Esta semana celebrou-se na Guiné-Bissau o Dia dos Heróis Nacionais, em honra de Amílcar Cabral. No entanto, para além do profundo e precioso legado de Cabral, existem também outros heróis guineenses à espera de serem reencontrados.
O dia 20 de Janeiro foi feriado na Guiné-Bissau, tendo sido instituído como o Dia dos Heróis Nacionais. Nesse dia, todos os anos, há rituais comemorativos que são cumpridos ao mais alto nível, em honra da memória de Amílcar Cabral (1924-1973): o mentor da libertação do país do jugo imperialista e do colonialismo português.
Um homem visionário cujos ensinamentos trespassaram em muito as fronteiras regionais africanas de influência, tendo-se imortalizado para além da espuma do tempo. Hoje em dia é uma referência comum para quem se interessa em compreender as dinâmicas de resistência e dominação. Mais que um herói de convicções, Cabral foi e continua a ser um dos pilares da afirmação identitária na Guiné-Bissau. No entanto, para além do seu profundo e precioso legado existem também outros heróis guineenses à espera de serem reencontrados. Não me refiro a personagens físicas cujas acções valorosas ou obras influentes merecerão certamente a pena prezar e recordar. Quero especificamente referir-me aos “outros” heróis não-personificados da Guiné-Bissau. Aos heróis incorpóreos e intangíveis, ou por outras palavras, aquilo que denominei por heróis imateriais.
(1) Todas as sociedades são detentoras de espaços referenciais que estão intrinsecamente relacionados com a forma de ser e estar dos seus cidadãos e, na Guiné-Bissau, algumas Áreas Protegidas vão muito para além de serem simples redutos de preservação de espécies e ecossistemas. São também centros de preservação histórica, e de promoção de saberes e usos tradicionais por parte das comunidades humanas que aí habitam e estão inseridas. Por exemplo, o Parque Nacional de Cantanhez no sul do país, foi per se um espaço de excelência de resistência aquando o conflito armado durante a guerra colonial ou de libertação. Foi a intervenção das pessoas, mas foi também aquele espaço repleto de unicidade nas suas dimensões culturais e ambientais que permitiram fazer frente a um regime opressivo. Esse espaço tornou-se assim, na minha óptica, um herói imaterial do imaginário colectivo guineense.
(2) Um outro espaço que me parece ter sido já também apropriado como herói, por todo o seu cunho e peso histórico é o antigo forte e a cidade de Cacheu, na região norte da Guiné-Bissau, por toda a sua indissociável ligação ao tráfico de seres humanos como escravos. Não é só a importância arquitectónica do lugar, é toda a memória vital do que ali ocorreu. Não é à toa, e bem, que há planos para a materialização de um memorial dedicado a todos aqueles que foram escravizados. Esse espaço é assim também heróico em honra dos que ali pereceram e tombaram, ou alguém tem dúvidas que a ilha de Gorée no Senegal, não tenha também a sua faceta de imaterialidade mesmo sendo património da Humanidade?
(3) Também na parte insular do país, no Arquipélago dos Bijagós, existem espaços ou lugares notáveis em termos de reconhecido mérito na comunidade imaginada guineense. Falo particularmente de Bolama a capital do país até 1941, altura em que a capital foi transferida para Bissau. O património edificado de Bolama está suspenso aguardando uma reabilitação imprescindível, mas as suas tradições e as histórias de vida daqueles que por lá foram vivendo estão ainda à espera de serem escritas e partilhadas. Mas falo também de Inorei no topo norte da ilha “rebelde” de Canhabaque por se ter recusado até 1936 em pagar o vil “imposto de palhota” e, por consequentemente ter sido palco das lutas de imposição militar e coloniais também designadas por campanhas de “pacificação” .
(4) Depois deste pequeno périplo efectuado pelos espaços e lugares imateriais guineenses que encerram história(s) sobretudo de coragem é igualmente importante olhar agora para outro tipo de proezas. De acordo com o Ethnologue (www.ethnologue.com) a Guiné-Bissau possui (para além da língua oficial e da língua franca) 20 línguas nativas das quais 3 estão ameaçadas, 1 está moribunda (i.e. Badyara) e outra está quase extinta (i.e.: Cassanga) sendo falada somente por alguns idosos que ainda sobrevivem. Numa época de globalização neoliberal onde as línguas dominantes do Norte se impõem falar uma língua nativa é um acto heróico. Porquê? Porque se trata de resistir e não sucumbir à assimiliação forçada imposta por modelos estrangeiros que são frequentemente perniciosos. Parafraseando o linguista James Crawford: ”Quando uma língua morre o mundo perde quatro grandes coisas: diversidade linguística, diversidade intelectual, diversidade cultural e diversidade identitária,”.
(5) E este ponto anterior conduz-nos inevitavelmente à diversidade cultural e a todo um património intangível que o povo guineense possui que passa desde logo pelas suas músicas tradicionais, as dança, as representações e performances, pelo seu artesanato, pelos seus mitos, lendas e histórias e que por isso o tornam múltiplo e único. E os guineenses que querem abraçar a modernidade mas que se pretendem manter leais à sua diversidade identitária cultural são também corajosos, ou heróis, nestes tempos de pós-modernidade, porque acima de tudo estão a desafiar o status quo global de privilégios ocidentais obrigando a que do outro lado se faça uma reflexão sobre o(s) relativismo(s) culturais e a inclusividade social.
Haverá certamente muitos mais e outros tantos heróis imateriais na Guiné-Bissau que não foram aqui elencados e que estão à espera de serem reconhecidos, inventariados, e divulgados, mas tendo em mente que esse processo deve ser conduzido de e para os próprios guineenses.
Notas
Foto: Parque Nacional de Cantanhez, Iemberém, Guiné-Bissau. 2015. Florestas sub-húmidas que albergam uma grande diversidade de espécies ameaçadas incluindo os chimpanzés ocidentais (Pan troglodytes verus) e que foram simultaneamente refúgio e campo de batalha da resistência guineense contra a imposição colonial portuguesa.
* Rui M. Sá é professor Universitário
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