Desabafo sobre os rolezinhos no Brasil

Era uma vez um menino negro morador de uma comunidade excluída de Salvador (Terezinha/Rio Sena) que saía aos sábados à tarde para dar um "rolezinho" no Shopping Iguatemi. Quase sempre ia apenas com a passagem de ida e volta, não comprava nada. Algumas vezes, entretanto, passava "por baixo/cima" da "borboleta" do ônibus com seus camaradas, assim sobrava um pouco de dinheiro e o rolê ficava mais divertido.

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VM

Era uma vez um menino negro morador de uma comunidade excluída de Salvador (Terezinha/Rio Sena) que saía aos sábados à tarde para dar um "rolezinho" no Shopping Iguatemi. Quase sempre ia apenas com a passagem de ida e volta, não comprava nada. Algumas vezes, entretanto, passava "por baixo/cima" da "borboleta" do ônibus com seus camaradas, assim sobrava um pouco de dinheiro e o rolê ficava mais divertido.

O objetivo dele, e dos seus colegas, era apenas ir ao fliperama do terceiro piso (onde o ar condicionado era mais forte), "charlar" de boné, com alguma bermuda da "Seaway", "Billabong", "Hang loose" ou "Fido Dido". Nos pés, não poderia faltar a sandália da "Kenner" ou o pisante da "Nike". Alguns desses produtos eram de "segunda mão", comparado na mão da galera do "movimento" pela metade do preço. Ou seja, alguém no Costa Azul, da Graça ou Barra fazia uma "doação forçada" para a comunidade.

A ideia no shopping era jogar videogame apostado, com ficha de lata, desafiando os playboys pra tirar onda. Depois dali, com a noite chegando e um spray na mão, era a vez de brilhar nos muros da cidade largando as "tags" e os "bobs". A regra era sempre andar com uma agenda na mão (para pegar assinatura dos mais conhecidos no mundo da pichação) e caneta-corretivo para deixar a marca no ônibus. A meta era "fazer o nome", "ser reconhecido" (SER ACEITO). É claro que os maiores inimigos eram os seguranças, identificados ou não, e eventualmente a Polícia. Mas, não eram "criminosos"...queriam apenas diversão e lazer.

O ano desse relato é 1996 e a história acima é a minha (que mudou MUITO de lá pra cá). Não gosto mais de usar roupa de surfista, e deixei um pouco pra lá o videogame..Do grafite ficou a lembrança e algumas "regras" que uso na Comunicação, que por ironia foi o curso que me graduei.

Hoje, depois de muita trajetória de vida e aprendizado, olho para trás e me pergunto como consegui mudar o curso da minha vida. Aprendi inglês sozinho, conheço 14 países, me pós-graduei no exterior com a mais importante bolsa de estudos do mundo. E o mais importante, faço o que gosto.. trabalho na área que escolhi. Mas..... sou uma exceção!

Quando vejo esse debate sobre os Rolezinhos lembro que muita gente já escondeu bolsa pra mim (e ainda esconde), que certamente a elite que frequentava o shopping naquela época não tolerava nem de longe nossa presença ali. Mas, o que é mais importante: ninguém dessa mesma elite nunca fez NADA para melhorar nossa vida...pelo contrário, até hoje o bairro onde eu nasci continua sem um ginásio de esporte, uma biblioteca de qualidade, um centro de formação profissional e até mesmo uma banca de revista!!!

Julgar os jovens do rolezinho é fácil. Chamá-los de vândalos, baderneiros e sem futuro é o discurso padrão. Mas, não é bem assim! É preciso ouvir esses jovens! Que tal os shoppings e lojas de grife se juntarem para financiarem bolsas de estudo para jovens das comunidades? Investirem em projetos sociais das centenas de organizações comunitárias? Quem sabe criar alguma atividade dentro do próprio espaço com eles?

Apesar de não gostar de expôr (e glamourizar) minha vida (essa é a primeira vez que falo isso em público), queria registrar minha história e dizer que é a sociedade brasileira que é a grande culpada por isso tudo. Investem mais em cadeia do que em laboratórios de ciência e informática.. e enquanto as mães jovens e pretas estão cuidando dos filhos das brancas nos bairros nobres, a rua está lá cuidando dos menininhos pretos na periferia. Como diz Mano Brown, "você escolhe o que está mais perto".

Por mais que eles não saibam, os jovens que estão no rolezinho no RJ e SP estão fazendo um ato político. Não essa babaquice de que eles estão questionando o capitalismo (esse papo de intelectual de esquerda - que sempre teve tudo na vida - me enjoa). Eles são vítimas desse sistema, SIM, mas estão ali apenas para andar de marca, tomar um sorvete da McDonald's...serem reconhecidos, como um dia eu quis ser.

Estão ali pois, acreditem ou não, o shopping é um lugar confortável e que todos, não só os "bem-nascidos" da classe média merecem frequentar. Eles (jovens do rolezinho) merecem, sim, usar as melhores marcas, terem as melhores motocicletas, morar nos melhores lugares, viajar para o exterior, comprar uma TV LCD..O que falta é uma verdadeira inclusão e pessoas que sirvam de modelo para eles (que não seja o tráfico e roubo). E claro, que eles entendam que o reconhecimento não deve vir pelo consumo, mas por uma boa educação. E outra, mais violento do que o nosso rolezinho sempre foi o "rolezão" da Polícia e grupos de extermínio nas comunidades.

O Rap salvou a minha vida..foi uma fita cassete dos Racionais MCs que me ensinou pela primeira vez que ser preto é lindo, que as mulheres negras são belas, que a África tem muita história e que nossos heróis não morreram de overdose, mas estão aí lutando por dias melhores. E claro, sem apoio, carinho e referência da minha família (mãe e pai) certamente hoje eu não estaria aqui para contar essa história.

É engraçado que já dei "rolezinho" em shoppings de Nova Iorque, Paris, Belgrado, Istambul, Adis Abeba, Londres...mas, nunca me sinto tão "vigiado", ainda hoje, como aqui no Brasil. Outro dia na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro três seguranças me cercaram. A única informação que tinham sobre mim era a cor da pele.

O que motivou fazer esse desabafo foi o excelente texto de minha amiga, a publicitária Luciane Reis, sobre o assunto e um post de Enderson Araújo, um jovem que também sabe muito bem do que estou falando. Assim como nós, muitos jovens negros tem a mesma história e é por isso não podemos nos calar com essa repressão.

Esse é o momento certo de se pensar em uma verdadeira política pública para a juventude negra e de periferia. O Brasil do jeito que está é insustentável. E a tendência é piorar...Nenhum povo consegue ficar oprimido por muito tempo, como diz o economista Hélio Santos.

Se você é contra ações afirmativas, políticas de assistência social e investimento em educação..não se preocupe, no sinal de trânsito, com seu vidro aberto, há sempre uma oportunidade de você mudar de ideia. É na esquina que os destinos se cruzam.

* Dedico essas linhas aos meus amigos que também conseguiram sobreviver a esse holocausto urbano. Faço referência também aos colegas que se foram, mortos na mão da polícia, ou matando e morrendo por um tênis Nike e uma bermuda da Cyclone..

*Paulo Rogério Nunes - Publicitário, graduado em Comunicação Social pela Universidade Católica do Salvador. Pós-graduado em Política e Estratégia pela Universidade do Estado da Bahia e especialista em Jornalismo e Novas Mídias pela Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. De vez em quando ainda dá um rolezinho pelos shoppings da capital baiana.

*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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