Uma lágrima pelo povo e pelo Estado de Angola

Neste artigo, o ativista Luis Araújo discute a relação direta entre conservação da memória e do patrimônio material e imaterial da nação angolana e seus desmembramentos no governo do atual presidente Eduardo dos Santos, assim como relembra ao leitor o papel fundamental que o Mercado Kinaxixe teve na organização da identidade coletiva angolana após a guerra civil. A destruição de mercados e de sítios de memória coletiva relaciona-se às recentes demolições de residências populares que acontece em Angola em nome do progresso do país, em detrimento da saúde dessas populações e de seu bem-estar.

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E C K

Neste tempo do Governo de José Eduardo dos Santos, as autoridades, ["competentes"], autorizaram a demolição do Mercado do Kinaxixe. Uma obra arquitectónica erigida no centro de Luanda e que foi um ícone da urbanização de Angola. O Governo desse senhor destruiu assim o património africano herdado da colonização europeia que nos co-engendrou como nação. O mercado do Kinaxixe era um marco do processo cultural que gerou a nossa identidade, portanto, também a de quem, ao mais alto nível, dirige o Governo do Estado que a destruiu.

O Mercado do kinaxixe foi transformado em escombros pela nova guerra civil em curso no território angolano. A guerra de assalto ao mercado movida contra todas as angolanas e angolanos por agentes dum poder exercido em promiscuidade com os seus negócios particulares para a construção de riqueza por via do uso abusivo de poderes e de bens públicos. É uma “guerra civil pacifica”, desinformados, pensarão muitos, mas que em vários momentos já foi manchada pelo sangue de tantas vitimas do assalto à terra, especialmente da urbana, em Luanda. Uma guerra que está suceder à que houve entre “movimentos de libertação nacional”, inaugurada para a captura do Estado, conseguida em 1975 pelo MPLA.

Poucos se aperceberam da Guerra da Terra porque, até agora, só um lado tem usado a violência, os esbulhadores que para isso se servem da autoridade e das armas do Estado contra o povo. As vítimas ainda não replicaram com o recurso á violência. Têm sido defendidos apenas pela denuncia pública desses ataques junto de entidades nacionais e internacionais. A organização que dirijo, a SOS Habitat tem sido uma das protagonistas dessa defesa pacifista que, entre outros efeitos, tem conseguido a contenção do gesto violento espontâneo de tantas vítimas desse assalto à terra. No entanto a impunidade tem sido sistematicamente garantida aos violadores.

Lembro que a guerra civil angolana foi gerada em nome da legitimidade duma revolução conduzida pelo MPLA que postulava o fim do capitalismo em Angola. Revolução que como o Mercado do Kinaxixe, e antes dele, também foi despejada na lixeira da nossa história pelos ex “revolucionários” que, entretanto, continuam a conduzir o partido-Estado que impõe a hegemonia do MPLA sobre a Administração do Estado. Desta herança da sua ditadura monopartidária é que, absolutamente, ainda não se descartaram e no entanto já não é constitucional desde 1991.

Portanto o Governo de José Eduardo dos Santos, objectivamente, destruiu e deitou fora a nossa riqueza material e cultural. Parte da memória colectiva da Cidade de Luanda e do País, em nome da realização de riqueza por particulares, foi transformada em lixo histórico. Um moderno shoping center de gente detentora e ou cliente do poder vai ser erguido no espaço do Mercado do Kinaxixe.

Antes desse cometimento, a mando do mesmo Governo, foi demolido o Palácio de D. Ana Joaquina e depois, no seu lugar, ergueram uma cópia desse edifício. Reagindo a esse delito, indignado, Lúcio Lara, deputado do MPLA, levou um pedaço secular dos escombros desse edifício à Assembleia Nacional onde, em nome de todos nós, chorou como uma das milhões de vítimas desse cometimento. Foi um gesto de protesto ousado com que, [minha percepção], contestou o Chefe do seu partido, [o MPLA], e do Governo e Estado de Angola, o senhor José Eduardo dos Santos. Afinal esse individuo é o responsável máximo pelos actos do Governo e do Estado em Angola. Portanto, esse cometimento e a impunidade com que foi agraciado não lhe são estranhos. Mas o gesto do deputado, além de serôdio, foi inócuo como demonstra a continuidade com total impunidade desse tipo de cometimento governamental.

Depois, em vários musseques, as casas do povo pobre foram demolidas e os seus habitantes abandonados ao relento nos escombros que delas restaram ou, sob ameaça das armas do Estado, despejados em depósitos de pobreza como os que o Governo do MPLA implantou na Calemba, Zango e Panguila. Os novos e mais emblemáticos bairros coloniais para indígenas construídos em Angola, paradoxalmente, no pós independência.

No entanto, o cancioneiro popular a que o MPLA tanto recorreu na mobilização do povo contra o colonialismo português, cantava: “madaram-nos para os currais como se fossemos bois”. Agora o Governo do MPLA, conduzido por José Eduardo dos Santos faz exactamente o mesmo que o colonialismo português fez. Esses novos depósitos de pobreza são a concretização pelo endocolonialismo do paradigma de urbanização dos subúrbios da nossa capital adoptado por esse Governo do MPLA para afastar para além da Cidade, do Estado, [dos seus serviços e rendimentos], a maioria da população pobre e excluída que vive na capital do pais.

Concretizam a fase planificada do apartheid social com que José Eduardo dos Santos está a desenvolver o seu regime endocolonialista.

Em qualquer momento serão outras praças do povo e muitas das nossas casas já marcadas que vão ser demolidas para com a nossa expulsão serem servidos outros. Outros que a guerra que obstaculizou tudo que podia ser feito em prol do bem-estar geral, no entanto, não impediu que acumulassem riquezas faraónicas.

Os nossos espaços públicos e particulares estão a ser esbulhados e tornados servidão e ou propriedade de outros para a concretização – à sua maneira – de projectos particulares – alegadamente com “fins também públicos” – mas em cuja concepção não participamos nem mandatamos ninguém para em nosso nome os autorizar. Claro que qualquer empresa comercial serve sempre o publico, vende ao público. Mas será que esse “serviço público” de particulares, [como vem sendo implantado], tem que ser imposto pela destruição de património colectivo e a expulsão de todos os outros?

Os lugares da Cidade estão a ser objecto de apropriação particular depois de terem sido, [de modo preparatório do esbulho], sujeitos aos efeitos predadores duma – desmazelada e ou mesmo demissionista – “gestão governamental” visando a realização de fins particulares.

Aspirações e direitos dos membros de toda uma sociedade estão a ser anulados para se realizar o património e o enchimento dos cofres dos “donos da terra” com capital, assim, conseguido de modo ilícito. Esse procedimento, contra tudo e todos nós, coloca José Eduardo dos Santos, assim como os seus agentes e clientes na condição de co-proprietários, [sem papel passado por quem de direito], do nosso país transformado numa imensa “Fazenda Angola”, que está sendo o nosso espaço colectivo de sofrimento e morte. Ainda assim, pasme-se, essa “fazenda” continua a ser paradoxalmente discursada pelos seus predadores como sendo um país e um Estado de direito democrático.

A Comunidade Internacional – para quem os direitos humanos o Estado de direito e a democracia são essenciais ao desenvolvimento humano – cala-se perante o facto endocolonial. Tornou-se cúmplice, para não colocar em risco os seus negócios com a “Fazenda Angola”. “Teme a crispação da atitude do Governo de José Eduardo dos Santos caso conteste a sua delinquência predadora tão sobejamente evidenciada.

Não têm vergonha nenhuma desse cometimento contra nós, como demonstram os elogios que vêm tecendo à governação do MPLA dirigida por José Eduardo dos Santos, como recentemente fez o Primeiro Ministro português, José Sócrates, por ocasião da Feira Internacional de Luanda, FILDA. E, para esses representantes de países que são seculares predadores internacionais da humanidade, tudo fica só como uma questão de economia, de oportunidade e modernização do mercado e, alegadamente, até duma “bem intencionada” gestão urbana, como são “bem” entendidas e convenientemente acolhidas as justificações publicamente apresentadas.

Obviamente que, para os sequestradores do Estado angolano, a manutenção de marcos da historia do desenvolvimento da Cidade, da sua configuração, do seu mobiliário e cultura ancestrais, enquanto alicerces da nação angolana, não gera defesas nem receitas para a caixa dos chefes-de-posto da “democrática economia de mercado” angolana em construção que, nos dias que correm, está a ser refeita nos moldes da economia dum colonialismo.

Como há muito a história da humanidade registou, os valores identitários duma sociedade dominada são sempre perigosos para qualquer ditadura. São valores que mantêm viva a memória colectiva das comunidades sustentando a sua coesão e capacidade de resistência. Portanto, no caso angolano estão a ser apagados para em, consequência, nos apagarem enquanto cidadãos, transformando-nos num zero no computo geral duma economia politica que nos reserva no futuro o lugar consolidado de serventes dóceis duma ditadura endocolonial.

O projecto endocolonial está a reproduzir em cada um de nós o monangabê colonial que, nos dias que correm nenhum Jacinto – poeta irreverente – convoca nem ao lamento dessa situação nem à rebeldia que está a gerar.

Por este andar, no futuro, a nossa memória acabará por reter só a obra do chefe-de-posto José Eduardo dos Santos e do MPLA, o “seu” partido. O MPLA é o primeiro e o principal refém da hegemonia pessoal que exerce sobre o Estado e o país. Corremos o risco de chegarmos a um ponto em que os registos demonstrarão que antes dele não houve nada e que tudo que então viermos a ser enquanto gente e país deveremos à sua saga predadora de bens materiais e culturais da comunidade angolana. Teremos então a percepção de que Angola é uma invenção de José Eduardo dos Santos a quem a história, [se registada com rigor], no mínimo, deverá apontar como o demolidor do património e da memória colectiva de Angola.

Se deixarmos essa estratégia ser levada até às suas últimas consequências por José Eduardo dos Santos e pelo seu refém principal, o MPLA – depois da nossa memória colectiva nos ter sido totalmente arrancada – da nossa cidadania restará só a sua “casca”. Seremos então, enquanto cidadãos, um mero invólucro.

Teremos sido transformados pela nossa redução politica à aparência de sermos cidadãos como, de facto, já é o que a maioria de nós é no contexto actual. A nossa substancia cidadã que nos dias que correm já está muito mal parada, nesse futuro sombrio que o endocolonialismo de José Eduardo dos Santos perspectiva, será então o que poderá produzir o nosso abandono em depósitos de pobreza e entulho material e cultural onde, [no apartheid social eduardino], a nossa cidadania definhará vigiada pelos chimbas e outros cipaios que usam contra nós as armas do “Estado” da “Fazenda Angola”, feita terra esbulhada a “inútil gente gentia”, também, feita refém do bando desse ditador.

Respondendo ao apelo endocolonialista, para a realização desse projecto, competentes predadores estrangeiros já instalaram parcerias com predadores angolanos pela constituição de sociedades pretensamente “nacionalistas”, em função da relação em co-propriedades onde os agentes económicos angolanos detêm mais do que 50% do respectivo capital. Parafraseando o angolano cognominado como “poeta maior”, estamos objectivamente face ao debicar no inerte corpo africano que denunciou, só que, desta feita, esse debicar é concretizado com os olhos secos sob a condução de José Eduardo dos Santos, herdeiro do ceptro do poder do poeta e médico que foi o primeiro Presidente de Angola, o Dr. Agostinho Neto.

Se todas e todos nos resignarmos, se nos anestesiarmos com as migalhas que sobram da mesa do palácio do chefe-de-posto endocolonial ou com o medo de nos darmos pela liberdade, o perverso projecto económico, político e cultural endocolonial que está a estruturar a existência de Angola, será concluído como uma bem sucedida violação, extrema e rebuscada, da nossa condição natural de seres, humanos, livres e dotados de direitos, “respeitados” na “democracia” eduardina.

E assim Angola continuará, endocolonialmente, a ser uma terra boa para todos menos para os angolanos, como denunciou o cantor angolano Dog Murras. Como a sua cumplicidade demonstra, esta situação não é preocupação dos democratas humanistas da Comunidade Internacional, particularmente da que está representada em Angola. Especial e particularmente não é preocupação dos Estados europeus e da sua Comissão, cujos agentes e investidores na economia endocolonial eduardina, há muito que estão cegos e só funcionam em função do seu apetite por petróleo, da expansão dos seus mercados e da exploração de outros recursos naturais da nossa terra. Só vêm Angola como um el dorado onde podem facilmente realizar riqueza em vês de, primeiro e acima de tudo, perceberem o nosso país como um espaço de seres humanos iguais a eles.

Parece-me que assim será até que outro Fevereiro inscreva o nome de novos heróis na história da libertação de Angola. Infelizmente disto já me restam muito poucas duvidas, porque de muito pouco têm servido os nossos honestos e destemidos protestos pacíficos e porque menos ainda nos servirá, [como fez o Deputado do MPLA Lúcio Lara], depois de cada novo golpe, de modo angélico, continuarmos a levar à Assembleia Nacional “pedaços de nós demolidos e molha-los com as nossas lágrimas” nessa catedral da produção de aparências que realizam a fantasia da “democracia angolana para inglês ver contente”. O próprio senhor José Eduardo, honestamente, já nos disse e ao Mundo que a democracia e os direitos humanos não enchem a barriga a ninguém. Portanto está a ser coerente consigo mesmo.

Chegados a este ponto e momento da afronta endocolonial que nos submete, ao senhor dos Santos, o chefe-de-posto da “Fazenda Angola”, assim como a todos os servidores e clientes do seu projecto endocolonialista, [por enquanto], só resta lembrar que quem semeia ventos colhe tempestades. Mas também, com a mais profunda convicção, aqui exprimo o meu desejo dessa colheita ter lugar num Setembro de eleitores em vês de num Fevereiro de heróis que, no entanto, objectivamente, é o que está a semear a condução predadora de Angola pelo senhor José Eduardo dos Santos. Libertemo-nos com urgência.

* Luiz Araújo é ativista de direitos humanos e coordenador do SOS Habitat em Angola e parceiro da Christian Aid.

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