BacktoBlack ou BacktoWhite Supremacy?

http://www.pambazuka.org/images/articles/503/PosterBillyVanWare2.jpgEm sua segunda edição, o BacktoBlack - B2B reuniu uma série de bons músicos negros de estilos tão variados quanto o kora, o r&b, o pop e o blues, sem contar o melhor da música negra brasileira. Parabenizo totalmente a qualidade da produção técnica do evento: exposição de imagens de jovens negros em tamanho gigante, espaço para a exposição de peças e produtos de instituições sociais diversas, inclusive instituições negras. Os patrocinadores do evento (Oi Futuro, Fundação Cultural Palmares, Petrobras, etc) também contavam com stands dentro de um trem especialmente adaptado para tal. Do ponto de vista do quesito qualidade técnica não há o que reclamar, penso.

http://www.pambazuka.org/images/articles/503/PosterBillyVanWare.jpgPorém, do ponto de visto político, o B2B reproduz pari passu uma lógica ainda comum no Brasil no que se refere às “culturas negras”. Concordo que toda cultura é pública por excelência, ou seja, ninguém pode atribuir-se o direito absoluto de privatizar os usos e sentidos de uma dada matriz cultural. Isso significa dizer que um sujeito pertencente a uma nação indígena brasileira, por exemplo, pode e tem todo direito de tocar Bach, de ouvir Fela Kuti e ler os poetas portugueses sem sofrer qualquer constragimento por isso. No entanto, em determinadas circunstâncias não é tão simples “praticar” a cultura do outro como se isso fosse um produto comprado no supermercado. Em outros termos, tem-se um processo de alienação e subalternização quando a cultura do outro é utilizada a fim de fortalecer, seja politicamente, seja economicamente, a hegemonia de um grupo determinado.

Vamos dar os nomes aos bois. No caso do B2B vejo um total uso do “repertório cultural negro-africano” voltado a fortalecer a hegemonia branca corrente no Brasil. Por “repertório cultural negro-africano” entendo um conjunto de expressões artísticas tais como dança, teatro, culinária, cosmologias, filosofias, corporeidades (como a capoeira e a dança afro), fotografia, cinema, universos simbólicos, etc, gestados a partir de matrizes civilizacionais africanas e afro-brasileiras. Em suma: há todo um agenciamento negro nessa produção e que por sua vez carregam histórias ancestrais de lutas, resistências, perdas, ressignificações, recriações, etc. Tal repertório não tem nada a ver com pureza de qualquer espécie e nem necessariamente exclui outras matrizes civilizacionais, já que toda formação cultural forja-se em um diálogo constante com outras formações culturais.

O grande problema existente ai é a apropriação feita em nome e pela eternização da hegemonia branca. O que isso quer dizer? O racismo no Brasil significou e significa além da exclusão social e política da maioria do povo negro, um extraordinário fortalecimento das elites brancas. Isso se expressa no acesso as melhores escolas, aos cursos de excelência das melhores universidades públicas e privadas, aos melhores serviços sociais, cargos de alto salário e padrões de condição de vida legadas as gerações vindouras. Em suma, brancos e negros vivem, em termos gerais gerais, vidas diametralmente opostas, mantendo assim um complexo “equilíbrio de forças” que tão comumente nos caracteriza. O mito da democracia racial ao longo de todo o século XX traduzia tais privilégios raciais em um problema meramente social. Ou seja, o problema não era a cor da pele e a compleição fisíca do sujeito e sim seu background social, sua “pobreza” de origem. Esse discurso ainda é feito atualmente, inclusive por intelectuais (brancos) que se notabilizaram pesquisando “culturas negras” e relações raciais.

O BacktoWhiteSupremacy (quem preferir sugiro também BacktoWhiteness, algo como retorno a branquitude... retorno?)surge em um contexto em que tais assimetrais e privilégios vem sendo mais sistematicamente discutidos na sociedade brasileira. Além da contradição que todo o evento expressa, instituições ligadas ao governo federal voltadas a promoção e defesa das culturas negras, como a Fundação Palmares, conferiram total aval institucional e político a este tipo de hegemonia. Capatazes pós-modernos!

Branquitude e esquizofrenia

Sou daqueles que pensam que ser crítico a um determinado tipo de evento cultural não é o mesmo que estar ausente. Se fosse assim, teríamos pouquíssimas opções do que fazer, exceto ir a bailes funk e ensaio de escola de samba. Conforme falei acima, além da qualidade técnica do evento todos temos direito de participar. Por esta razão fui no segundo dia para assistir ao show da diva do r&b Erikah Badu. A geografia humana local traduzia perfeitamente minhas suspeitas: cerca de 95% dos presentes eram pessoas brancas de classe média. O mais esquisito para mim não foi ver pessoas brancas ali - todos somos cidadãos com direito e liberdade de acesso as manifestações culturais!! O mais esquisito foi ver que pessoas como eu, negras, eram minoritárias em um evento que, literalmente, vendia a “cultura negra” para um público branco. Negros em maioria somente o pessoal da limpeza e segurança pública...

As imagens de jovens adultos negros em tamanho gigante enfeitando todo o enorme espaço do show constrastava com a parca presença de nossa gente. Faltou somente aos brancos ter posto perucas de nega maluca como fazem no carnaval para disfarçar as contradições presentes... Alias, pra que? Não seria preciso. Nunca foi, definitivamente.

A branquitude, um outro nome para hegemonia branca, diferentemente do que dizem seus teóricos não se escondia e nem precisava fazê-lo ali. Reinava feliz e absoluta na terra do faz-de-conta-que-não-tenho-privilégio-porque-continuarei-fazendo-de-conta-que-não-tenho-cor-para-que-vocês-continuem-perdendo. Uma amiga que foi no último dia me contou que de um lado “todos” os brancos assistiam ao show do Taj Mahal (musico negro que toca blues mas que é consumido aqui pelas classes médias brancas, tal como o reggae jamaicano) e “todos” os negros dançavam ao som do pessoal do viaduto de Madureira, reduto do charme. Quando o show do Taj Mahal terminou, os brancos literalmente “invadiram” o espaço hegemonizado (será que cabe esse termo aqui? pergunto (tenso) a mim mesmo...) pelos negros.

Por fim, creio que é hora de uma reflexão mais séria sobre esse tipo de coisa. Entendo perfeitamente que artistas negros ou brancos façam suas produções para pessoas de qualquer grupo social ou racial. É dali que sai seu ganha pão. O que acho politicamente complicado é que um evento coloque no bolso, capitalize e manipule ao bel prazer todo um repertório cultural negro-africano como se isso viesse de “graça” para nós, negros e negras, e ainda por cima com o apoio de uma instituição do governo federal criada para fortalecer as demandas do povo negro. Qual o papel da Fundação Palmares nisso? Melhor: qual o projeto da FCP? Fortalecer-nos ou enfraquecer-nos? Contribuir para pulverizar o que restou do mito da democracia racial (diga-se de passagem, continua super forte e atuante) ou auxiliar em sua reprodução?

Os produtores do BacktoWhiteSupremacytoWhiteness devem estar felizes com a Fundação Palmares e mais ainda com os recursos captaneados do governo federal.

É hora de termos um Retorno à Negritude comprometido com a negritude combativa legada pelos movimentos negros e pelo suor e sangue de nossos ancentrais.

*Marcio André dos Santos é mestre em ciências sociais e doutorando em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos.

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