Tragédia no Mediterraneo
Hoje, vinte anos volvidos sobre a Declaração de Barcelona, assistimos ao completo falhanço dessa tentativa de antecipar e controlar os acontecimentos, com desastres humanitários sucessivos cada vez mais graves, que transformaram o Mediterrâneo, nas palavras do Papa, num autêntico cemitério.
No começo dos anos 80, quando comecei a trabalhar numa nova revista que ia então ser lançada em Portugal, o chefe de redação encarregou-me de escrever um artigo para o número 0 sobre o espectro, que já então se perfilava, de uma possível emigração em massa de África para a Europa.
Com a crescente dessimetria em termos de desenvolvimento económico entre as duas margens do Mediterrâneo, era mais que previsível que um dia se registasse uma corrente de grandes proporções rumo aos países europeus, para os quais estes não estavam minimamente preparados.
Partindo do princípio de que a melhor forma de suster essa emigração seria contribuir para o desenvolvimento dos países ribeirinhos, em 1995, na sequência da Declaração de Barcelona, foi lançada a chamada Parceria Euro-Mediterrânica, ou União Para o Mediterrâneo.
Articulada em torno de três grandes eixos - política e segurança, economia e finanças, sociedade e cultura – a Parceria colocava-se, entre outros, como grandes objetivos, a despoluição do Mediterrâneo e o desenvolvimento de energias alternativas, o fomento de pequenas e médias empresas conjuntas e ainda – percebe-se porquê! - a "organização da proteção civil contra catástrofes de origem natural e humana".
Hoje, vinte anos volvidos sobre a Declaração de Barcelona, assistimos ao completo falhanço dessa tentativa de antecipar e controlar os acontecimentos, com desastres humanitários sucessivos cada vez mais graves, que transformaram o Mediterrâneo, nas palavras do Papa, num autêntico cemitério.
O deste domingo, em que podem ter perdido a vida 700 pessoas, que se vêm juntar aos 4500 mortos dos últimos 15 meses, ultrapassa tudo, acrescentando uma dimensão de horror a uma situação de tragédia humanitária já de si insustentável.
Segundo alguns testemunhos, centenas de pessoas chegam a ser embarcadas em navios sem condições nem comando, apenas direcionadas à Europa em regime de piloto automático!
O que falhou e nos trouxe até aqui?
Falharam claramente as tentativas de suscitar um processo endógeno de desenvolvimento económico nos países do norte de África capaz de fixar populações e desencorajar a emigração.
Por outro lado, a crise económico-financeira e também política e moral da Europa, que se acentuou nos últimos anos, agravou tudo.
O centro decisório da UE passou da Comissão para o Conselho de Ministros, com a progressiva nacionalização das diferentes políticas e o eclipse das grandes diretivas comuns. Com a hegemonia das políticas neoliberais, praticamente desapareceu o conceito de solidariedade, instaurando-se, cada vez mais, o cada um por si. Mesmo quando há políticas conjuntas, os meios disponíveis são cada vez mais escassos.
Se é cada vez menos solidária para com os seus próprios cidadãos, como esperar que a Europa seja generosa para com os estranhos?
Veja-se o caso concreto das operações de salvamento e resgate no Mediterrâneo. Eram asseguradas, primeiro, pela marinha italiana, através da operação Mare Nostrum, com um custo mensal que rondava os 13 milhões de euros. Foi substituída pela operação europeia conjunta Triton, cujo orçamento não vai além de um terço disso!
Pior – as operações de salvamento são até desaconselhadas por uma série de países, designadamente a Grã-Bretanha, com o argumento de que a sua simples existência já seria um convite à emigração!
Decisões de política externa manifestamente erradas, cedendo uma e outra vez à pressão norte-americana, como o bombardeamento da Líbia e o afastamento de Kadafi - em que estiveram envolvidos o Reino Unido e a França- com a consequente desestabilização que se vive até hoje naquele país, contribuíram ainda mais para agravar a situação. Hoje em dia, é da Líbia que chegam mais de 90% dos migrantes.
Mais do que as próprias autoridades europeias, as diferentes redes ilegais de passadores que recrutam candidatos à emigração mostram elevado grau de coordenação e interajuda, confiantes de que o fluxo migratório não será contido e de que ganharão tanto mais quanto maiores forem as proibições.
Falta coordenação, faltam meios, falta generosidade, falta uma política conjunta de emigração.
Como reconhecia há dias o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schultz, em declarações à BBC, "precisamos de um sistema completamente novo de migração, a começar pela repartição do fardo entre todos os países membros, em que todos contribuam para fazer frente à questão dos refugiados. Hoje, 50% dos que chegam à Europa distribuem-se por apenas 5 dos 28 países membros da UE".
Debilitada pela crise e desmoralizada, terá a Europa forças e querer suficientes para recuperar a iniciativa e fazer face à tragédia?
* Carlos Fino, jornalista português, foi enviado especial e correspondente internacional da RTP - televisão pública portuguesa - em Moscou, Bruxelas e Washington, e correspondente de guerra em diversos conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Albânia, Oriente Médio e Iraque. Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012), cidade onde atualmente reside.
*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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