas e as estéticas das periferias.
Aprendemos com a África que canto, música, dança e artes plásticas não se separam. Performance, em qualquer um dessas manifestações artísticas no século 21, é sinônimo da presença de todas as outras em cena. Aprendemos com a África que riso, lágrima, suor, aroma, odor, ofegância e langor, os sentidos todos, integram a vida cotidiana e, por sua vez, conferem vida às estéticas das periferias presentes em toda parte.
O que historicamente é feito nas periferias das Américas, onde a presença maciça é a presença negra, é a manifestação artística espontânea que, obviamente, fica muito melhor quando apoiada – logística, financeiramente e com incentivos de toda ordem. Apoio para realçar suas qualidades, beneficiar a todos e todas, estimulando artista e público, promovendo a criatividade de crianças, adultos e idosos de todas as raças e classes sociais que, sem os espaços conquistados por onde as estéticas das periferias circulam, talvez não dessem continuidade ao seu potencial artístico.
Sem a presença negra nas periferias, as estéticas que se têm hoje nos centros e nas bordas certamente seriam outras... A música não seria tão rítmica; as artes visuais e cênicas, não tão coloridas e proverbiais quanto nos legou a África na diáspora, a África nas periferias presentes em toda parte.
*Liliane Braga é fundadora do Quisqueya Brasil – Projetos afro-diaspóricos de cultura e educação e membro da Rede Kult Afro de empreendedores, artistas e produtores de cultura negra do estado de São Paulo.
*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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