Porque falar do Aquino de Bragança (AB)?

http://www.pambazuka.org/images/pt/articles/1/47521man.jpgNeste primeiro número do Pambazuka News em língua portuguesa, Jacques Depelchin fala-nos de um intelectual orgânico como Aquino de Bragança,num ensaio biográfico e apaixonante.

Num contexto em que a globalização deixa cada vez menos espaço para pensar fora dos paradigmas ditados pelo sistema, é crucial lembrar uma personalidade que conseguiu fazer da sua vida um exemplo de fidelidade à politica emancipativa, sem cair, como gostava repetir, no Marxismo de cartilhas. Não era o único, houve outros, como por exemplo, Mário Pinto de Andrade, que se lançaram no projecto de libertação da África colonizada por Portugal, decididos à não cair na armadilha (quer dizer submissão) às regras dos partidos comunistas das metrópoles dos colonizadores.

A grande paixão politica e intelectual do AB era de sempre procurar respostas singulares aos desafios não só do momento, mas também do futuro. Queria fazer do CEA não só uma instituição dedicada à resolver os problemas imediatos de Moçambique, como, por exemplo, a falta de quadros, mas também procurar aliados em zonas, países que pudessem apoiar num processo de emancipação que ele considerava crucial para África Austral, mas também do mundo inteiro. Partilhava a ideia (que se podia ler num cartaz daquela época) que o Apartheid era crime contra a humanidade. Para ele o projecto emancipativo necessitava romper com hábitos de pensar que a humanidade era só aquela que vinha directamente do iluminismo ou de qualquer outra ideologia que tratava os Africanos e dentro deles, sobretudo os mais pobres, camponeses, operários, crianças, mulheres. BREF, como costumava dizer, a obrigação/fidelidade era de ser solidário com os discriminados/danados da Terra. O projecto emancipativo, pertencia ao mundo inteiro e tinha que ser entendido como tendo a sua origem nos primórdios da humanidade; não podia ser mantido refém de qualquer modo de teorização ou de conivência politica e/ou ideologica. Neste sentido, ele pertencia aos que pensavam que o comunismo não pertencia ao modelo que surgiu nos últimos séculos, mas sim aos que sempre viveram, sem equívocos, com base nos princípios de solidariedade. Numa altura em que a cooperação Sul-Sul não se tinha tornada moda, ele convidou um estudante Brasileiro (1981-84) para vir pesquisar (para doutoramento) sobre a historia de Moçambique. Um dos frutos desta visão saiu em 2007 com a publicação do livro de Valdemir Zamparoni: De Escravo a Cozinheiro: Colonialismo e racismo em Moçambique (EDUFBA/CEAO, Salvador, Brasil). Seremos capazes de continuar nos seus traços fora das cartilhas de historia? Descartilhando a historia da África para que seja fiel a historia da humanidade?

Sou anti-anti-comunista

Assim se definia politicamente Aquino de Bragança. Ele nasceu em Goa onde, aos 15 anos de idade, tornou-se membro dum dos múltiplos partidos comunistas. Em 1948 seguiu para Moçambique, enquanto o seu amigo Pio Pinto parou em Mombasa. Em 1949 vai para França, onde encontrara Marcellino dos Santos, futuro grande amigo.

Este ensaio não pretende ser uma biografia, nem mesmo um esboço. Pretende-se, sim, encorajar uma pesquisa mais seria, mais serena não só da vida de AB, mas também de tantos outros Moçambicanos, Africanos cujas contribuições tendam, a ser desconsideradas por causa dum meio ambiente, hoje, ideologicamente dominante que, tacitamente, vai silenciando todo aquilo que se refere a períodos e processos de lutas contra a colonização. Não seria/será a primeira vez que uma pequena, mas crucial, parte da historia da emancipação da Humanidade acaba por ser apagada só porque os que ousaram o impossível, pior, o proibido, conseguiram vencer e, consequentemente, foram castigados da maneira mais severa possível.

Os precedentes mais famosos (de Africanos e Afro-descendentes que também romperam com a proibição) são bem conhecidos: Saint-Domingue/Haiti para o século 19, e Cuba para o século 20. O paradigma que saiu da era das descobertas (e que continua hoje) ditou que só podem descobrir algo os “Descobridores” e os seus herdeiros/aliados. Por definição, um “descoberto” genérico (os pretos, os intocáveis, as mulheres, os discriminados, os que recusam a submissão à globalização, etc.) não podem descobrir algo, e, sobretudo algo que fosse mais valioso para Humanidade como a Liberdade, Igualdade, Fraternidade (França, 1789; Haiti 1791-1804).

Mas quando se trata de escravizados ou de colonizados que descobrem a sua liberdade/emancipação, os auto-proclamados donos da Terra fizeram todo para que só reine a liberdade dum sistema sistémico nascido (pelo menos nas suas raízes das Américas e das Caraíbas) dum duplo genocídio. A liberdade do Mercado de hoje (que, segundo os seus papas, magicamente resolve todos os problemas sociais, económicos, políticos, até ambientais) nasceu, entre outras raízes, do marketing/mercadorização de Africanos raptados no Continente, para resolver a falta de mão de obra barata, por sua vez, causada pelo genocídio das populações nativas.

Historicamente falando, para não dizer moral e filosoficamente, vale a pena perguntar quem tem mais credibilidade em falar de liberdade: os que puseram fim a escravatura (na França, desde a Lei Taubira (2001), considerada como crime contra a humanidade), como em Haiti (1804) ou os que, depois, fizeram tudo e organizaram-se para que –via punição colectiva—aquela parte da Humanidade pagasse um preço tão caro quão exemplar pela sua ousadia, com o objectivo de restaurar a liberdade e o domínio dos escravizadores. Mais tarde, esta historia será branqueada, por via da ocupação colonial. A ideia do branqueamento (ou silenciamento) da historia é simples: para os que aproveitaram desses processos de exploração, tornou-se um habito de apagar a origem histórica e criminosa dessa liberdade dum mercado que, lentamente, mas seguramente, alem de lucros incomensuráveis, esta desregulando até o sentido do significado da Humanidade.

Faz-nos muito falta biografias de pessoas que, como AB, construíam (e alguns não deixaram de continuar) uma outra maneira de viver não só em Moçambique, mas no mundo inteiro, pessoas que não se contentavam de “fazer o seu trabalho” e que tentavam, sem parar, de manter a sua fidelidade ao Evento que trouxe a emancipação. Este ensaio gostaria encorajar pelo menos um processo de recolha de dados primários e outros para que as futuras gerações tenham a possibilidade de entender os porquês desta fidelidade que nada tinha a ver com fé ou ideologia. Pois, o entusiasmo para a liberdade do Mercado poderia levar pessoas a tratar aquela história como se fosse danada e que, ate, valia melhor esquecida e atirada para a famosa caixa do lixo da história, e que podemos talvez chamar, nesta circunstancia: Vamos Esquecer. Pois, entre os donos da Terra, tem uma expressão inglesa para descrever o vencido: You are history (Você é historia). Quer dizer não conta para nada.

Pensador/cientista/filosofo/militante

Formado em física/matemática, curiosidade e criatividade dominavam quando confrontado com novos problemas. Por isso admirava muito os artistas, pintores, escultores, poetas, cineastas que praticavam a sua arte sem cair naquilo que AB costumava chamar de vulgata /catecismo que dominava o pensar politico. Só recentemente me deu conta da subtileza do seu “sou anti-anti-comunista”. Claramente queria desmarcar-se, por exemplo, de Jean-Paul Sartre (que conheceu pessoalmente) que chamou uma vez anti-comunistas de cães. Mas, ao mesmo tempo, Sartre tergiversava em relação à União Soviética. Era AB marxista? Não, no sentido ortodoxo da palavra, salientando repetidamente o seu desgosto para o marxismo de cartilhas. Como cientista, mas também como alguém que sempre procurava ir alem dos modelos e hábitos de pensar, não podia aceitar a ideia de que a verdade parava na sabedoria duns teóricos só.

Historiador/pesquisador: “Aqui não há questões ou temas tabus”

Tipicamente, AB, militante e fazedor da história, não gostava falar dele próprio ou do seu papel no processo de libertação duma grande parte da África. Por isso, este ensaio ficara muito aquém daquilo que mereceria o tamanho da sua contribuição nesta área.

Gostava muito da historia como disciplina, mas também não no sentido praticado pelos donos da disciplina. Preferia sempre pensar indisciplinadamente como por exemplo quando, pensando alto, perguntava retoricamente, “E se as Zonas Libertadas tivessem sido os nossos sovietes?” Uso irreverente? Talvez, mas também ilustração dum pensar em constante movimentação, disciplinando-se, organizando-se mentalmente para não ficar atrás do Evento histórico. Como Director do CEA, insistiu para criação do Núcleo de Historia (conhecido como Oficina de historia). “Oficina” como tradução de “workshop” ou “atelier” para acrescentar o facto de que a historia esta sempre mudando, conforme as perguntas colocadas. Sentia e partilhava a urgência de conhecer e fazer conhecer a historia das Zonas Libertadas (e sobretudo de Cabo Delgado) a partir da boca dos/das que de 1962/64 até 1974/5 foram o ponto da lança duma vitória que nem a Ofensiva No Gordo (1970-72) conseguiu parar. Derrotada, a ofensiva, acabou com a abertura da frente de Tete. Uma das suas preocupações era “desideologizar” a historia e evitar que houvesse temas ou perguntas tabus.

Em Julho de 1984 acompanhou a equipa da Oficina de Historia para o distrito de Mueda para ver/saber do(a)s camponese(a)s como tinham vivido aquele processo, pois as Zonas Libertadas eram muito mais do que uma vitória militar. Ilustrou, essa vitoria, que, ao contrario do que pensavam os lideres do Apartheid e do Portugal, Moçambicanos/
Africanos eram capazes de vencer na teorização, organização e execução dum processo de libertação sem pedir licença. Como já mencionei mais acima, esta ousadia será paga com uma guerra quentíssima e brutal, friamente atiçada pelos protagonistas hegemónicos da Guerra Fria. Quem sabe, talvez no próximo século será declarada, essa guerra, um crime contra a Humanidade, caso ela sobreviver.

AB tinha conhecido de perto todos os dirigentes das lutas de libertação de Angola, Guiné Bissau/Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique, e não só. A lista seria longa demais. Sabia que estava vivendo uma transformação histórica e que não havia tempo para descansar, pois o inimigo sistemático e sistémico, já a partir de 1976, estava organizando o castigo exemplar, pois alem da derrota em África, tinha que se vingar da derrota também exemplar, no Vietname, em 1975. AB estava muito consciente da relação de forças desfavorável apesar da impressão popular que, a vitoria de 1975 dava a impressão que tudo era possível. Mas, como lamentava, as vezes, sem saudosismo, o espírito de Bandung (1954/5) apesar de ter conduzido à organização dos Países Não Alinhados, já não tinha a energia da sua infância.

Jornalista

A fama internacional do AB véu em grande parte dos artigos que escreviam regularmente para Afrique Asie. Falando francês e inglês, podia seguir os eventos em qualquer parte da África. Depois de 1975, apesar das suas funções oficiais e não oficiais, dedicava uma boa parte do seu tempo dando palestras na escola do jornalismo, partilhando com jornalistas mais jovens a sua paixão para uma profissão que, pelo menos para ele, tornou-se uma escola onde, se o trabalho fosse bem feito, não se parava de aprender, e de partilhar aquilo que se aprendia. O seu grande amigo Prof. Augusto de Carvalho, fundador do Expresso e hoje continuando no caminho do seu companheiro de luta terá, se posso me permitir, obrigação de nos contar (com tanto(a)s outro(a)s jornalistas o que fazia de AB um jornalista hors pair. Pois, dizia AB “amizades valem só quando ditatoriais”.

Diplomata: “E preciso saber engolir sapos”

Como todos AB tinha inimigos, mas tinha uma maneira inexplicável de ver os inimigos (pelo menos não mortais) com serenidade, mas sobretudo com a curiosidade e a convicção de que ia aprender alguma coisa valiosa conversando com a pessoa. O principio que o guiava era uma outra mantra: “é preciso saber engolir sapos”. Devia ter perguntado se, por acaso, terá havido ocasião ou ocasiões, em que ele não conseguiu engolir sapos. Duvido pois tinha uma capacidade extraordinária de relacionamento com qualquer pessoa, conhecida ou desconhecida, antipática, diabólica, etc.

Em Agosto de 1982 ficou ferido com estilhaços da bomba que matou a Directora Adjunta do CEA, Ruth First, membro do ANC. Esta barbaridade impactou-lhe de tal maneira que levou-lhe mais ou menos 2 anos para recuperar plenamente. O choque fez-lhe recordar amargamente a perca (por doença), em 1979, de Mariana, esposa e mãe dos seus filhos, Radek e Maya. Sem os quais teria sido muito difícil concentrar-se com mais força sobre o dossier chave da África do Sul e do Apartheid. Coroou a sua recuperação namorando e casando Sílvia.

Ao examinar a personalidade de AB, descobre-se que, afinal, o seu talento era imenso e dificilmente medível, pelo menos a partir dos critérios usuais. Para os seus antagonistas ideológicos era considerado não fiável, um maverick. Deixava as mas línguas disseminar o seu veneno porque só tinha um interesse: servir fiel e incansavelmente o Presidente Samora Machel numa missão que podia ser descrita assim : a partir duma situação de grande fraqueza, alvejar o impossível. O que também, segundo Alain Badiou define a coragem.

Em conclusão e para homenagear uma vida dessas, pergunto (sobretudo porque nunca aconteceu) se os méritos do Prof. Aquino de Bragança não deviam ser reconhecidos com uma nomeação, à titulo póstumo, ao cargo de Professor Catedrático de Historia e Relações Internacionais.

* Jacques Depelchin é professor visitante no Pós-Afro, do Centro de Estudos Afro-Oirentais da Universidade Federal da Bahia - Salvador,Brasil

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