Cristofobia: a propósito de mais uma baboseira nacional

Diz-se, desde que me conheço por gente, que o Brasil é um país a ser observado. Somos um laboratório e, portanto, lugar de gestão do novo em velho, e do velho em novo. Assistimos agora, por exemplo, o embate entre sistema de crenças e sistemas de valores, fruto tardio de uma passagem crítica de um mundo rural limitado para um mundo urbano, amplo e inclusivo. Desta fricção erigimos possivelmente nossa nova paisagem moral, e dela decorrerá parte da dinâmica de nosso sistema cultural no futuro.

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Antropólogo analisa a simulação de uma crucificação durante a Parada Gay de São Paulo.

Diz-se, desde que me conheço por gente, que o Brasil é um país a ser observado. Somos um laboratório e, portanto, lugar de gestão do novo em velho, e do velho em novo. Assistimos agora, por exemplo, o embate entre sistema de crenças e sistemas de valores, fruto tardio de uma passagem crítica de um mundo rural limitado para um mundo urbano, amplo e inclusivo. Desta fricção erigimos possivelmente nossa nova paisagem moral, e dela decorrerá parte da dinâmica de nosso sistema cultural no futuro.

Talvez por isto mesmo estejamos nos tornado um país que vive de permanentes casuísmos, de correções e erros, de retaliações, e de desinteligência com respeito ao povo que queremos no futuro. O mais recente destes casuísmos vem sendo resenhado pelos noticiosos e tem como estopim a passeata LGBT, realizada em São Paulo recentemente. Nela uma transexual vale-se de uma alegoria política, encarnado a mais chocante, terrível e fascinante cena cristã: a crucificação de Cristo.

Esta cena e o que ela resultou como reação no Congresso Nacional é um perfeito retrato de um Brasil em devir, com suas contradições, diferenças, divergências, mas que, a despeito de tudo, segue, não à deriva como pode parecer ao pessimista e aqueles que têm a temerária inclinação pelo “quanto pior melhor”, mas de acordo com um jogo de poder, político e simbólico, que são próprios a astuciosa construção de nossa realidade social e cultural.

Para quem analisa friamente nossa vida social a religião, qualquer que seja ela, se parece hoje, sobretudo, como um grande negócio. De forma caricata pode-se dizer que para os adeptos irremediavelmente é dispêndio e consumo, enquanto que para os gestores da religião é produção e comércio, ou seja, uma fonte de fortuna, poder e prestígio. A lógica de um mercado de bens simbólicos e de salvação – produtos e serviços – mais que visível atualmente através de canais midiáticos, faz-nos pensar que logo alguém se sentirá seguro para reivindicar um monopólio, assim como direitos, sobre a imagem de Cristo. Símbolos, não raramente, tornam-se produtos: técnicos, comerciais, estéticos, etc.

Mas, o que os símbolos devem significar? Ora, sabemos que os símbolos agem nas nossas disposições, nas nossas motivações e, também, nas nossas mais elementares noções de ordem. Isto em razão de que todos os atos culturais são construídos mediante apreensão e utilização de formas simbólicas. Neste sentido, os símbolos permeiam nossos acontecimentos sociais e políticos.

A regulamentação da imagem de Cristo se faz mais na cultura que nos tribunais, isto é certo. A maneira como ele foi consolidado no universo católico – por exemplo – foi cuidadosamente gestado no correr de séculos. Neste processo Cristo se transmutou em muitas diferentes imagens, embora predomine como representação o momento crucial da crucificação.

Pode-se dizer que, em geral, os símbolos sagrados funcionam também para estabelecer uma síntese entre um ethos e a visão de mundo de um povo. Tais símbolos podem ser públicos ou privados e, sendo polissêmicos, podem transitar entre o político e o religioso, apresentando-se, a depender do contexto, como alegórico ou metafórico. Especialmente sendo símbolos sagrados estão sujeitos a incompreensões, a interpretações, a revalidações e a permanentes reavaliações.

Mas, que símbolo Cristo pode representar e representa? Quem é Cristo? Ninguém, de sã consciência, pode negar o valor simbólico de Cristo como símbolo fundante de nossa humanidade: de um lado o homem histórico, doutro o corpo místico, arquétipo. Mas, quem disse que Cristo crucificado não pode ser representado por uma travesti ou um gay? Por um negro, por um índio ou um cigano? Quem, afinal, pode arrogar-se o direito de dizer o que Cristo pode significar?
Os bens simbólicos, inclusive os sagrados, não podem pertencer a nenhum segmento social em detrimento de outros, ainda mais quando estes símbolos são reconhecidamente universais, gestados no solo de uma história humana densa, adubada por sangue, sêmen e lágrimas.

O essencialismo da formulação política da “cristofobia”, no âmbito deste patético Congresso, nos parece de todo desmedido. Não deveria se tratar de censura e justiça retributiva quanto ao uso de um bem simbólico particular, o Cristo, mas de proteção aos símbolos sagrados religiosos em seu sentido mais amplo, considerando-se a diversidade brasileira, cultural e religiosa?

Vale lembrar que valores civis devem se contrapor a valores religiosos na consolidação da vida social e política. O Estado é laico, e logo não deve dar preferências, prerrogativas ou privilégios por esta ou aquela religião, mas garantir a todos os cidadãos o direito de livre escolha, inclusive a de não ser religioso, ou de simplesmente ter ou não ter religiosidade.

A proposição de uma legislação a propósito de uma “cristofobia” é uma asneira cultural sem precedentes, e urge que seus proponentes troquem seus recalques pessoais, e religiosos, pelo bom senso que possa redundar em tolerância religiosa, e na regulação equilibrada das relações de convivência, tão necessárias à nossa vida social.

*Cládio Pereira é antropólogo e pesquisador do Centro de Estudos Afro Orientais - Bahia
*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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