Brasil: "Estamos vivendo um golpe parlamentar, de classe, de gênero e de raça”
Para ministra, governo deve “matar por inanição” as políticas de inclusão de mulheres e negros.
Nilma Lino Gomes, professora e pedagoga, foi a primeira mulher negra a chefiar uma universidade pública no Brasil, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Saindo de Belo Horizonte, ela foi para Brasília, onde ocupou por um ano e meio o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Diretos Humanos. Nilma saiu com a entrada do governo de Michel Temer que extinguiu a pasta e formou uma equipe ministerial apenas de homens brancos. “A sociedade brasileira não está acostumada a viver com a diversidade nos lugares de poder”, afirma Nilma.
Conhecida como uma das maiores especialistas em políticas afirmativas, a ministra volta a Belo Horizonte e ao cargo de professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) nas próximas semanas.
Brasil de Fato - Como é ser uma mulher negra ocupando importantes cargos no Brasil?
Nilma Gomes - É sempre um grande desafio. Nós ainda somos muito poucos. A sociedade brasileira não está acostumada a viver com a diversidade nos lugares de poder, seja de gênero, seja de raça. Ainda lidamos com o racismo e um olhar que vê primeiro o nosso corpo, a nossa cor, o nosso gênero, antes de ver a nossa competência. E a luta é também para afirmar “olha, eu não preciso te provar que eu sou mais competente que as outras pessoas porque eu sou negra. Eu tenho que ser tratada com a mesma dignidade e direito das outras pessoas porque a diversidade faz parte do ser humano”. É sempre muito desafiador e nunca se pode estar sozinho. É bom nunca se distanciar das suas origens. Nunca ficar distante da comunidade negra, nunca ficar distante do movimento, da família. Porque isso nos dá sustentação subjetiva e emocional.
O que pode acontecer agora com as políticas para mulheres, direitos humanos e negros?
O governo Lula tinha um compromisso com os movimentos sociais, que ajudaram a construir uma plataforma política. O movimento negro sempre levou para o governo federal o entendimento de que é preciso ter políticas estruturais que perdurem, mesmo com a mudança na cabeça dos governos. O que estamos vivendo no Brasil neste momento é um golpe parlamentar, de classe, de gênero e de raça. Eu tenho muito medo de um grande retrocesso. E isso acontece não só com a retirada das políticas, mas também uma morte por inanição: não alimentar essas políticas, não abrir para participação social, não enfrentar os conflitos, não colocar orçamento.
Michel Temer escolheu apenas homens brancos para assumir os ministérios do seu governo e alguns dos ministros defenderam que foram escolhas por competência. Qual a sua opinião sobre isso?
Não há expectativa de reconhecimento da diversidade em um governo golpista. Seria muito se eles, na composição da equipe ministerial, tivessem considerado a diversidade. A equipe é um retrato da concepção que está por trás de cada governo. Um governo formado por homens, brancos, de uma mesma geração, heteronormativos, mesma classe, inclusive com trajetórias políticas complicadas na própria Justiça, já traz uma mensagem à população. Esconder isso na competência é um discurso que nós, mulheres e negros, escutamos muito. Por que? Uma das formas do racismo e do machismo se entranhar é fazer com que pensemos que, se não estamos lá, é por falta de competência. Se não estamos representados em determinado lugar, a culpa e a responsabilidade seria nossa e não de um sistema, mas esse é o tipo da justificativa que não convence e não tem sentido. A diversidade pode mudar e qualificar tanto as políticas como o mundo privado. Tenho alguns colegas pesquisadores que estudam empresas que fazem processo de inclusão, de responsabilidade social e de diversidade tem uma melhora tanto na produção, quanto no relacionamento, na criatividade. Isso mostra que a diversidade enriquece.
Como avalia a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e da Juventude, do qual você era ministra?
Eu considero um grande retrocesso. O governo ilegítimo já começou mostrando a que veio. Tivemos a fusão de outras pastas como o MDS e MDA, ou levar a cultura para dentro do MEC, mas extinção propriamente dita só aconteceu com o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e da Juventude. Há que se perguntar porque, não é? Esse ministério era a cara dos movimentos sociais na relação com o governo, trabalhando com sujeitos sociais que tinham uma coincidência de desigualdade, discriminação e exclusão. A existência desse ministério, das áreas em que foi dividido e das pautas dentro dele são respostas que o governo deu à sociedade. É uma sinalização muito negativa quando se extingue esse ministério e o coloca no Ministério da Justiça.
O que acontece com as políticas de mulheres, negros e direitos humanos agora sob o Ministério da Justiça?
Eu faço duas leituras. A primeira é que o governo passa a considerar que movimentos sociais são caso de segurança pública e têm que estar sob vigilância. A própria trajetória de quem ocupa hoje o Ministério da Justiça significa uma relação muito dura com os movimentos sociais. Em segundo, está a questão da cidadania. Durante a reforma administrativa brigamos muito para dizer que não adianta colocar indivíduos tão diferentes numa pasta chamada “cidadania”. Questionamos este conceito de cidadania, que funcionava como um guarda-chuva homogeneizador das grandes diferenças de desigualdade que esses grupos sofrem. E agora, o que está colocado nesse governo ilegítimo é uma cidadania genérica.