A África e o Brasil sob a ótica de interesses divergentes

Ìrohìn – O jornal Estado de S. Paulo publicou matéria sob o título: “Lula começa viagem à África em ato ao lado de ditador”, referindo-se à viagem do presidente Lula nesta semana a quatro países africanos, começando por Burkina Faso. Como o senhor avalia esta questão?
Carlos Moore – No sentido do que efetivamente aconteceu, o que publicou esse jornal é exato. Há vinte anos, em 15 de outubro de 1987, houve um golpe de Estado em Burkina Faso, no qual o presidente Thomas Sankara – um grande homem, um africano nacionalista e importante pan-africanista – foi covardemente assassinado durante um golpe urdido e comandado pelo atual presidente de Burkina Faso, Blaise Campoare. Junto com Sankara morreram assassinados doze outros dirigentes nacionalistas.

Ìrohìn – Quais as razões desse golpe sangrento?
Carlos Moore – Tudo se resume ao fato de que Burkina Fasso, antiga colônia francesa antigamente conhecida como “Alto Volta”, escapou ao controle da França, em 1983, quando Sankara assumiu o poder e iniciou, com seus companheiros, uma verdadeira revolução social e política que eliminou rapidamente a corrupção, instaurou os direitos da mulher e implementou uma profunda reforma agrária. O novo governo revolucionário advogava pela unificação de todo o continente num só país federal, propugnava o não-pagamento das dívidas injustas contraídas com o Ocidente, começando, com isso, a revolucionar a sociedade. Sankara se colocou, assim, na mira da França. Aí se encontram as razões: essa turma que atualmente dirige Burkina Faso se encontra totalmente nas mãos do Ocidente, daquelas potências que têm atuado para o subdesenvolvimento e o atraso do continente africano, numa exploração incessante e sem misericórdia. O ano de 2007 marca, assim, o vigésimo aniversário dessa ação vil que não contribuiu em nada para o avanço do continente africano, senão para o seu atraso.

ÌrohÌn – Sankara era um pan-africanista?
Carlos Moore – Absolutamente. Ele é amado em todo o continente, onde sua memória é venerada, como o é a de Patrice Lumumba. Como este, Sankara lutou para concretizar o projeto de unidade continental africana, proposta também defendida por líderes como o presidente Kwame Nkrumah, de Gana; Amílcar Cabral, de Guiné-Bissau; e Steve Biko, da África do Sul. Ou seja, os grandes pan-africanistas lutaram pela unidade do continente africano e muitos foram mortos por seguir esse ideal. Sankara é um deles e sempre ficará no coração dos africanos dignos como um representante dos melhores interesses da África.

Ìrohìn – Como se explica que o presidente Lula tenha iniciado sua recente viagem à África por Burkina Faso, exatamente no dia do aniversário do assassinato de Sankara pelo presidente atual?
Carlos Moore – É um fato que a imprensa conservadora se utilizou dessa decisão da diplomacia brasileira para deslegitimar toda a política de aproximação com o continente africano. Não há duvida de que estamos diante de um fato que surpreende. Houve, efetivamente, uma decisão por parte da diplomacia brasileira que eu, pessoalmente, não compreendo. Não se trata de um erro, pois aqueles que tomaram essa decisão conheciam os fatos. Portanto, aqui há duas questões: uma decisão que considero infeliz e o aproveitamento dessa decisão por forças contrárias tanto ao avanço africano quanto ao avanço do Brasil como Nação multirracial. É isso que considero duplamente triste, pois acredito na sinceridade pró-africana de Lula. Os argumentos apresentados na matéria de vários jornais parecem compactuar com essas forças conservadoras.

Ìrohìn – O senhor pensa que o presidente Lula tinha todos os elementos à mão antes de aceitar o convite do presidente ditador de Burkina Faso?
Carlos Moore – O presidente Lula é alguém que respeito muito. Lula é um dirigente com um passado extraordinário, que se distinguiu sempre por ser um adversário de toda forma de ditadura. Ele sempre lutou contra as forças contrárias à democracia. Com efeito, não compreendi como o presidente Lula permitiu estar associado à figura desse ditador precisamente no dia aniversário de sua façanha assassina. Portanto, é muito triste ver aquele que efetivamente assassinou Sankara se utilizando desse momento para tentar enganar o resto do mundo, pois a figura de Lula é internacionalmente respeitada. Para mim, como pan-africanista, foi um momento de tristeza pessoal e constrangimento político.

Ìrohìn – Como se explica que os assessores do presidente não se atentaram para o fato de esse não ser o momento mais propício para ir àquele país, em especial nesta data?
Carlos Moore – Eu compreendo que os Estados têm sua própria lógica, a chamada “razão de Estado”. Trata-se de uma lógica diferente da que orienta as ações da militância política. Mas aqui está nítido que havia uma operação orquestrada pelo Estado neocolonial de Burkina Faso, dirigido pelo presidente Blaise Campoare, para fazer coincidir a visita de um grande e respeitado dirigente do Terceiro Mundo com o aniversário da tomada de poder mediante o assassinato de Sankara, evento que tem sido reprovado por todos os africanos nacionalistas e que se respeitam.

Ìrohìn – Qual é a sua avaliação do presidente Blaise Campaoré?
Carlos Moore – Eu não tenho o menor respeito por esse dirigente, que se mantém no poder mediante sucessivas fraudes eleitorais, graças à intimidação de seus oponentes políticos e ao exercício do terror contra a população. Considero-o como um dos homens mais vis e, precisamente, um dos dirigentes menos capazes do continente africano. Não irei me estender mais sobre sua pessoa, pois não acho que merece toda essa atenção.

Ìrohìn – Em que perspectiva o senhor coloca as relações entre o Brasil e a África?
Carlos Moore – Não podemos esquecer que se trata, fundamentalmente, de um continente enfraquecido, dominado pelo exterior e prostrado diante dos grandes interesses mundiais, após vários séculos de golpes duros, assaltos imperiais, intensos tráficos de escravizados e a conquista de todo o território continental pela Europa ocidental. A isso se agrega um processo de independência, a partir de 1957, já minado pelas relações neocolonialistas: a maioria esmagadora de líderes que chegaram ao poder já estava corrompida e entregue aos interesses hegemônicos mundiais. Tratava-se de elites coniventes com os interesses imperialistas e hegemônicos da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e do Japão. E, ultimamente, essas elites se mostram também coniventes com as ambições hegemônicas e neo-imperiais de grandes potências emergentes como a China. É nesse contexto global que se insere a relação Brasil-África que se inicia perante nós.

Ìrohìn – Quanto ao futuro da relação Brasil-África, sua avaliação é otimista ou pessimista?
Carlos Moore – Nenhum dos dois. Essa relação será o resultado dos encaminhamentos dados às condições concretas que a presidem e do que as sociedades civis africanas e brasileira permitirão que seja. Entre países, as relações ou traduzem a interação de estruturas que se encaixam de maneira harmônica porque se equilibram – são, portanto, simétricas –, ou se encaixam de maneira desarmônica, porque são assimétricas. As relações políticas, econômicas ou militares obedecem a jogos de interesses, e não a embates sentimentais. Os interesses concretos, não a emoção, comandam o político e o econômico.

Ìrohìn – Quais são essas condições concretas a que o senhor se refere?
Carlos Moore – São muitos os elementos e bastante variados, mas se devemos resumir, eu diria que são os seguintes: a) uma sociedade civil africana enfraquecida, desarticulada, reprimida e com pouco poder de pressão sobre seus governantes, os quais são, em sua maioria, despóticos, corruptos, coniventes com os interesses exploradores do exterior, profundamente alienados culturalmente e atentos apenas a seus espúrios interesses materiais; b) um contexto internacional definido pela supremacia dos interesses de um punhado de nações imperialistas – médias, grandes e superpotências – que cobiçam as fabulosas riquezas minerais e materiais estratégicas do subsolo africano; c) uma indústria pujante no Brasil, em busca de campos de investimento e lucro, correspondente a uma economia em expansão digna de países altamente tecnológicos e perfeitamente industrializados, apesar do fato de o Brasil pertencer ao chamado Terceiro Mundo. Somado a isso, está um outro fator, de natureza ideológica: a existência no Brasil, fruto de um passado fartamente conhecido, de um desprezo profundo para com o continente africano, seus descendentes e sua história. Ou seja, de modo geral, as elites dominantes do Brasil, profundamente eurocêntricas e europeizadas, admiradoras dos métodos norte-americanos e das normas e padrões euro-ocidentais, não consideram a África como parceiro a se respeitar, mas como o “Continente Negro” provedor de escravos, digno de ser explorado e humilhado. Essas elites têm, em suas mãos, praticamente todos os meios de comunicação e, assim, podem forjar – e forjam – todas as imagens distorcidas sobre o continente africano. Por sua vez, esse monopólio sobre a mídia poderá permitir que a opinião pública e a própria sociedade civil brasileira se mostrem omissas diante e até coniventes com a exploração desse continente. É aí onde reside o perigo: que, pouco a pouco, a opinião brasileira seja manipulada num sentido contrário a uma empatia e um sentimento de solidariedade com o continente ancestral da maioria da população do país.

Ìrohìn – Somando a dimensão política e os aspectos propriamente econômicos, o que dizer sobre a investida do governo brasileiro em países africanos como Burkina Faso, Angola, Congo e África do Sul?
Carlos Moore – Sabemos que um chefe de Estado deve defender os interesses de todos os seus concidadãos. Os interesses econômicos do país são pontos-chave a ser protegidos pelo chefe de Estado. Na medida em que esses interesses são representados pelos setores que marcam a presença do país no cenário internacional – em especial a indústria e o comércio –, é lógico que o presidente do Brasil trate de abrir novos caminhos para os investimentos das empresas, das companhias nacionais e multinacionais de seu país, como qualquer outro chefe de Estado o faria. Isso é algo que está previsto na lógica do poder de um chefe de Estado. Nisso, não há mistério algum. Por outro lado, o continente africano é objeto da cobiça internacional por causa da extraordinária riqueza mineral existente em seu subsolo. Dos 48 minerais considerados estratégicos pelo mundo industrial de alta tecnologia, a África monopoliza não menos que 38. Não é por acaso que a África tem sido chamada de “escândalo geológico”. É por esse motivo que África figura como alvo privilegiado das potências mundiais e será ainda mais neste século. Nesse momento, a China põe em curso uma das maiores operações dirigidas aos 53 países africanos. A China está interessada na exploração e na aquisição desses materiais estratégicos. E não somente ela, mas o Japão, a Coréia do Sul, a Índia, a Turquia, o Irã; ou seja, todas as potências emergentes. O campo daqueles países que se interessam pela África, antes restrito às grandes potências européias, agora se ampliou. Já não se trata apenas das antigas potências coloniais, como França, Itália, Espanha, Portugal, Inglaterra, mas ainda da Alemanha, da Rússia e até da Polônia. Todos esses países estão interessados na África. É dentro desse jogo de interesses que se situa o Brasil, país que também busca ser uma potência no século XXI. Logicamente, isso representa riscos para o continente africano, mas também poderá comportar elementos positivos para esses países.

Ìrohìn – O que predomina na investida do Brasil no continente africano, a sensibilidade política ou os interesses puramente econômicos?
Carlos Moore – Para mim, não há dúvidas de que são os interesses econômicos os que primam, embora seja possível admitir como sincera a simpatia expressa pelo chefe de Estado do Brasil para com esse continente. Não duvido da sinceridade do presidente Lula, mas também não duvido que sejam os interesses concretos do Brasil que comandam a sua política internacional, a qual está fundamentada em interesses econômicos e comerciais. Ora, esses interesses se exprimem num contexto internacional bem definido: a supremacia planetária dos Estados Unidos e, como resposta a essa hegemonia unilateral, a emergência de novos pólos de poder no mundo. O Brasil, nona ou décima economia mundial, é um desses possíveis pólos que aspiram ao status de grande potência.

Ìrohìn – Apesar da nova aproximação entre o Brasil e os países da África, pode-se afirmar que testemunhamos ainda uma relação entre “desiguais”?
Carlos Moore – Não se pode pretender que exista equilíbrio entre o Brasil, país unificado, forte e nona economia do planeta, e um continente mesmo que tão gigantesco quanto a África, mas fragmentado em 53 países paupérrimos e enfraquecidos politicamente. O peso internacional do Brasil excede ao peso de todos os países da África Central, por exemplo. Essa é a realidade. A própria mídia brasileira tem enfatizado, nesses últimos dias, o desequilíbrio entre o Brasil e os países da África e sublinhado, não sem uma ironia perversa, que o orçamento de Burkina Faso, país de cerca de 15 milhões de habitantes, representa somente 10% do orçamento de uma única multinacional brasileira: a Petrobrás! O Brasil é um país-continente unificado federalmente, forte, atuante no plano internacional e capaz de defender suas fronteiras se essas se virem ameaçadas. A África é tudo ao contrário disso: não há nem sequer um projeto concreto de governo articulado em nível federal. O Brasil é um país forte, pujante, tecnologizado, cuja economia e indústria estão impulsionadas pelas multinacionais locais. Estas avançam agora pelo mundo em busca de lucro, de matérias-primas e expansão comercial. Os 53 países africanos, em vez disso, são majoritariamente exportadores de produtos brutos de extração, como petróleo, ouro, diamante, tungstênio, urânio e cobre. Os exércitos africanos servem unicamente para exercer a repressão contra seus povos, ou para montar golpes de Estado, e não para a defesa dos países africanos contra qualquer ameaça externa.

Ìrohìn – O que deve, então, ser superado para possibilitar o estabelecimento de uma relação justa e eqüitativa entre essas partes?
Carlos Moore – São vários os obstáculos, em ambas as partes, a serem superados para o estabelecimento de uma relação de igual para igual entre Brasil e África. Os próprios dirigentes africanos, na sua maioria, constituem-se em grandes entraves. De modo geral, boa parte desses governantes não busca estabelecer esse tipo de relação eqüitativa com o resto do mundo. Lembre-se de que a maioria deles chegou ao poder não por representar os melhores interesses de seus países, mas porque foram colocados lá pelas potências imperialistas ocidentais e para defender os interesses dessas. É por aí que temos que começar. Iniciado com a independência de Gana, em 1957, e da Guiné, no ano seguinte, o processo de descolonização se expandiu por praticamente todos os países africanos a partir de 1960. Como resultado, levou ao poder verdadeiros dirigentes nacionalistas, poderosos pensadores, grandes homens de Estado que pensavam em nível do continente e queriam a integração do continente. Esses líderes almejavam que a África deixasse de ser fragmentada, que se tornasse uma África federativa, com um governo central e forças armadas únicas, com um parlamento e uma nacionalidade única. Entre esses dirigentes clarividentes que pensaram essa África, estavam os presidentes Kwame Nkrumah, de Gana; Sékou Touré, de Guiné; Modibo Keita, do Mali; Alphonse Massamba-Débat, do Congo-Brazzaville; bem como o primeiro-ministro do Congo Patrice Lumumba; e o presidente Julius Nyerere, da Tanzânia. Esses grandes líderes foram seguidos por outros não menos importantes como Amilcar Cabral, de Guiné-Bissau; o próprio Steve Biko e Nelson Mandela, da África do Sul, e Thomas Sankara, de Burkina Faso. Estavam fundamentados num conceito de África radicalmente diferente do utilizado pelos dirigentes neo-colonais de hoje.

Ìrohìn – O que aconteceu com esses dirigentes nacionalistas?
Carlos Moore – Esses dirigentes clarividentes, que chegaram ao poder com o processo de descolonização e lutaram pela independência da África, foram derrubados com sangrentos golpes de Estado ou assassinados, a exemplo de Lumumba; Cabral; Muritala Muhammed, da Nigéria; e ainda Eduardo Mondlane, de Moçambique. Em um período de menos de trinta anos, não menos que 38 importantíssimos dirigentes africanos foram assassinados em circunstâncias que, na maioria dos casos, ainda não foram elucidadas. Ou seja, essas lideranças desapareceram seja pela via dos golpes de Estado, seja pela via dos assassinatos. A África nacionalista e pan-africana foi decapitada! Isso forma parte da explicação de porque a África está na atual situação de subdesenvolvimento terrível. Seus grandes líderes e pensadores foram dizimados. E quem tomou o poder em seus lugares? Observe a longevidade dos atuais governos e você verá que aqueles que estão no poder chegaram lá ou colocados pelos países do Ocidente ou urdindo sangrentos golpes de Estado em favor do Ocidente, em muitos dos casos matando aqueles que se opunham à exploração da África e que tinham grandes e inovadoras idéias sobre como emancipar e federar o continente. Então, eu diria que um dos grandes obstáculos para que o continente africano estabeleça uma relação em pé de igualdade com o resto do mundo são esses próprios dirigentes africanos. Em sua imensa maioria, as atuais elites africanas são, nesse sentido, um importante fator de subdesenvolvimento do continente africano.

Ìrohìn – Por que exatamente?
Carlos Moore – A maioria das elites africanas de hoje trabalha para manter a velha troca desigual, iniciada antes mesmo dos séculos XV-XVI, porque essa situação as beneficia. Há séculos atrás, isso correspondia ao envio de mão-de-obra africana escravizada para os grandes centros imperiais da época: primeiro o Oriente Médio e depois a Europa. Há toda uma história dessa troca desigual com os países africanos que se instaura a partir do momento em que o império árabe, nascido no século VIII, se tornou dominante no mundo. Quando esse império, que durou mais de oitocentos anos, cai e começa a emergir o império europeu ocidental, a mesma relação assimétrica se manteve. Ainda hoje, ela está de pé e favorecendo os interesses das elites africanas. É chocante dizer isso, e ainda mais aceitá-lo, mas essa é a realidade. Assim, essas elites são uma importante peça na trama da manutenção dos nexos colonialistas de ontem e dos possíveis nexos neo-colonialistas e neo-imperialistas de amanhã.

Ìrohìn – Ainda pensando sobre os obstáculos, o que dizer sobre o contexto brasileiro?
Carlos Moore – No Brasil, as coisas acontecem de outra maneira. Aqui as elites dominantes são poderosas e defendem bem seus interesses nacionais. Entre essas elites, há setores que cobiçam as matérias-primas africanas. São interesses criados pelas grandes companhias multinacionais brasileiras que já têm força suficiente para intervir fora das fronteiras deste país. Atualmente, as empresas brasileiras estão investindo bastante em vários países latino-americanos e fazem um grande esforço para estabelecer relações com o resto do mundo. Isso é parte de toda uma trama do mundo capitalista atual. Portanto, essa tentativa brasileira de se implantar na África não é nada anormal; ela faz parte da dinâmica preponderante no planeta, dominada pela economia liberal.

Ìrohìn – Mas, há pouco o senhor se referiu à existência de forças conservadoras que atuam no Brasil. Como classificá-las?
Carlos Moore – É preciso apontar para o fato de que o Brasil dispõe de um sistema muito complexo pelo fato de ser um conjunto nacional muito parcelado. Tanto os interesses econômicos quanto os políticos são fragmentados. Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste correspondem a realidades socioeconômicas e históricas diversas, muitas vezes divergentes. Aqui neste país, não há forças conservadoras simplesmente homogêneas, senão que existem vários setores de conservadorismo. De igual maneira, há diferentes forças progressistas neste país. Trata-se, justamente, de um quadro bastante complexo. Aqui, há forças conservadoras agindo em sentidos diferentes. Por exemplo, há grupos que se opõem aos laços com a África, embora isso beneficie o Brasil e as empresas brasileiras. Assim, a política africana, que o governo Lula tenta estabelecer com o apoio de um conjunto de empresas brasileiras, representa os interesses de grupos com uma visão bem melhor definida acerca dos interesses nacionais, do que aqueles setores mais retrógrados, que demonstram uma total falta de interesse pelas relações com os países africanos.

Ìrohìn – Esses laços beneficiariam a quem, fundamentalmente?
Carlos Moore – De fato, nesta altura, eu não sei até que ponto esses laços atuais favorecem os povos africanos. O certo é que, pelo momento, esses laços vão beneficiar as elites africanas, por uma parte, e, sobretudo, a economia e as empresas brasileiras. Apesar disso, há forças conservadoras que não querem o estabelecimento desses laços com a África. Essas forças conservadoras – não apenas no Brasil, mas em todo o continente americano – são tradicionalmente negrofóbicas; herdaram da história um ódio e um desprezo para com o continente africano que as cega ao ponto de se oporem ao desenvolvimento de relações econômicas entre suas empresas nacionais e os países africanos, embora essas relações – repito – favoreçam às suas próprias economias.

Ìrohìn – Então, o senhor acha que essas relações serão inevitavelmente neocoloniais?
Carlos Moore – Nas condições que acabo de descrever, seria um milagre que isso não acontecesse; e eu não acredito em milagres. Para mim, é evidente que todas as condições estão dadas para que a relação Brasil-África não seja diferente das relações que o resto das nações poderosas do mundo tem estabelecido e mantido com esse continente. Todas as condições estão dadas para que as relações Brasil-África evoluam na direção de relações neocoloniais, com o Brasil assumindo, pouco a pouco, o papel cada vez mais acentuado de uma potência hegemônica, mas com cara “simpática”. Até porque o atual cenário de um mandatário simpático para com os verdadeiros interesses africanos pode não se estender além do mandato do presidente Lula. Tudo vai depender da conivência ou não da própria sociedade civil brasileira na situação que nos interessa.

Ìrohìn – Essas relações estão condenadas a evoluir negativamente. É isso?
Carlos Moore – As relações neocolonias surgem sempre de profundos desequilíbrios estruturais entre nações. Sobre essas relações vêm incidir, logo após, as elaborações ideológicas, que garantem a hegemonia do parceiro mais forte sobre o outro que se vê cada vez mais subalternizado na relação desigual. Como eu disse, no que diz respeito ao Brasil, o fator ideológico se dá na existência de uma superestrutura nacional negrofóbica e antiafricana, legado da escravidão. No Brasil, indiscutivelmente, mesmo diante de insistentes negações, existe um forte racismo estrutural e sistêmico, o qual está profundamente enraizado no imaginário social. Esses são fatores graves que não podem ser esquecidos, nem minimizados, quando se fala da África. Para se ter a medida disso, só é necessário observar como a mídia brasileira trata cotidianamente os problemas que atingem o continente africano: com um extremo grau de desprezo, insensibilidade e desrespeito, promovendo mentiras, meias-verdades e omitindo os fatos que, facilmente, poderiam explicar até os maiores horrores protagonizados nesse continente pelas suas elites neocoloniais e corruptas. Não há simpatia ou empatia nas reportagens para com os povos africanos, senão a vontade de apresentar o “Continente Negro” como algo bestial, um buraco escuro e sujo, primitivo, bárbaro, ameaçador! Ou seja, a África é apresentada na mídia nos mesmos termos que são apresentadas as favelas das grandes cidades brasileiras.

Ìrohìn – Então, o senhor acha que um dia também possa surgir um imperialismo brasileiro?
Carlos Moore – A experiência histórica nos demonstra que qualquer nação poderosa, a despeito de seu perfil inicialmente democrático, pode se converter numa nação hegemônica, dominadora e abusiva em relação aos países mais fracos. Esse é o caso, especialmente, quando os interesses nacionais estão atrelados aos interesses econômicos e financeiros das grandes empresas nacionais de porte multinacional. Nesse sentido, o Brasil pode, sim, eventualmente, se converter num subimperialismo ou imperialismo no século XXI. Não existe imunidade natural contra a arrogância nacional, o chauvinismo nacional ou o racismo nacional. Não há antídoto algum que garanta que uma nação poderosa não se converta numa nação imperialista. Os exemplos dos Estados Unidos e de Israel mostram-nos a veracidade dessa ponderação. Pelo contrário, temos de ficar muito atentos e muito lúcidos. A lucidez política, a atenção meticulosa à evolução das relações com os países africanos, exige a vigilância constante da sociedade civil. Não vejo outra maneira para garantir que essas relações se mantenham dentro de um perímetro ético minimamente aceitável.

Ìrohìn – Pensando na edificação de relações mais eqüitativas, qual papel a ser desempenhado pela sociedade civil e, em particular, pelos movimentos sociais neste momento?
Carlos Moore – A sociedade civil tem, de maneira permanente, uma parte de responsabilidade na direção em que se orienta a condução da política exterior dos países. Está incumbida de assumir ou não essa responsabilidade. Eu acredito que, no caso que nos interessa, é justamente a sociedade civil que deve ser o contrapeso à ação e aos interesses das grandes empresas. É óbvio que o objetivo das empresas é o lucro e que tendem, fatalmente, a participar na espoliação do continente africano. Isso está de acordo com a lógica do capitalismo mundial. Há um setor de ponta na economia brasileira, tecnologicamente avançado, que não deixa nada a desejar aos outros países. Está claro que esse setor está interessado em ter acesso às matérias-primas e ao mercado africano. Neste momento, a África representa um mercado crescente, onde os produtos manufaturados do Brasil vão encontrar um excelente espaço de escoamento. Assim, como as companhias chinesas, japonesas, iranianas e indianas, as brasileiras também estão interessadas em explorar e ampliar esse espaço. Essas companhias não vão priorizar o impedimento de métodos injustos de exploração dos africanos. Eu penso que isso não vai ser um ponto decisivo na atuação dessas companhias. Mesmo porque não tem sido a realidade aplicada pelos outros Estados que estão atuando na África atualmente. Os próprios chineses não estão nem um pouco preocupados em saber se os trabalhadores empregados nos países africanos estão protegidos sindicalmente ou não. Eles estão simplesmente interessados em dispor de uma força de trabalho mais barata e de se apropriar dos recursos do continente, pagando o menos possível por eles.

Ìrohìn – Qual o papel da sociedade civil brasileira em tudo isso?
Carlos Moore – A resposta se encontra no reforço imediato da capacidade de intervenção democrática tanto da sociedade civil brasileira quanto da africana. As forças democráticas dentro do Brasil, sejam negros ou brancos, devem se coligar para se constituir como um fato de contrapeso político. Caso não seja assim, corre-se o risco de que a história se repita e que, da imagem de um país “simpático, alegre, sambista e futeboleiro”, o Brasil vire, para a África, uma simples nova potência neocolonial. As multinacionais brasileiras terão de ser levadas a compreender que é de seu interesse, a longo prazo, contribuir para o bem-estar dos povos africanos, ao tempo que acumulam lucros nesse continente. E, também, terão de ser levadas a compreender que não é sustentável lucrar na África e ignorar a pobreza endêmica da África doméstica do Brasil. As interconexões entre essas duas realidades, embora não sejam tão visíveis agora, tenderão a aumentar no futuro próximo e haverá que ajudar as empresas multinacionais brasileiras a compreendê-las rapidamente. Ou seja, há que ajudar a avançar a causa da federalização da África, por uma parte, e ajudar a reduzir as desigualdades sociorraciais no Brasil, por outra. As multinacionais brasileiras podem contribuir positivamente em ambos os sentidos, o que contribuiria para simetrizar a relação com a África, ao tempo em que criaria um ambiente de confraternização democrática dentro do Brasil.

Ìrohìn – E quais são as possibilidades reais de a sociedade civil fazer frente a isso?
Carlos Moore – A sociedade civil terá de descobrir o modo de intervenção para ter um peso na política internacional do Brasil, pelo menos no que diz respeito à África. Vimos como a população negra dos Estados Unidos se organizou para constituir verdadeiros lobbies que forçaram o governo americano a recuar na África do Sul. Os Estados Unidos eram absolutamente favoráveis ao regime do apartheid, bem como apoiavam militar, econômica e politicamente todos os governos de segregação que se instalaram nesse país. Foi só a partir da mobilização e da ação da sociedade civil que isso começou a se modificar. Foi o pastor Leon Sullivan o primeiro a propor a política pelo fim de investimento na África do Sul, a qual ficou conhecida como “O Princípio Sullivan”. A partir daí, constituíram-se vários lobbies de negros americanos, dirigidos pela entidade Trans-Africa, que pressionaram o governo e ameaçaram as empresas multinacionais americanas de boicote caso continuassem a investir na África do Sul. Esse é um bom exemplo de intervenção eficaz e positiva da sociedade civil da diáspora para salvaguardar os interesses da sociedade civil africana. Ainda hoje, a sociedade civil africana está bastante enfraquecida. Há, portanto, que ajudá-la a crescer e se fortalecer. Os movimentos sociais africanos têm sido tão reprimidos pelas ditaduras de seus países que é somente nos últimos quinze anos que começa a haver uma reorganização da sociedade civil, de modo a essa ter uma vida independente. Há que ajudar e incentivar esse processo de ressurgimento da sociedade civil africana.

Ìrohìn – Quais as medidas concretas que o senhor sugeriria?
Carlos Moore – Em primeiro lugar, eu sugeriria que a sociedade civil constituísse um órgão incumbido especificamente de acompanhar e monitorar as relações Brasil-África. Isso se converte cada vez mais numa necessidade imperiosa. Em segundo lugar, a sociedade civil, através desse órgão, deve definir um código ético e político que deverá ser aplicado nas ações de monitoramento e pressão sobre as empresas brasileiras atuantes no continente africano. Esse código, que deverá ser discutido com as próprias empresas e com os órgãos de política exterior do Estado, deve ir ao encontro dos anseios da sociedade civil africana. Até agora ninguém tem exigido isso: que o Estado e as empresas multinacionais brasileiras se subscrevam a um código de conduta nos países africanos, de modo a explicitar o que farão e não farão ao tempo em que buscam seus espaços de lucro lá. A meu ver, essas são algumas das precondições para que o engajamento político e econômico brasileiro na África não caia na espiral do neoimperialismo, como já está acontecendo com as relações da China com os países desse continente.

Ìrohìn – Quais os fatores que poderiam influenciar numa evolução positiva no caso do Brasil, contrariamente ao que acontece com a China?
Carlos Moore – Ao contrário da China, da Índia, da Europa ou do Japão, a maioria da população brasileira tem suas origens no continente africano. Precisamente por isso, eu penso que é o dever do movimento social e da sociedade civil brasileira zelar para que a intervenção econômica do Brasil naquele continente leve em consideração os interesses das sociedades civis africanas e dos povos por elas representados, os quais não estão sendo defendidos nem mesmo pelos governos africanos na sua maioria. Esse é um dos grandes deveres da sociedade civil brasileira, bem como de todas as forças democráticas deste país: defender os interesses da sociedade civil africana. Todas as forças democráticas brasileiras devem reconhecer que a África foi almejada e esmagada historicamente, e que, portanto, não é possível que o Brasil siga contribuindo, como fez no passado escravista, para a regressão desse continente. É responsabilidade da sociedade civil democrática zelar para que a intervenção econômica do Brasil na África seja, senão benéfica para os povos africanos, pelo menos não catastrófica ou absolutamente negativa. Há que impedir que surjam relações neocolonialistas entre o Brasil e o continente africano.

Ìrohìn – Em poucas palavras, como o senhor definiria uma relação sã entre o Brasil e a África, baseada na cooperação?
Carlos Moore – De maneira sucinta, eu diria que um terreno sólido, saudável e mutuamente profícuo para se firmar uma cooperação entre o Brasil e o continente africano pode ser estabelecido mediante a definição das bases políticas e econômicas para uma parceria estratégica África-Brasil no século XXI. Trata-se de uma questão de vontade política por ambas as partes. Concretamente, o Brasil pode ajudar o continente africano a superar seus problemas crônicos através da concretização de um processo que conduza à unidade federal continental africana, coisa que o Brasil já tem feito consigo mesmo. Nessa ótica, o Brasil pode chegar, até mesmo, a se constituir na maior influência externa que empurre o continente africano à sua federalização imediata. Tal processo seria proveitoso para este Brasil que emerge como grande potência e precisa de aliados fortes para se defender. Por sua vez, a África, como um todo, pode ajudar o Brasil a resolver seu maior dilema interno: o problema sociorracial. A África pode ajudar este país a operar uma transição tranqüila para uma verdadeira democracia multirracial mediante o empoderamento político, econômico e social da maioria populacional brasileira, que é de ascendência africana. Isso é, de todos modos, inevitável historicamente. A África, também, precisa de um Brasil forte como aliado para se defender da legendária cobiça das grandes potências externas por seus recursos naturais. Assim, há lugar para uma parceria estratégica sã entre o Brasil e o continente africano em torno da definição de uma agenda comum de longo prazo, visando à eliminação dos grandes desequilíbrios internos e internacionais que se constituem, tanto para o Brasil quanto para a África, em perigosos fatores de ruptura e de conflitos violentos. Juntos, o Brasil e a África continental federalizada podem definir os termos de uma grande aliança para o futuro. Ao fazerem isso, o Brasil e uma futura África federalizada poderão constituir o centro de um novo bloco estratégico de países do Atlântico Sul. Tudo giraria em torno da elaboração de um grande projeto em nome da democratização simultânea e concatenada do âmbito internacional e do universo doméstico das nações que compõem a comunidade internacional. Essa seria a maior contribuição para a estabilização e a democratização da ordem internacional no século XXI, no sentido de uma descentralização multipolar que beneficie o planeta, apague as guerras e contribua para a felicidade dos povos.

* Esta entrevista apareceu em o Jornal Ìrohìn em outubro, 2007. Está disponível em

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