Numa época em que se aproxima a realização de eleições em Cabo Verde e que uma mulher se apresenta como candidata a chefe do executivo, é necessário debater seriamente sobre a relevância de confiar tarefas de liderança às mulheres. Infelizmente, um dos várias questionamentos que se levantam para desacreditar a capacidade da mulher em ocupar cargos de liderança política é a questão da competência. No entanto, esta mesma equação quase nunca é aplicada quando quem precisa de apoio é um homem. É uma série de estereótipos estruturais infundados para perpetuar a invisibilidade da mulher na participação política e nos cargos de decisão. As mulheres devem ser apoiadas e encorajadas precisamente por serem mulheres.
A questão do acesso de mulheres à cargos de decisão ou funções políticas mexe com o status quo dominante e com privilégios historicamente estabelecidos. Para se entender esta problemática, importa pôr os conceitos em ordem. Em primeiro lugar, convém reter que, enquanto conceito, quando falo de mulher não me refiro ao sexo biológico (fêmea/feminino) mas sim a uma categoria social a braços com uma relação de desigualdade imposta e aceite como natural tendo como base o sexo biológico. Portanto, falo da falta de oportunidades, da discriminação, da invisibilidade e da presumível igualdade entre homens e mulheres.
Porquê incomoda tanto apoiar mulheres para os cargos de liderança e decisão política, ou outros no aparelho de Estado, em detrimento de homens? Para se responder a esta questão, é preciso atentar pela carga preconceituosa que ela encerra. Para já, o primeiro argumento nesse incómodo é tributar um eventual apoio à competência das mulheres. Ou seja, quando se entender que uma mulher é competente, recebe o apoio de que precisa. No entanto, esta mesma equação quase nunca é aplicada quando quem precisa de apoio é um homem. Não quero com isto dizer que a competência não seja relevante, mas alguma vez o leitor já pensou que só às mulheres se exige como condição primeira e basilar de participação nos cargos a competência, e aos homens essa questão nunca se coloca? E mais: já pensaram as próprias mulheres que só ocupam os cargos que ocupam porque um dia outras mulheres defenderam a sua “causa”? Sabiam que outrora muitas mulheres defenderam e ainda hoje defendem que as mulheres podem ser donas das suas escolhas, e não tributárias das escolhas dos outros? Que as mulheres podem e devem ocupar cargos de decisão, de liderança política, de participação partidária e outros fora do espaço doméstico? Defenderam e defendem que as mulheres podem livremente optar por serem domésticas, trabalhando no cuidado dos outros, sem imposição de ninguém, mesmo não sendo estas actividades reconhecidas como trabalho porque não são remuneradas.
O segundo argumento procura invisibilizar as mulheres com a célebre e estafada frase: não apoio uma mulher para certos cargos de responsabilidade só porque é “mulher”. Ora, quando alguém faz esta afirmação está a referir-se ao sexo biológico, à fêmea, ao feminino. Porém, na minha opinião, uma mulher deve ser apoiada precisamente porque é mulher, ou seja, uma categoria social a braços com uma relação de desigualdade imposta e aceite como natural tendo como base o sexo biológico. Veja, caro leitor, uma mulher que trabalha 8 horas diárias na empresa, na função pública, nos mercados, em casa e em outros espaços, é aquela a quem ainda se incumbe, de regresso à casa, realizar tarefas domésticas e cuidar dos outros – maridos/companheiros, filhos/as, outros familiares e dependentes, etc. –, sendo a primeira a se levantar e a última a se deitar. É esta mulher que ainda procura tempo e disponibilidade para participar das actividades comunitárias e associativas. Entendo que quem desempenha estes papéis não precisa pedir ou mesmo mendigar apoios de outras mulheres e dos homens para participar e conquistar um espaço na esfera pública. Isto porque já conquistou esses apoios por mérito e trabalho pessoal.
Porque deve o país apoiar as mulheres a participarem da esfera pública, ou seja, terem acesso aos cargos de liderança e decisão política?
As mulheres enfrentam vários obstáculos para poderem participar da esfera pública.
Em vários lugares do mundo, muitas mulheres, por razões de legislação, não podem participar da esfera pública. Este é, a meu ver, o primeiro e grande obstáculo. Ainda bem que não é o caso de Cabo Verde, porque aqui várias mulheres defenderam, durante o processo de independência e pós-independência, oportunidades para as mulheres participarem da esfera pública, embora ainda persistam condições objectivas, subjectivas, sociais e culturais impedindo a participação das mulheres nessas esferas no país.
Um segundo obstáculo é de ordem social. Como é que, reservando uma série infinita de actividades diárias, muitas delas marginais, a mulher terá oportunidade para participar da vida política? Dados oficiais mostram que as mulheres realizam 62% das actividades remuneradas (vulgo trabalho pago) e actividades não remuneradas (vulgo, trabalho doméstico, cuidado com os filhos e demais dependentes, etc.), contrariamente aos homens que realizam apenas 38% dessas actividades.
Um terceiro obstáculo é de ordem cultural. Os estereótipos de género são reais e estão aí enquanto ideias pré-estabelecidas que situam mulheres e homens em planos diferenciados. Por um lado, ainda uns pensam que o lugar da mulher não é na esfera pública. Por outro lado, outros pensam que a mulher consegue/não consegue, alcança/não alcança determinadas posições e cargos somente pelas escolhas ou decisões que individualmente toma. Deixando transparecer que os condicionalismos sociais, culturais e mentais foram já ultrapassadas. Porém, os factos mostram o contrário.
Um quarto obstáculo é o silêncio cúmplice da sociedade. Onde estão a/os activistas e a/os defensora/es da igualdade e equidade de género? Será que, de facto, defendem a causa do género em todas as ocasiões? Ou sentem receio de serem apelidados de sexistas? Será que passaram a fazer coro com aqueles que argumentam que em Cabo Verde as mulheres têm iguais oportunidades que os homens? Será que se vão esconder atrás das armadilhas da igualdade, dos partidos ou do silêncio por algum tempo, e passando a tempestade, voltem a hastear a bandeira da igualdade e promoção das mulheres na esfera pública? É preciso assumir que as coisas não vão bem neste processo e que é necessário abraçar a causa da igualdade em todo o tempo.
Penso que é preciso assumir os discursos e passá-los para a prática. Porque a inércia e o silêncio da sociedade só contribuirá, com certeza, para em 2040, com muito optimismo, Cabo Verde atinja a paridade de género na política, ou seja, pelo menos até 40% de participação efectiva das mulheres na esfera pública. E isto é mau para o país, para as mulheres e para os homens. Na verdade, a permanecer a presente situação ninguém ganha.
E como é oportuno e fundamental ganhar este processo em prol do desenvolvimento equilibrado do país, um papel especial fica reservado às mulheres. Estas não devem esperar que os homens ou as instituições internacionais venham carregar esta bandeira, ou seja, a bandeira da igualdade efectiva – oportunidades, escolhas, decisões – entre homens e mulheres.
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*Carla Carvalho, socióloga, docente na Universidade de Cabo Verde e doutoranda em Estudos de Desenvolvimento no ISEG/Universidade de Lisboa, especialista em género e pesquisadora na área do género e desenvolvimento.
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