InfraREDD e InfoREDD, quando biodiversidade se reduz à biomassa, o ambiente torna-se propício à biopirataria
Novas tecnologias de mapeamento estão tornando mais fácil a coleta de dados da biodiversidade, facilitando a biopirataria e retirando a propriedade intelectual das mãos das comunidades indígenas. “Novas formas de biopirataria e novas estratégias para o controle da biomassa podem indicar que a aplicação de direitos, benefícios e justiça para as populações indígenas está retrocedendo”, relata Pat Mooney.
Quando a Convenção das Nações Unidas sobre Biodiversidade (CSB) foi adotada na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento realizado no Rio de Janeiro em 1992 (Rio Eco 92), o termo biopirataria foi cunhado por nós para demonstrar que o tratado apontaria para a maior apropriação de conhecimento indígena e recursos soberanos dos últimos 500 anos. Enquanto reivindicando o estabelecimento da autoridade nacional sobre a biodiversidade dentro de suas fronteiras e propiciando oportunidade modesta (apesar de bem-vinda) para a participação das comunidades indígenas e locais, o impacto de fato da CSB foi o de estabelecer que toda diversidade (gêneros e espécies) pirateada pelo poder colonial antes de 1992 e mantida em zoológicos, herbários, jardins botânicos ou bancos de genes imediatamente se tornariam propriedade do colonizador. Assim, de início, toda biodiversidade que havia sido coletada (e estudada e considerada de valor) tornar-se-ia herança dos esbulhadores, deixando para as populações indígenas e governos pós-coloniais toda a biodiversidade restante não coletada e sem conhecimento sobre seu valor. Esta condição foi apresentada como uma grande vitória para o povo.
No interstício de 18 anos, populações indígenas e governos do hemisfério sul têm lutado uma árdua batalha visando serem aceitos em algum tipo de acordo de “acesso e compartilhamento de benefícios” que seria justo e financeiramente benéfico. Alguns acreditam que o objetivo está na mira, enquanto outros temem que ele esteja se distanciando – amparado por novas estratégias e tecnologias.
Enquanto a Convenção de 1992 impôs uma amnésia em massa aos governos ao apagar a história, novos desenvolvimentos na CSB e a chamada agenda da Redução de Emissões de Desmatamentos e Degradação Florestal (REDD+) na Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) poderão permitir que novas tecnologias comercializem a biodiversidade que ainda não foi serializada, possibilitando uma nova onda de saques aos territórios indígenas e de populações do campo. Como exemplo, até o momento as florestas não haviam sido consideradas como “absorvedoras de carbono” no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento da Conservação (CDM) da UNFCCC, devido, entre outras razões, à dificuldade em quantificar o dióxido de carbono absorvido por elas. Novas tecnologias, incluindo vigilância por satélite, são hoje capazes de detectar mudanças na biomassa das florestas. A aplicação dessas tecnologias levaria necessariamente ao aumento da vigilância não apenas sobre as “árvores”, mas sobre toda a floresta, incluindo as populações indígenas que ali habitam. Além disso, tecnologias digitais serão capazes de inserir na internet a biodiversidade remanescente, que poderá, então, ser modificada e monopolizada por quem detenha o conhecimento tecnológico para tanto. Uma vez digitalizada, a biodiversidade existente pode se tornar comercialmente irrelevante e a terra ser arada para fins mais rentáveis a favor da economia do carboidrato.
Biomapas InfraREDD
Satélites e aviões agora podem combinar mapeamento e monitoramento (em três dimensões) da biomassa tropical de maneira nunca imaginada quando da obrigatoriedade da Convenção da Biodiversidade. Câmeras instaladas em aviões de pequeno porte ou helicópteros podem captar imagens hiper-espectrais utilizadas para analisar comprimentos de ondas visíveis e infravermelhas que revelem variações na vegetação. Medições precisas expõem os nutrientes do solo, identificando não apenas o tipo da vegetação da superfície como também o que está embaixo. A tecnologia foi originariamente desenvolvida para encontrar locais de sepultamento, contudo foi amplamente estendida para atender interesses diversos, de arqueólogos à CIA, e, agora, para facilitar a privatização e comercialização do “ar” das florestas.
O potencial para o biomapeamento (e biopirataria) é considerável. Plantas são afetadas pela composição do solo em que crescem. Comprimentos de onda na faixa dos 400 aos 2350 nanômetros podem ser monitorados do ar para detectar qualquer alteração na água ou na composição química do solo. Já é possível para o patrulhamento aéreo identificar pele humana e determinar se se trata de pessoa viva ou morta. [1] Possibilidades de curto-prazo incluem a identificação aérea de colheitas e criação de animais com traço genético característico ou com marcadores de DNA, e (sobretudo para comunidades locais e indígenas) a oportunidade de triangularização de terras, clareiras ou instalações para fins industriais. Depois de identificada e catalogada, a biodiversidade e sua área poderão ser utilizada para outros fins.
Em Setembro, o Instituto Carnegie da Universidade Stanford anunciou que, em conjunto com o World Wildlife Fund e com o governo peruano, mapeou cerca de 16.600 milhas quadradas da floresta Amazônica (aproximadamente a área da Suíça). Enquanto satélites mapearam a vegetação e registraram perturbações, as imagens de satélite foram complementadas por um avião que utilizou a tecnologia LiDAR (detecção e exploração luminosa), pertencente ao Instituto Carnegie, que produz representações tridimensionais da vegetação local. No solo, os cientistas convertem a estrutura de dados em densidade de carbono, auxiliados por uma modesta rede de dados de campo. Este novo sistema concilia dados geológicos, uso da terra e emissões para informar o Peru – e qualquer um que tenha acesso aos dados – que o estoque total de carbono da floresta é estimado em 395 milhões de toneladas, com emissões da ordem de 630 mil toneladas por ano. A estimativa do IPCCC para o estoque de carbono da área pesquisada era de 587 milhões de toneladas. No entanto, sob programas do tipo REDD, a abordagem de alta resolução do Instituto Carnegie poderá levar a um maior credito por tonelada de carbono. [2] O sistema tem também baixo custo. O mapa do Peru tem custo de US$ 0,08 por hectare e um mapa similar em Madagascar custou apenas US$ 0,06. [3] Então, no mundo do crédito de carbono, quanta biomassa a terra pode produzir?
As implicações dessas tecnologias infraREDD são significativas. Será possível para a indústria ou governos selecionar a biodiversidade que são atualmente consideradas importantes, descartando o restante. Em seguida, a tecnologia permitirá o acompanhamento de pessoas na floresta que estejam influenciando negociações de direitos agrários. Adicionalmente, a capacidade de avaliar a biomassa total e seu valor em carbono mostra a biodiversidade irrelevante e a biomassa comercialmente importante.
InfoREDD – iBio e Diversidade Digital
A complacência que a indústria pode ter sem a maioria da biodiversidade mundial está completamente errada – apesar de que isto não muda a ameaça à biodiversidade. Biólogos sintéticos – que insistem que serão capazes de reconstituir espécies extintas nos seus laboratórios e criar qualquer nova espécie que o comércio demande – às vezes não acham necessário manter amostras antigas, apenas por precaução. No início deste ano, cientistas da Universidade de Cambridge descobriram uma maneira de enganar células para ler o DNA de forma diferente. O resultado foi o de que ao invés de se ter 20 aminoácidos para construir virtualmente tudo na natureza, os cientistas hoje dispõem de 276 aminoácidos e alegam que podem construir quase todos os tipos de organismos vivos que se pode imaginar. Em Maio deste ano, uma empresa chamada Synthetic Genomics conseguiu construir o primeiro micróbio artificial auto-replicável – uma espécie que jamais viveu na terra. Agora que foi estabelecida “a prova de princípio” biólogos sintéticos acreditam que podem construir microorganismos capazes de transformar biomassa em alimentos, combustíveis, medicamentos ou plásticos.
Novas tecnologias da informação alimentam a sua arrogância. O projeto International Barcode of Life (IBoL) e o correlato Consortium for the Barcode of Life, patrocinados pelo Instituto Smithsonian dos Estados Unidos (que não é signatário da Convenção sobre Biodiversidade), estão mapeando o genoma de cada espécie conhecida, disponibilizando os mapeamentos eletrônicos na internet. Adicionalmente, milhares de amostras estão sendo voluntariamente enviadas ao Smithsonian e outras instituições do hemisfério norte, tais como o Instituto de Biodiversidade de Ontario em Gelph, no Canadá. Uma vez mapeados, será em tese possível que corporações – munidas, talvez, da tecnologia auto-replicável patenteada pela Synthetic Genomics Inc. – façam downloads de cópias genéticas, ajustando-as à vontade, e construam novas formas de vida. Empresas científicas, de farmacêuticas a sementes, poderiam concluir que bancos de genes, zoológicos e jardins botânicos – e programas de conservação – estariam no passado.
O IBoL não está sozinho. Uma iniciativa “concorrente” chamada Projeto Genoma 10K (dedicado a mapear o genoma completo de 10 mil espécies), terá custo estimado de não mais que US$ 50 milhões (US$ 5 mil por espécie). Mais uma vez, espera-se que os mapas das espécies sejam disponibilizados para qualquer pessoa com acesso à internet. [4]
Assim como a tecnologia LiDAR do Carnegie, o custo do seqüenciamento de DNA tem-se tornado desprezível – um centésimo de milésimo do que era há uma década. Por exemplo, o primeiro seqüenciamento de genoma humano (com 3 bilhões de pares base para analisar) levou 13 anos e custou US$ 3 bilhões. Hoje, o mesmo pode ser lido em 8 dias e por US$ 10 mil. A Oxford Nanopore Technologies e sua rival Pacific Biosciences afirmam que dentro de três anos serão capazes de mapear o genoma humano em 15 minutos e ao custo de US$ 1 mil. Impressionantemente a Pacific Biosciences diz que será capaz de analisar um genoma de uma molécula única de DNA. [5] Se (ou seria quando?) este momento chegar, será possível armazenar uma molécula de cada uma das 10 milhões de espécies estimadas que existam no mundo em um único lado de um disco do tamanho de um cartão de crédito – com o mapa digital de cada espécie do outro lado...
Assim, uma vez digitalizado, o mundo industrial não verá mais necessidade para a biodiversidade. Florestas tropicais – ou, mais precisamente, a terra em que as árvores se encontram plantadas – poderão ser consideradas para objetivos mais produtivos, maximizando a produção de biomassa. De acordo com capitalistas de risco, o fator econômico mais importante no mundo nos dias de hoje é que apenas 23,8% da biomassa terrestre anual mundial são colocadas no mercado – significando que 76,2% da biomassa terrestre anual mundial estão disponíveis para ser monopolizada. Em jogo está o controle sobre indústrias de não apenas um, mas vários trilhões de dólares.
Em 2010, ano das Nações Unidas para a biodiversidade, na medida em que comunidades indígenas e locais e governos debatem a equidade de um acordo de acesso e troca de benefícios e os direitos das populações indígenas, bem como sua valiosa contribuição visando conservar a biodiversidade, novas formas de biopirataria e novas estratégias para o controle da biomassa podem indicar que a aplicação de direitos, benefícios e justiça para as populações indígenas está retrocedendo ainda mais do que em 1992. Para as corporações a questão vai além de quem terá a propriedade de ecossistemas e da biodiversidade, mas sim quem serão os detentores da biomassa.
NOTAS
[1] New Scientist (2010) ‘Air detectives know where the bodies are buried’, 10 de Abril
[2] Carnegie Institute, Stanford University (2010) ‘Carbon mapping breakthrough’, 6 de Setembro
[3] Butler, Rhett A. (2010) ‘Peru's rainforest highway triggers surge in deforestation, according to new 3D forest mapping’, mongabay.com, 6 Setembro
[4] The Economist (2010) ‘A special report on the human genome: Inhuman genomes - Every genome on the planet is now up for grabs, including those that do not yet exist’, 17 de Junho
[5] The Economist (2010) ‘A special report on the human genome: Biology 2.0 - A decade after the human-genome project’, 17 de Junho
*Pat Mooney é o Dirige o Grupo ETC.
**Texto gentilmente traduzido por voluntário no programa E-volunteers do qual a Fahamu/Pambazuka fazem parte
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