Há uma forte corrente de opinião em Moçambique que defende que a crise da chamada dívida oculta é resultado da fraca soberania financeira do estado. Por conseguinte, ela deve servir de factor e de oportunidade para se repensar e reclamar esta tão necessária soberania. Esta corrente sugere ainda que esta dívida, e as suas consequências, como o congelamento de novos desembolsos ao orçamento do estado, por parte dos parceiros internacionais são, na verdade, consequência da incapacidade de produção interna. Se Moçambique fosse auto-suficiente não teria sido obrigado a recorrer à divida externa para financiar as suas necessidades de desenvolvimento, incluindo para financiar a guerra. Este argumento sugere que para se sair do imbróglio em que nos encontramos deve-se aplicar a simples fórmula do aumento da produção interna.
O sector da agricultura é avançado como o sector de produção mais adequado à este desafio, muito com base no já conhecido elevado potencial agrário de que Moçambique dispõe. Outros sugerem ainda o alargamento da base tributária, fundamentalmente através da renegociação dos contractos com os chamados mega-projectos, para que estes passem a contribuir mais em receitas fiscais para o estado.
Neste sentido, fica subjacente, neste argumento, que não haveria crise alguma causada por uma tal dívida oculta, uma vez que o país teria sido capaz de suprir as suas necessidades sem ter de recorrer ao endividamento. Assim sendo, uma vez que o problema passa a residir na fraca soberania financeira do estado, é aqui para onde as atenções e todo o debate público se devem concentrar.
Todavia, este argumento ignora ou pretende ocultar, deliberadamente, as verdadeiras facetas da problemática da chamada dívida oculta. Primeiro, esta problemática não adveio do simples facto de o governo ter contraído uma dívida em tanto que tal. Qualquer país mais ou menos soberano tem até o dever de contrair empréstimos para suprir necessidades urgentes dos seus cidadãos. Moçambique sempre o fez e voltará a fazê-lo, novamente, sempre que for necessário. O que torna esta dívida problemática são os elevados contornos de ilegalidade e corrupção que a rodeiam. Segundo, é preciso reiterar que o problema da dívida oculta não se situa na origem (externa ou interna) dos valores em causa. Não importa de onde vieram os empréstimos. Ou seja, a dívida não se tornou de carácter nem oculto nem ilegal pelo simples facto de os valores em causa terem sido contraídos no estrangeiro. Fosse de origem interna ou externa, qualquer dívida ou dinheiro público ao não ter sido, deliberadamente, nem revelada nem ter passado pelo escrutínio das instituições públicas (ex. Parlamento, Tribunal administrativo) com tal responsabilidade legal, passaria a ser, automaticamente, oculta e ilegal. Neste sentido, a origem dos empréstimos não retira a natureza do acto “criminoso”.
Terceiro, a necessidade de se trabalhar para a soberania financeira do estado deve ser vista como um imperativo (quotidiano) de qualquer estado, incluindo do estado moçambicano. Qualquer economia deve desenvolver esforços constantes nesta direcção e não deve apenas fazê-lo em momentos de crises, ou mesmo para poder justificar crises, como no caso presente. De que Moçambique deve concentrar-se, diariamente, no reforço da sua capacidade de auto-financiamento deve ser um dado adquirido das políticas e práticas de governação. Não existe, portanto, qualquer relação de causa-efeito, no meu entender, entre a fraca autonomia financeira do estado moçambicano e o carácter oculto e ilegal desta ou de qualquer outra dívida. Quarto, a agricultura tem sido apontada há quarenta anos como a base de desenvolvimento nacional. No entanto, as políticas e práticas caracterizadas pela sua marginalização, principalmente pela marginalização da agricultura do sector familiar, reflectida nos baixíssimos índices de produção agrícola, demostram o quanto este sector nunca foi prioridade. É, por conseguinte, de se duvidar que este mesmo governo venha a inverter este cenário num futuro breve. O que não tem sido aposta há quarenta anos tem pouca possibilidade de o ser em cinco.
Na verdade, enquanto que a problemática da dívida oculta revela a elevada promiscuidade com que se gere a coisa pública em Moçambique, a tese que sugere a fraca soberania financeira do estado pretende reforçar o contexto de impunidade que se assiste. É, por conseguinte, neste especto em que reside a questão de fundo e para onde o debate público e as mudanças se devem orientar. É importante que não se veja a dívida oculta como, necessariamente, um problema de endividamento per se. Os parceiros de financiamento ao orçamento do estado não congelaram os seus desembolsos pelo simples facto de existência de uma dívida, mas sim, pelos elevados sinais de corrupção com que estes empréstimos foram contraídos.
A outra faceta desta problemática está na (revelada) elevada fragilidade e vulnerabilidade ao saque dos fundos e das instituições públicas em Moçambique, que dá lugar a essa promiscuidade e impunidade. É verdade que o país deve desenvolver esforços rumo à uma tal soberania financeira, pela capacidade que esta concede ao estado de decidir sobre as suas próprias prioridades, autonomamente. No entanto, é mais verdadeiro ainda que financeiramente soberanos ou não, enquanto subsistirem práticas de promiscuidade e impunidade na gestão da coisa pública, haverá sempre crises idênticas ou ainda piores. Por outro lado, a verdadeira soberania financeira poderá nunca ser alcançada enquanto as instituições que escrutinam a gestão do bem público não forem igualmente soberanas e actuantes, quer para impedir quer para punir actos semelhantes. Enquanto isso não acontecer, quer sejam fundos provenientes da agricultura nacional, dos mega-projectos, dos empréstimos (internos ou externos) até mesmo de doações, esses fundos encontrarão exatamente o triste paradeiro desta dívida: O occultu.
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