Charlie Hebdo’, Nigéria, Salvador...

Num mundo que se quer transparente, onde tudo ou quase ganha visibilidade, porções significativas de fatos e ocorrências de inegável importância são relegadas à sombra. As tragédias recentes, a exemplo do ataque ao semanário francês Charlie Hebdo, das mortes na Nigéria e da chacina de jovens negros em Salvador nos levam a tensionar o par visibilidade-invisibilidade a partir do instituto jornalístico. Para tanto, recorremos aos conceitos de biopoder e necropolítica na chave explicativa dos pensadores Michel Foucault, Achille Mbembe e Sueli Carneiro.

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“A carne mais barata do mercado é a carne negra.” (Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Capellette)

Num mundo que se quer transparente, onde tudo ou quase ganha visibilidade, porções significativas de fatos e ocorrências de inegável importância são relegadas à sombra. As tragédias recentes, a exemplo do ataque ao semanário francês Charlie Hebdo, das mortes na Nigéria e da chacina de jovens negros em Salvador nos levam a tensionar o par visibilidade-invisibilidade a partir do instituto jornalístico. Para tanto, recorremos aos conceitos de biopoder e necropolítica na chave explicativa dos pensadores Michel Foucault, Achille Mbembe e Sueli Carneiro.

As coisas como são. Será?

Depois de mais de um mês do ocorrido no semanário francês Charlie Hebdo, o episódio não cessa de provocar comentários que se desdobram em diversas escalas analíticas. Charlie Hebdo persiste, insiste, resiste e, mesmo com a tendência contemporânea de volatizar os fatos na velocidade da luz, de tal modo que se perdem rapidamente nas noites do tempo, o “acontecimento” desenha um caleidoscópio suscetível de trazer reflexões de várias ordens, num registro atemporal, em associação a outros fatos. Um dos ângulos de análise que ganharam justificado relevo encontrou abrigo no par visibilidade-invisibilidade.

Inescapável foi o paralelo entre as tragédias que se sucederam na sede do Charlie Hebdo, alvo de cobertura global, geral e irrestrita da imprensa e, dias antes, em Baga, na Nigéria, onde o grupo islâmico fundamentalista Boko Haram, praticamente um estado paralelo, ceifou vidas de milhares de pessoas: foram duas mil mortes, apenas em cinco dias. Para o que aconteceu (e vem acontecendo) em Baga, pouca ou nenhuma cobertura, nenhum gesto de solidariedade, nenhum je suis. Estendendo o paralelo às terras brasileiras, temos que no último dia 6 a polícia baiana assassinou barbaramente 12 jovens negros, numa operação acachapante, mas (pasmem!) aprovadíssima pelo governador do estado, para quem a investida foi metaforicamente comparada à ação de um artilheiro em campo, em frente ao gol, quando a ordem é não errar. Salvo matérias, denúncias e comentários disparados pela imprensa alternativa e emergente, pelos movimentos negros e de direitos humanos, o mainstream da comunicação brasileira fingiu que não era com ele, desprezando solenemente mais uma tragédia envolvendo jovens negros.

“Nações são narrações”

Mais inescapável ainda foi a menção, ainda que minoritária na seara da imprensa, ao texto maravilhosamente lapidar, publicado em 1976, de Alexandre Cockburn, jornalista norte-americano pouco ortodoxo, segundo o qual “os editores devem se lembrar de que há extensas partes do mundo nas quais as pessoas não existem a não ser em grupos de mais de 50 mil.” Cockburn calculou, assim, quantos negros norte-americanos precisariam morrer para se equipararem à morte de um branco norte-americano comum. “As pessoas somente começam a se interessar se falarmos em 50 mil e 100 mil mortos. Especialistas avaliam que somente uns 50 mil indianos seriam capazes de se igualar, em termos de notícia, ao total de 10 americanos”.

Seguindo a métrica de Cockburn, podemos dizer que nem as duas mil mortes de nigerianos, de forma brutal e em lapso de tempo curtíssimo, tampouco a chacina envolvendo doze jovens negros não foram capazes de se equiparar, midiaticamente, às doze mortes dos jornalistas franceses, seja na imprensa mundial ou local. Flagramos, vergonhosamente, os diferentes pesos e medidas que vão situando o papel do jornalismo nas relações de poder e dimensionando hierarquicamente o valor do humano.

Uma montanha de explicações, também advinda da esfera da imprensa, irrompeu a nossa frente: o jornal britânico The Guardian apressou-se em dizer que produzir reportagens no norte da Nigéria é notoriamente difícil, por inúmeros razões: jornalistas têm sido alvo do Boko Haram e, ao contrário do que ocorreu em Paris, as pessoas estão isoladas em Baga e com pouco ou nenhum acesso à internet e a outros meios de comunicação. Os ataques do grupo, insistiu o jornal, agravaram a situação, já que os rebeldes interromperam as conexões, o que impediu a permanência de uma comunidade online capaz de compartilhar notícias, fotos e reportagens em vídeo.

Outra justificativa muito repisada nos circuitos especializados refere-se ao grau de importância dos fatos para a geopolítica no mundo: aferrados a uma crença pia, afirmam alguns que o que sucede nos países mais importantes tem, por conseqüência, mais relevância, pelo impacto que pode provocar em todo o planeta. Os portadores dessa defesa esquecem que o termo geopolítica já traz embutido a dinâmica do poder, que posiciona o lugar simbólico e real dos países e de seus habitantes no âmbito das supremacias. Não esqueçamos a definição do cientista político Benedict Anderson: “nações são narrações”. Ser mais ou menos importante no tabuleiro político mundial não é, portanto, um dado imperturbável.

Visibilidade e invisibilidade

Tentar diminuir ou anular o papel do jornalismo no jogo da visibilidade-invisibilidade por meio de justificativas que repousam em questões operacionais, técnicas ou mesmo em tópicos relativos à precedência da importância dos acontecimentos, é tentar apagar os traços que o constituem. São traços de significação que, a exemplo das lesmas, que deixam filetes prateadas nos muros dos jardins, não conseguem apagar os rastros de sua operação interna. Orientado por um “quadro comum de referência”, o jornalismo institui e organiza as hierarquias sociais por meio de discursos que não apenas tornam o mundo transparente, mas dão a ver, construindo-o, um mundo a ser vivido. No quadriculado em que delimita seus discursos, as formas de ver e narrar já estão sob a regência de balizas socialmente aceitáveis. As tragédias soterradas pela luz da imprensa só permanecem no pântano do invisível porque nesse quadriculado em que a narrativa jornalística ganha lugar os valores das coisas e do humano já foram pré-definidos pela política.

A categoria de biopoder, esboçada pelos filósofos Michel Foucault, Giorgio Agambem e aplicada à arquitetura do racismo brasileiro pela filósofa Sueli Carneiro, nos presta serviço. Contra a estreiteza de alguns argumentos e justificativas, pode-se (e deve-se) recorrer ao expediente da reflexão, que nos aponta saídas para transpormos alguns argumentos carcomidos pela crueza da realidade. Ao biopoder vinculamos a categoria de necropolítica, da lavra do pensador camaronês Achille Mbembe, expoente do pós-colonialismo no mundo.

Num monumental investimento para apreender a gênese das mudanças das tecnologias do poder em escala histórica abrangente, Foucault considera que uma mudança estrutural no exercício do poder soberano começa a se estabelecer a partir do século 18. Até essa época, a autoridade do soberano, o rei, era exercida por meio da punição pública, do espetáculo da morte. A base da lógica dessa governamentalidade era “fazer morrer e deixar viver”. A nova arte de governar – baseada na tríade soberania, disciplina e governo– subverte essa lógica; a partir daí, inaugura-se um novo regime de poder que tomou a vida, e não a morte, como seu fim último. O enunciado altera a ordem de suas palavras: “fazer viver e deixar morrer”. Na atmosfera moderna, os aparatos de poder devem promover a vida, ainda que a morte, como política do Estado, seja reservada a grupos indesejáveis.

Operacionalizando com maestria o conceito de Foucault na lógica perversa do racismo, a filósofa Sueli Carneiro demonstra como o biopoder atua hierarquizando o valor do humano pela ótica da racialidade. Se o teórico francês considera que há uma imposição da morte a certos grupos não estabelecidos num regime de governo que valoriza a vida, é nessa imposição que Carneiro detecta os modos brutais de aniquilamento da população negra (os dados sobre a mortandade de jovens negros são alarmantes de tal sorte que são designados como genocídio). Segundo ela, “Foucault demonstrou que esse direito de vida e de morte ‘só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte’. É esse poder que permite à sociedade livrar-se de seus seres indesejáveis (...). É essa política de extermínio que cada vez mais se instala no Brasil, pelo Estado, com a conivência de grande parte da sociedade”.

Como uma partida de futebol

Pondo em questionamento a potência do biopoder como chave explicativa dos extermínios dos nossos tempos, Achille Mbembe cunha o conceito de necropolítica. Não se trata, exatamente, de uma contraposição ao termo foucaultiano, mas, antes, uma ampliação do seu alcance num momento em que os mecanismos de controle e gestão da vida em sociedades marcadas por “topografias urbanas da crueldade”, habitadas em sua maioria por jovens negros, optam pelas máquinas da morte. Mbembe opera uma inversão na ênfase dada por Foucault ao biopoder. Necropoder enfatiza a primazia da morte como estratégia de exercício do poder moderno em territórios e populações tidos como ameaça.

Os sucessivos acontecimentos na Nigéria e as incontáveis mortes de jovens negros brasileiros adéquam-se, sob óticas diferentes, às categorias de biopoder e necropolítica. O poder de soberania da política (e da polícia) brasileira – o poder de decidir quem vive e quem morre – é exercido pelo direito de fazer morrer: “não há espaço para a produção de corpos dóceis porque trata-se de corpos matáveis”, como disse o pesquisador Jaime Alves. Para Mbembe, “novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas em conformar os corpos em aparatos disciplinares que (…) conformá-los à ordem da máxima economia representada pelo massacre”. E economia aqui pode ser lida em vários sentidos, desde a monetária até a simbólica.

É este o pano de fundo a partir do qual se pode tentar situar a dinâmica do par visibilidade-invisibilidade. Eis que trazemos de volta o papel do jornalismo nesse processo. Juntos, Sueli Carneiro, Michel Foucault e Achille Mbembe nos levam a pensar que o invisível midiático compõe a equação da inexistência dos indesejáveis, e, decididamente, com indesejáveis não estabelecemos nenhum laço de identificação. Já referi em outros momentos que o visível tem, com tanto mais razão, estatuto ontológico nos nossos dias, o que, por consequência, dá a imagem um caráter fundante das identidades individuais e coletivas. A comoção mundial que a tragédia no Charlie Hebdo provocou mundo afora (não sem razão) tem uma relação direta com as identificações, com aquilo que de nós projetamos no Outro via imagens. O problema não está na adesão ao que aconteceu em Paris, mas na ausência de reação similar aos trágicos acontecimentos no país africano e na capital da Bahia. Não somos (je ne suis pas) as vítimas de Baga e Salvador, tampouco choramos por elas. Pela invisibilidade operada pela imprensa, as excluímos duplamente da humanidade planetária (pela morte real e pelo silêncio da linguagem dominante), pois com elas não temos nenhum vínculo sequer.

Por outro lado, pode-se dizer que pouco importa se essas tragédias não foram publicizadas pelo jornalismo tradicional, visto que elas nos chegaram por meio de outras mídias, com significativo raio de alcance. Mas, nem mesmo aqueles que dão por certo o irrevogável ocaso do jornalismo não desconsideram o papel importante da dita grande imprensa em acontecimentos da estatura do extermínio na Nigéria e em Salvador, já que as tecnomediações, hoje advindas de diferentes focos, ainda têm nesse tipo de jornalismo um braço importante.

Resta-nos assim propugnar a assunção de outros padrões de noticiabilidade. É preciso mudar o regime de visibilidade em voga, do qual o jornalismo faz parte, para que outros enunciados do visível, a serviço da pluralidade, povoem os suportes de informação. É preciso mudar as regras do jogo, que não se esgotam em soluções meramente técnicas. Se acatarmos a ideia segundo a qual os discursos se institucionalizam em fundamento e anteparo para as regras, expressando-as, mas também legitimando-as, é só por meio deles, dos discursos, que se redefine uma ortografia do visual.

Mais ainda: se considerarmos que “cada visível guarda uma dobra invisível que é preciso desvendar a cada instante e em cada momento”, podemos levar em conta que onde reina o invisível e o silêncio é onde está a potência do sentido que nos leva a compreender por onde se sacrifica o humano, se estabelece os jogos do biopoder/necropolítica, e que, por meio das máquinas de produção do discurso, entre as quais está a imprensa, tais jogos se apresentam como absolutamente naturais, muitas vezes decididos como se fossem uma partida de futebol em que o artilheiro não pode perder, não poder errar para manter a boa rotina do mundo e preservar a comunidade dos humanos, a qual aqueles jovens negros não pertenciam e só representavam nefasta ameaça.

Referências bibliográficas

Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010

Carneiro, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (doutorado em Filosofia da Educação) – Universidade de São Paulo

Mbembe. Achille. Necropolitics. Public Culture. Duke, v. 15, nº 1, p.11-40, 2003

* Rosane Borges é jornalista, professora da UEL, coordenadora do curso de Especialização da FAM e integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial)
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