De sujeito a ator.

Apropriação dos valores afrodescendentes como forma de contenção da radicalidade do povo negro

Neste artigo, Viviane Silva discute de forma apaixonada os descaminhos da apropriação dos valores negros como uma estratégia de desarticulação do povo negro brasileiro, ela dá especial atenção à questão abolicionista em São Paulo e o exemplo do quilombo de Jabaquara. Em seguida, ela associa o seu argumento a uma velha questão conhecida dos afro-brasileiros, que é a estereotipação da imagem da mulher negra, em especial na novela das oito, que tem veiculação nacional e quiçá internacional.

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Em seu livro “A encruzilhada dos orixás: problemas e dilemas do negro brasileiro”, Clóvis Moura conta-nos a história do quilombo do Jabaquara em São Paulo. A partir da análise da forma como se constituiu esse quilombo, como fruto/produto (?) direto da ação dos abolicionistas que surgem e se organizam imediatamente após a intensa quilombagem da fase proto-abolicionista, em que tem-se negros/as escravizados/as, agindo e reagindo individual e/ou coletivamente contra a dominação e discriminação escravocrata a partir/através de fugas, assassinatos, pilhagens e em parceria com os indígenas, destruição de forcas – emblemas máximos da execução da (in) justiça colonial.

Essa camada liberal urbana se organiza em torno da questão abolicionista sem contudo contar com a efetiva participação dos negros/as, invisibilizando a intensa ação/mobilização por estes empreendidas.
Tendo um início radical e fato libertário, o movimento abolicionista em São Paulo passou a assumir um caráter mais conciliador(?).

Da atitude inicial de libertar os escravos – os seus próprios inclusive - e facilitar a fuga de outros tantos que juntamente com outros fugitivos que ali chegavam, ao quilombo do Jabaquara, os líderes do movimento abolicionista, percebendo que a economia agrária iniciava a contratação de mão-de-obra livre, propõe aos fazendeiros a contratação de escravos /as fugitivos/as de outras fazendas pelo valor de 400 réis por dia, passando então a intermediar a contratação dos /as negros ex-escravizados dos quilombo.
Essa proposta satisfez plenamente aos fazendeiros. Quando da efetiva abolição, São Paulo já tinha 1/3 da sua população negra empregada como trabalhadores livres, isto porque, o valor pago a esses trabalhadores correspondia a apenas 1/8 da sua capacidade produtiva.

Percebemos então, o quão estratégico foi o quilombo do Jabaquara nesse processo, configurando-se, na verdade, como mais um instrumento de dominação da população negra, constituindo-se a liberdade vivenciada nesse quilombo “apenas numa cela mais espaçosa” como foi pensado e registrado por grafiteiros nos muros de Recife. Os abolicionistas de São Paulo colocaram os/as negros/as no lugar da passividade. tutelaram e passaram a pleitear a liberdade para os/as mesmos em seu nome, e, o que conquistaram (?) e lhes entregaram foi na verdade uma nova forma de dominação e exploração.

Apropriaram-se do seu discurso, construíram seu refúgio, elegeram seu líder e, proporcionando uma ilusória e transitória liberdade, conformaram-nos/as a um novo lugar para vivenciar uma nova forma da antiga conhecida não-cidadania, sob a ilusão de uma conquista efetiva. De sujeitos ativos do proto-abolicionismo, e mais que isso, de sujeitos de suas histórias, idealizadores e construtores de um novo e radical projeto de vida , estes negros e negras reféns dos bem intencionados e comprometidos abolicionistas foram feitos reduzidos a passivos atores, atuando, sem dúvidas, mas na verdade, desenvolvendo suas vidas de acordo com o script escrito por outro.

Sinto (?) uma estranha sensação de déjavu quando hoje, vejo a população negra representada pela mídia brasileira.
Hoje, tendo-nos sido garantida a liberdade formal, lutamos para que a mesma se processe de fato pela garantia de uma cidadania plena que passa pelo reconhecimento de nossa identidade: Não somos mulatos, nem frutos da mistura harmônica de três raças. Somos negros/as e essa identidade racial é fortalecida pela assumpção e valorização de nossa estética.

Já cantamos num passado não muito distante que “negro ´’e lindo”, mais recentemente também cantamos “respeitem meus cabelos, brancos/ cabelo vem da África junto com meu santo.” Hoje lutamos por uma justa representação na mídia.
Entendemos a mídia como um importante aparelho com um duplo aspecto: cumpre um papel na disseminação e manutenção das ideologias de dominação de uma sociedade a medida que publiciza a partir de diversos meios de expressão os discursos sobre como essa sociedade foi, é, ou deveria ser. Exerce também um profundo impacto no processo de construção de identidades podendo contribuir para a criação e fortalecimento de identidades saudáveis ou para de maneira sofisticadamene velada ou vergonhasamente explícita levar os sujeitos ao não reconhecimento de si mesmos que pode levar a negação de sua identidade.

Não admitimos que a população negra esteja subrepresentada ou representada de forma estereotipadas. Pressionamos, denunciamos, nos revoltamos. Em artigos, textos, livros, blogs, sites, nos insurgimos.
E hoje, precisamente nos anos de 2010/2011, assistimos a novela global Araguaia e vemos três personagens negras. Jovens mulheres belíssimas, com seus lindos cabelos crespos e peles de ébano. Bonitas e com nomes de pedras preciosas, possibilitando aquelas pessoas negras que as vêem um reconhecimento não doloroso de si mesmo e a vontade de assumindo-se inteiramente também ser bonita assim.

Vitória!
Será?

Olhando com mais cuidado percebemos o porquê da sensação de déjavu. As lindas mulheres negras na maior parte do tempo em que aparecem no vídeo estão sempre semi-nuas. Vestindo lineries, biquínis, micro-shorts ou micro-blusas. Em um dos capítulos uma das pedras preciosas admite – ingênua e apaixonadamente- estar se envolvendo com um homem casado.

O que apreendemos daí? Apreendemos que a mulher negra está no mundo pelo seu corpo – lindo, claro! . É a partir desse lugar, do corpo, que ela vai se relacionar com os outros/as. Continua sendo a mulata boazuda que é objeto de desejo sexual – e só sexual – dos homens, sobretudo os casados , que para esposa continuam e devem continuar escolhendo as mulheres brancas.

Perverso, e inegavelmente sofisticado e estratégico como o quilombo do Jabaquara. Percebendo e entendendo a ideologia subjacente as reivindicações do Movimento Negro hodierno, sobretudo no campo mídiatico, com as pressões exercidas durante a discussão do estatuto da igualdade racial, a mídia hegemônica defende-se das criticas da representação estereotipada que leva a menina negra ao dano psicológico de se negar ou de não querer ser quem é a partir do doloroso desenvolvimento d eum ideal de ego branco e portanto irrealizável.

Apropriando-se dos valores estéticos afrocentrados e do discurso acerca da importância da valorização de uma estética afro, representando as mulheres negras como lindas pedras preciosas, a mídia hegemônica esvazia a discussão sobre igualdade racial na mídia e nos entrega nosso novo (velho) lugar: o de mulheres, negras, bonitas, com elevada auto-estima, mas vazias e decorativas, com função puramente sexual, instrumento a serviço dos outros.
Em temos de inteligências múltiplas, ao receber da mídia uma representação que nos coloca num lugar objetificado e estereotipadamente sexualizado, estamos recebendo menos de 1/8 da nossa capacidade de atuação.

*Vivane é ativista do movimento negro brasileiro.
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