Não escolhi estar na educação à toa, trabalhar a favor da diversidade e da equidade social e racial na escola foi uma escolha intencional e política, cuidadosamente educada e instruída pelos livros, mas sobretudo pelo exemplo e militância da minha mãe Maria Abadia Ferreira da Costa.
Não escolhi estar na educação à toa, trabalhar a favor da diversidade e da equidade social e racial na escola foi uma escolha intencional e política, cuidadosamente educada e instruída pelos livros, mas sobretudo pelo exemplo e militância da minha mãe Maria Abadia Ferreira da Costa.
Minha maior motivação dentre várias, foi perceber que a escola era para mim e é para outras crianças negras, um ambiente hostil que em muitos momentos por meio dos alunos, funcionários e professores impõe o racismo, a discriminação e o preconceito as milhares de crianças que ali se instruem, seja no âmbito da escola pública e/ou das escolas particulares.
Durante minha infância, passei por longos períodos e cotidianamente por preconceito e discriminação, tudo me colocava em desvantagem, até nos momentos em que eu tirava boas notas estava em desvantagem. A professora ou o professor inventava desculpas para justificar pejorativamente “a moreninha que fugia a regra”, e que por ser inteligente tinha alma branca. As várias experiências que tive na escola me conduziam a diversos questionamentos sobre minha existência e o porquê que tudo isto acontecia.
Sempre me vinha a cabeça as seguintes indagações: – “Mas se as pessoas da minha sala são da cor branca e eu da cor preta, fica mais fácil da professora me ver, e porque a professora não me vê e não me escuta quando eu falo? Nossa sou tão preta desse jeito e mesmo assim essa professora não me vê? Por que ela sempre me confunde com outras negras, somos diferentes, eu uso tranças, minha amiga alisa o cabelo”. Eu era invisível dentro da sala de aula, principalmente nas situações de violência simbólica quando me submetiam a invisibilidade na minha própria identidade e pertencimento. Por outro lado, em muitos momentos me tornavam visível para as chacotas e piadas que buscavam desqualificar meu fenótipo, meus cabelos trançados, minha roupa colorida, meus traços culturais que serviam para as brincadeiras de mal gosto e rejeição.
Até que um dia eu passei por humilhação muito grande diante de todos os colegas de sala. Fiz um exercício na lousa e acertei, mas a professora não havia acreditado que eu sabia de fato fazer, foi até minha carteira pegou minha folha com todos os exercícios, rasgou minha folha e a jogou no lixo, argumentando que eu tinha errado três tópicos de equação e por isso eu não era inteligente para matemática. Detalhe, a folha que ela rasgou continha de 15 tópicos equação, e eu havia errado somente 3 dos exercícios.
Cheguei em casa aos prantos e contei para minha mãe. Na época, eu tinha 12 anos. Foi neste dia que minha mãe mudou minha vida, contei a ela tudo o que havia me acontecido naqueles meses na escola, justificando que não havia contado nada antes porque achava que poderia superar, mas que não aguentava mais a dor que a situação havia me causado, além dos xingamentos que passei a escutar na perua ao voltar para casa. Após me escutar minha mãe chorou comigo e dizendo que a consciência é algo que devemos exercitar. Assim sendo, penso que ela exercitou sua consciência, pois em dois dias minha mãe mobilizou familiares e outros mães de alunos negros que se reuniram na escola para conversar com o diretor. Lembro dessa passagem e me emociono, porque em dois dias minha mãe estava com uma carta do então juiz da infância de São José de Rio Preto, que exigia retratação por parte da escola, do diretor e da professora. Naquele dia fui iniciada pela minha mãe no movimento negro e no movimento de mulheres negras. Minha maior lição foi aprender que não podemos ficar calados mediante uma injustiça, aprendi isso na prática, exercitando a justiça tal como diz a frase de Desmond Tutu: “Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”.
Assim, naquele dia, a escola foi obrigada a ministrar palestras sobre a cultura e a história dos africanos e seus descendentes no Brasil e na África. A solicitação das mães negras em sua maioria e a demanda do movimento negro local foi obrigatoriamente atendida, pude ver minha mãe e outras mães falando sobre a importância da cultura negra para o desenvolvimento do país e de como nossos antepassados sofreram neste lugar.
Diante desse fato é que passei a entender melhor as atuações e ações do movimento negro. Sempre acompanhei minha mãe, mas não entendia muito bem, depois dessa situação em sala de aula fui me atentando para o que era ser negra, para além da cor da pele. E aos 15 anos comecei a atuar politicamente como jovem-mulher-negra, na esfera da consciência, do refletir, do agir, do posicionamento político, participando ativamente dos movimentos sociais: da juventude estudantil, da juventude negra, de mulheres, mulheres negras, dos movimentos da cultura negra que sempre me envolviam para militar. E nesses contextos minha mãe continuou mudando minha vida, pois ela sempre nos acompanhava nas atividades e participava das discussões. Até hoje ela é ativa em nossas vidas e nos ensina pelo exemplo do que é ser mulher, mãe e negra.
Esse é meu relato em agradecimento a minha Rainha Mãe Bá, pelo despertar da nossa consciência, pelos ensinamentos aprendidos com a vida, com as mais velhas da família, pela educação transmitida por meio da fé, pela disposição em ensinar com amor, paciência e dedicação. Ofereço esse agradecimento para as mulheres de minha família! Dedico esse texto para todas as mães que deixam fluir a força dos nossos ancestrais! Ubuntu!
*M.ª Tatiane Pereira de Souza é pedagoga, mestre em Educação pela UFSCar, doutoranda em Ciências Sociais pela UNESP e colaborou para Pragmatismo Político
*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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