Brasil, um país de todos? Implicações jurídicas da falácia da democracia racial

I. Negro: o sujeito ausente da nação

Durante o século XIX, recebendo incidências do campo legislativo, das ciências sociais, de interesses políticos e de representações reforçadas pela interação cotidiana e tensões interétnicas, a presença do escravizado é, simultaneamente: incômoda, para o direito (que se recusa a regulamentar nitidamente sua condição em diplomas legais, como foi o caso da notória omissão do Projeto de Código Civil elaborado pelo jurista Teixeira de Freitas, cuja manifestação de que seria necessário escrever “um código negro de rodapé” tornou-se mais do que notória no mundo do direito); imprescindível, para a economia (nos primeiros ciclos agrícolas e mais tarde no contexto urbano, onde negros escravizados e libertos comporão a maior parte da mão-de-obra); um alerta, para o pensamento político da época (o qual, embora influenciado por ideais liberais "tropicalizados", encara como fundamental e urgente a discussão para o futuro da nação brasileira, preocupação que se revela na constância do tema identificado nas pautas parlamentares do final do sec. XIX).

Entre 1870, portanto, e 1930, dada limite daquilo que se convencionou chamar o “período pós-Abolição”, adentram o Brasil “um bando de idéias novas”, nos termos de Silvio Romero, configurando um momento histórico cuja especificidade diz respeito à forma de acomodação do negro na estrutura social da nascente República. A relevância especial desse período encontra-se na emergência de uma reflexão própria sobre a presença negra como elemento constitutivo da nação, elemento ademais que despertará o interesse tanto da ciência quanto da intelectualidade, na medida em que politicamente se exige frente a ele uma determinada postura do Estado. Logo, é de 1870 a 1930 que se conformará o negro como objeto de administração, sujeito assujeitado e corpo a ser disciplinado por meio de instrumentos biopolíticos, seguindo as teoriziações desenvolvidos por Michel Foucault. Tal se revela pelo conjunto de políticas públicas desencadeado a partir de então: desde incentivos à imigração de populações com determinadas características físicas e culturais (preferencialmente contingentes advindos do Norte da Europa) até o recalque genérico da presença negra. No primeiro caso, não se observa o desenvolvimento de uma legislação específica, mas a atuação política da inteligentsia da época, em geral ocupantes de cargos públicos de influência, guiada por um discurso cientificista e racializante, que pretende justamente hierarquizar grupos étnicos por meio de elos de causalidade ligando fenótipo e criminalidade (na esteira das teorizações lombrosianas), cor e “potencial civilizatório”. Sob prisma epistemológico, ocorre o que o Alfredo Wagner chamará uma biologização dos conceitos sociais, pois as ciências naturais – aliás bem ao gosto do positivismo “cristão” cultivado no Brasil – torna-se a referência para o enquadramento metodológico das ciências humanas. Aí se inclui toda a idéia de corpo social e, principalmente, a tentação do evolucionismo. Aqui, esse pensamento partirá de alguns pressupostos, dentre eles a necessidade de encontrar formas e características que nos definam como uma nação (a atuação dos vários Institutos Históricos e Geográficos, por exemplo, vai bem neste sentido). Além das políticas públicas de branqueamento, o principal espaço discursivo no qual esse racismo científico se insere é nas instituições acadêmicas. Faziam-se, inclusive, projeções acerca do tempo que demoraria para o Brasil se tornar finalmente – como se o caminhar da história se pautasse por essa triste teleologia – um país branco. Neste quadro se inserem desde os propagadores da ideologia sanitarista do final do século XIX a representantes tardios como Oliveira Vianna, defensor de tais ideais e peça central na elaboração do próprio Regime Vargas, passando por pensadores de grande repercussão como Nina Rodrigues.

Do outro lado, deparamo-nos com a insistente repressão jurídica e policial das manifestações culturais de origem africana e com o aparecimento de toda uma legislação voltada à normalização do contingente populacional negro. Essa linha pode ser percorrida partindo de disposições pouco conhecidas como a da Lei dos Sexagenários que impedia os cativos de abandonarem sua circunscrição de origem por cinco anos, imputando-lhes o crime de “vadiagem”, caso encontrados fora de seu domicílio, e enviando-lhes para trabalhos públicos ou colônias agrícolas. Abundam exemplos igualmente nas Posturas Municipais – legislações locais voltadas à antepassadas dos atuais Planos Diretores (os quais, ademais, permanecem excludentes e continuam a empurrar os “indesejáveis” para as faixas periféricas) que buscavam ordenar os espaços urbanos segundo sua destinação à população branca e negra, por vezes chegando ao absurdo de exigir uma espécie de “passaporte” para que os negros adentrassem determinadas parcelas da cidade. Trata-se, portanto, de um movimento de configuração de espaços arianizados, o que a própria Lei de Terras (1850) deixara evidente, ao destinar expressamente certas áreas rurais para colonização por empresas de imigração. Mesmo o Código Penal de 1890, com disposições repressivas dos cultos de matriz africana, teve como objetivo apagar qualquer influência negra no panorama cultural da nação em projeto. Assim, o processo de ressignificação do ser negro nesse período atravessa o político, o científico e o jurídico, marcando o panorama étnico nacional e as representações sociais durante quase todo o século XX.

II. Dois pesos, duas medidas: injustiças da igualdade

Confrontar o falso imaginário democrático nacional, no que diz respeito às relações raciais, não prescinde da realização de uma análise sócio-jurídica do problema da alteridade nas sociedades pós-coloniais, com ênfase na experiência da desigualdade étnico-racial da América Latina. Tradicionalmente, a teoria ocidental dos direitos civis e políticos comporta uma forte dimensão de homogeneidade: suas implicações decorrem justamente do pressuposto da igualdade formal. Esse legado europeu das Revoluções Burguesas, no entanto, parece algo deslocado nas mãos de seus herdeiros tropicais, haja vista a profunda tensão inscrita na sua identidade, a qual jamais pode ser invocada no singular. Vale dizer: a pluralidade das identidades nesses contextos não permite a elaboração de qualquer fala política uníssonas, de reivindicações no singular. A constatação da pluralidade cultural e, mais precisamente, da pluralidade das estruturas de dominação, portanto, coloca para o pensamento jurídico a questão da diferença. Subjetividades históricas diversas comportam conceitos diferentes de “justiça” e clamam por direitos próprios – tendo, enquanto “comunidades de vítimas” (Enrique Dussel), legitimidade contra-hegemônica para tanto –, conforme a situação de opressão específica a que estão sujeitas. Assim, a partir do mote de Boaventura de Sousa Santos de que é preciso “defender a igualdade quando a diferença oprime, e defender a diferença quanto a igualdade descaracteriza”, é possível fazer a crítica do axioma da igualdade jurídica, sem que isso signifique seu abandono. Para tanto, faz-se necessário um critério hermenêutico que possibilite distinguir quando a aplicação do princípio de igualdade desbanca, concretamente, em injustiça social.

Tais parâmetros, porém, não podem ser encontrados numa investigação intra-sistemática meramente legislativa, isto é, a qual se valha meramente de elementos jurídicos para sua escolha, pois o ordenamento é regido pelos primados da abstração e generalidade. Se, de acordo com Jacques Derrida, o imponderável da justiça se localiza precisamente nessa sua passagem para o singular, a equação da subsunção deve incluir uma leitura sociológica e antropológica da disparidade. Não se trata aqui de ponderação, muito em voga entre os modismos do pensamento jurídico, mas do emprego de categorias capazes de explicitar a falácia do discurso da democracia racial e, por conseguinte, a necessidade de prestações jurisdicionais e administrativas diferenciadas. Essa é uma reflexão essencial para caracterizar, por exemplo, o que seja discriminação racial (no primeiro caso) – já que não faz sentido empregar esse tipo legal para ofensas a indivíduos ou grupos não socialmente estigmatizados – ou a relevância de políticas afirmativas para determinadas parcelas da população (no segundo). À histórica invisibilidade do negro como sujeito de direitos no Brasil, conjuga-se a invisibilidade da própria temática no campo da teoria – dada a recusa da academia em lidar com o tema de maneria séria – o que impede a efetivação dos preceitos constitucionais que garantem a diversidade (cultural, religiosa, étnica, etc.). Sob essa ótica, os mesmos permanecem uma pendência, na ausência de indicadores de eficácia e formas de monitoramento social.

O desgaste da igualdade como fundamento da modernidade jurídica, nesse sentido, é produto de duas contribuições: da antropologia jurídica, que permite trabalhar o estatuto sempre aberto da diferença e, por outro, da sociologia do direito, cujas pesquisas no campo criminológico há muito demonstraram a inexistência fática de igualdade, visto que a construção mesma do juízo sofre o influxo de meta-regras, infiltrações do imaginário social vigente. As recentes pesquisas desenvolvidas em torno da temática, têm demonstrado, entre outras coisas, pelo destrinchamento do discurso contido em processos judiciais que atacam o sistema de políticas afirmativas, a utiilização ideológica dos institutos do direito, a partir de uma argumentação que oscila entre o propriamente jurídico e o explicitamente político.
Igualdade formal, liberdade burguesa e imaginário da democracia racial são os três pilares do recalque nacional a serem derrubados na construção de sociedade equânime e verdadeiramente pluralista.

*Os autores são militantes acadêmicos no campo do direito
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