O confronto de ideias em Guiné Bissau depois das eleições gerais: que perspectivas?
Tendo em conta as perspectivas pós-eleitorais que o Governo eleito fará jus, achei pertinente abrir um debate, sem pretensão de ser guardião da verdade. As questões foram elaboradas e respondidas pelo autor do texto, em forma de entrevista. Espero que seja útil e contribua para o enfrentamento de alguns dilemas sociopolíticos atuais.
Tendo em conta as perspectivas pós-eleitorais que o Governo eleito fará jus, achei pertinente abrir um debate, sem pretensão de ser guardião da verdade. As questões foram elaboradas e respondidas pelo autor do texto, em forma de entrevista. Espero que seja útil e contribua para o enfrentamento de alguns dilemas sociopolíticos atuais.
Qual será o principal desafio do novo governo?
Qualquer que seja o resultado da eleição, o principal desafio é a questão militar, em termos estruturais e conjunturais. Enquanto prevalecer a predominância do poder militar em detrimento do poder civil legalmente constituído, o quadro permanecerá conflitoso.
Como recuperar o papel do Estado?
Pagamos um preço muito caro com sucessivos conflitos internos. Nunca conseguimos superar o nosso passado legado pela luta de libertação, mal gerido após a independência. Temos esse problema estrutural da mudança dos rumos. Há uma falta de confiança no Estado e nas suas diferentes relações com a elite militar. Por outro lado, é preciso acabar com a relação promiscua entre militares e políticos. Realço isso porque em todos os golpes de Estado houve a colaboração direta dos políticos, como estratégia para chegar o poder e manter supremacia na política nacional. Isso precisa acabar.
O que fazer para melhorar a relação civil-militar?
O governo tem que dar sinais claros de que pretende melhorar a vida socioeconômica dos militares. Em seguida, deixar claro de que o Estado de Direito deve ser respeitado. Fazer cumprir escrupulosamente a Constituição, punindo qualquer tentativa de golpe de Estado. Também é importante deixar claro que nós não estamos em nenhum estado de caos. É possível inverter o cenário atual. Por exemplo, o governo tem bons motivos para redirecionar as Forças Armadas para manutenção de paz, no quadro da ONU, como vinha sendo feito. É preciso mostrar a elite militar que ela continuará ser útil, reconhecida, estabelecer uma relação de confiança política. Isso é muito importante.
Mas há um preso alto a pagar pela reforma das FA. Quem vai assumir os custos?
O quadro macroeconômico da Guiné-Bissau é frágil, como as crises sociais dão a entender. O pagamento de salários e gastos públicos depende de recursos de parceiros internacionais, como acontece no setor da educação e da saúde, entre outros setores. Por outro lado, o governo deve assumir cota parte de responsabilidade. Há coisas que, apesar de não serem simples, podem ser feitas. Esse compromisso pode ser assumido racionalizando as despesas com a máquina governamental. Na Guiné-Bissau se gasta muito, desnecessariamente, com cargos políticos. Basta ver o número de ministérios e secretarias de Estado. Isso não ajuda na qualidade do funcionalismo público. É insustentável, como todo mundo sabe. A política de clientela tem a ver com isso.
O que governo deve fazer para retomar a confiança nacional e internacional?
A questão mais importante é diminuir níveis de pobreza e da desigualdade existente atualmente na Guiné-Bissau. A Guiné-Bissau perdeu posições em todos os setores ao longo dos 40 anos. Mas repito: é preciso transformar as Forças Armadas em forças de desenvolvimento. Temos esse problema estrutural de mudança. É preciso ter um plano claro sobre esse assunto. Não se pode continuar com atual estrutura militar. A retomada da confiança nacional e internacional terá um ganho muito grande na governabilidade se o governo for eficiente na definição e redefinição de diretrizes e prioridades e caminhos a serem adotados na prática, considerando a capacidade interna da Guiné-Bissau.
O problema estrutural de mudança passa pela retomada do crescimento econômico e diminuição da pobreza. É isso?
Há dois aspectos que precisam ser levadas em consideração, muito importantes, e que determinará o sucesso da política nacional do próximo governo. Primeiro, é preciso reforçar a política industrial, particularmente nos setores estratégicos da economia. O aumento da produção terá um impacto forte no financiamento de políticas públicas de desenvolvimento. Segundo, o desenvolvimento passa pela valorização de quadros nacionais, eles que planejam políticas. O problema é que o país não valoriza seus quadros. Eles estão nas agências internacionais de desenvolvimento social e econômico da ONU, quando poderiam estar a serviço do país, ajudando a melhorar os indicadores.
Qual seria a solução para esse problema?
É hora de convocar todos os quadros nacionais, incluindo a diáspora, para se recuperar do atraso. Até hoje, nenhum governante teve ousadia de assumir esse compromisso. É bom que fique claro: a forma como o Estado planeja o desenvolvimento e cria mecanismos de financiamento e sustentabilidade desse desenvolvimento depende de quadros nacionais. O próximo governo precisa reconhecer o papel de quadros nacionais.
Esse é o ponto central?
Sim. Estamos vivendo um momento em que o conhecimento é riqueza e poder. Se próximo governo eleito não se comprometer com a competência, terá problema.
Se você pudesse escolher um desafio do próximo governo para resolver, qual seria?
A questão da credibilidade é outro grande desafio. Isso porque o país é excessivamente dependente de recursos externos das agências internacionais. A credibilidade e a previsibilidade de políticas são questões básicas. Há um claro falta de credibilidade.
A reforma na Função Pública que, dizem, estimulará a economia e o Estado como um todo. Qual é a sua visão Ricardino?
Não vejo como reformar o funcionalismo público e o Estado como um todo sem encarar a questão das Forças Armadas. Isso é fundamental. Porém, essa reforma deve ser vista numa perspectiva relacional de forma que outros setores serão considerados na agenda.
Quais setores?
É preciso olhar as políticas públicas numa perspectiva relacional. O setor da educação, por exemplo, que é um setor estratégico porque as reformas e transformações dependem dele. Esse é um setor importante, e Guiné tem diversas personalidades com reconhecimento nacional e internacional na área. Por exemplo, não escondo minha admiração pelo Dr. Geraldo Martins no Projeto Firkidja, bem como trabalho evidenciado pelo mesmo no Ministério de Educação, como ministro. Sua experiência internacional reforça sua importância no estabelecimento de um novo plano nacional de educação. Citei apenas o Geraldo, mas há outros com reconhecimento em outras áreas.
A Guiné precisa de “gestores internacionais” para ajudar organizar o Estado?
Essa proposta, lançada recentemente, tem muitos adeptos internacionais e nacionais. Ela vai vincar se o novo governo não conseguir satisfazer as expectativas e os compromissos assumidos no setor da educação, da saúde, da economia e da infraestrutura. Não acredito que essa lógica seja o caminho. O desenvolvimento é um processo endógeno, baseado no trabalho duro. Mas isso não significa que os “gestores internacionais” são dispensáveis. O governo pode canalizar esse apoio onde o Estado mais precisa. Não dá para colocar os “peritos” no lugar de Estado. Isso é complicado...
Falamos de vários assuntos, mas ainda não tocamos no setor privado. O que poderá ser feito para garantir a participação dos empresários na Guiné-Bissau?
O Estado precisa incentivar os empresários nacionais e estimular o investimento externo, ao mesmo tempo. O novo governo precisa dar sinais claros de que respeita o setor privado. Isso passa também pelo aumento da produtividade interna e flexibilização de impostos para reforçar o tecido empresarial. Portanto, a boa governação ajuda minimizar essas questões. Espero que o próximo governo ultrapasse esse desafio, de forma inteligente, na relação com o setor privado. O governo é responsável para isso.
O que o novo governo deve fazer para retomar a cooperação com a comunidade internacional, particularmente com os países da CPLP?
Acho que é necessário ultrapassar o passado recente, estabelecer uma relação mais consistente. Não vejo motivos para não reatar a cooperação. É o desafio político que o próximo governo terá que resolver, com a agenda de reformas. Somos um país das oportunidades e potencialidades, precisamos aumentar a nossa vantagem comparativa cooperando com países da CPLP, da CDEAU e da EU. Isso passa por um novo modelo de política externa, estabelecer uma estratégia de longo prazo capaz de proporcionar um compromisso com o desenvolvimento com menos desigualdade social para todos os guineenses. Existe um grande desafio de desenvolvimento social no nosso país. Nesse sentido, a cooperação e o investimento externo são importantes, negociando com esses países. Não há nenhum risco nisso, tudo vai depender da atitude da elite governamental.
Levando em conta algumas declarações, qual é sua visão sobre a questão étnica?
Acho um exagero dizer que o problema da Guiné são as etnias. Mas que fique claro que temos esse desafio. Acho que Amílcar Cabral não teve tempo para resolver definitivamente essa questão. Por que isso que estou falando é revelado por Cabral na distinção que ele faz entre noção de povo e população, com objetivo de articular a unidade e nos explicam o porquê do crescente interesse por elas nos anos 60, em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Para Amílcar Cabral, a noção de povo depende de momento histórico que vive o país. População é todo o mundo, mas o povo deve ser definido em relação com a sua própria história. Assim, pertence ao nosso povo aquele que deseja aquilo que correspondia à necessidade fundamental da história dos dois países: acabar com a dominação estrangeira. Acrescentava ele que após a independência, ao contrário do que muitos acreditavam, a construção da unidade não seria fácil. Assim, para Cabral, os grupos étnicos identificam-se com o “povo”, desde que compartilhassem o projeto de unificação. Hoje, esse projeto passa pelo desenvolvimento enquanto fator de cultura. Isto é, considerar as nossas especificidades sem desconsiderar aquilo que a humanidade produziu em temos de conhecimento, ciência, tecnologia/ inovação. São indispensáveis.
Por que houve essa fragmentação da consciência nacional?
Os sucessivos governos cometeram um grave erro em considerar as etnias inimigas da unidade nacional e do desenvolvimento. Mas Amílcar Cabral defendia a importância das etnias para a construção da nação. Outro erro das elites pós-independência foi a forma como a independência foi conduzida, na base de clientelismo e nepotismo. Tudo isso tem a ver com o peso excessivo do militarismo. O lema é claro: ou você é de partido ou você é contra partido, mesmo com as limitações dos dirigentes que todos nós sabemos. Como dizia Carlos Lopes há mais de vinte anos, “na Guiné-Bissau, via de regra, é o partido, pelo seu controle, quem deve zelar pelo rigor da consecução prática dos fins que atribui ao Estado, mas que também são seus. O Estado passou para o controle das cúpulas do partido, mas as atividades deste último não se terão diluído no Estado”. É uma questão que continua prejudicando a Guiné-Bissau. É preciso resolver essa questão, deixar claro que o Estado não se confunde com partido. Um dos problemas com as Forças Armadas tem sua origem nessa percepção errada de Estado.
É possível garantir essa integração dos grupos étnicos no âmbito de Estado-nação, sem desconsiderar as especificidades, como senhor sugere?
A Europa tentou resolver esse problema, não é um problema apenas africano. O caminho escolhido foi a economia do mercado. Desde 1980, Carlos Lopes já colocava a questão nacional em África como elemento fundamental para a mudança econômica, social, política e cultural que, por sua vez poderá se traduzir numa catarse para a projeção de um modelo alternativo. Segundo ele, a questão da construção da nação em África tem de se traduzir a expressão e demandas do mercado, por meio da consolidação do mercado nacional na atual conjuntura da globalização. O incipiente mercado nacional é principal obstáculo para a construção da nação. Tomando o caso guineense, o mercado serviria como mecanismo usado para minimizar tensões por meio da competição pelos recursos disponíveis no mercado de trabalho, de educação, de moradia, como consumidores e produtores de bens e serviços no processo de integração nacional. Nesse sentido, para Carlos Lopes, uma ação ideológica, entendida como projeto, assume um papel central para forjar o afro-otimismo. Estou desse lado. Respondendo diretamente sua pergunta, acredito que é possível construir o Estado sem desconsiderar as especificidades do país. É preciso ver o Estado enquanto fator de cultura, respeitando as nossas diferenças sem desconsiderar aquilo que a humanidade produziu em termos de conhecimento. Essa é a ideia de Amílcar Cabral, que precisa ser recuperada nas estratégias de reconstrução de Estado e políticas de desenvolvimento.
É possível imaginar um programa de investigação nacional no atual quadro de pobreza e conflitos internos capaz de garantir a reconstrução de Estado guineense?
Para ser sincero, eu estou desanimado com estado atual do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP-Bissau). É bom lembrar que o INEP foi fundado em 1984 por Carlos Lopes, entre outros investigadores ousados. Mesmo tendo começado sua atividade científica e literária um pouco mais tarde, a partir dos anos de 1984, se comparada com ex-colônias portuguesas como o caso de Cabo Verde e Angola, o INEP conseguiu produzir vasta literatura abordando diversos temas de interesse nacional como a construção do Estado-nação, o desenvolvimento de temas como democracia, tornando-se, a partir dos anos 80, o maior centro de investigação em ciências sociais da África da língua portuguesa. É preciso revalorizar o INEP. Não apenas na produção do conhecimento e estratégias de desenvolvimento nacional, como também na área de ensino e prevenção de conflitos. É um espaço importante que o próximo governo deve priorizar. O funcionamento de Estado e da administração depende do funcionamento adequado do INEP. É preciso ter essa visão clara para redução de desperdícios de potencialidades nacionais. O INEP faz parte de solução. Eu acredito nessa instituição.
Muito obrigado, caro leitor. Espero contar com a sua participação no confronto das ideias sobre ações que o próximo governo deverá levar e tomar em consideração.
Um país se faz com ideias!
*Ricardino pode ser encontrado em [email protected]
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