Brasil: Grilagem de terra ameaça fundos de pasto na Bahia
Uma ação judicial está prestes a desabrigar cerca de 360 famílias de agricultores que estão na terra há mais de 100 anos. Esta é a situação das comunidade de fundo de pasto Riacho Grande, Salina da Brinca, Jurema e Melancia, em Casa Nova, região de Sobradinho, no norte baiano.
Fundo de Pasto é um modo tradicional de criar, viver e fazer em que a gestão da terra e de outros recursos naturais articula terrenos familiares e áreas de uso comum, onde se criam caprinos e ovinos à solta e em pastagem nativa. Desenvolvido ao longo de gerações entre os povos e comunidades tradicionais nas caatingas e cerrados nordestinos, constitui um patrimônio cultural do povo brasileiro. Existem cerca de 300 de associações de fundos de pasto na Bahia, totalizando 20 mil famílias, e mais de 100 mil sertanejos. Até o momento foram regularizadas cerca de 60 áreas. As comunidades de fundo de pasto integram um conjunto de forças sociais e políticas que visam instituir um novo paradigma e olhar sobre o contexto regional, substituindo a noção de "combate às secas" pela "convivência com o semi-árido".
A ação vem sendo acompanhada pela Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais do Estado da Bahia (AATR), entidade que presta assessoria jurídica popular a organizações e movimentos populares, trabalhadores rurais, indígenas e quilombolas, além de trabalhar com formação e educação jurídica popular.
Uma longa história
"Tudo começou na época da barragem de Sobradinho, já foram tirando a gente de lá e botando pra fora, depois veio essa empresa Camaragibe, foi uma briga danada, agora já tão querendo mexer com a gente de novo", relata Luciano Neto, presidente da Associação de Produtores Rurais de Areia Grande. Em 1973 se iniciou a construção da Barragem de Sobradinho, o maior lago artificial do planeta, que, segundo dados do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) expulsou mais de 70.000 camponeses de cidades como Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado. As comunidades de Riacho Grande e cercanias resistiram bravamente, mantendo-se firmes nas terras remanescentes, rejeitando proposta de colonização do regime ditatorial e migrar para as agrovilas instaladas em Serra do Ramalho/BA, para onde foram outras tantas famílias que tiveram suas casas e terras inundadas. Após a migração forçada e o restabelecimento das plantações e do criatório, outra bomba: a Agroindustrial Camaragibe SA, em 1979, adquiriu as terras ocupadas pelas comunidades, mediante "compra de títulos de posses" passados à empresa por políticos e membros das oligarquias regionais, que exerciam forte influência sobre os cartórios locais. A Camaragibe foi uma das grandes empresas envolvidas com o "escândalo da mandioca", em que latifundiários nordestinos forjavam perdas de safras para não quitar os empréstimos e continuar a receber incentivos ligados ao Pro-álcool, durante o regime militar. A injeção de capital para produção de álcool a partir da mandioca no sertão do Rio São Francisco foi um projeto desastroso para a economia popular, que aqueceu o mercado de terras e promoveu expulsão forçada de enorme contingente populacional, causando danos ambientais e superexploração do trabalho rural. As tentativas da empresa de empurrar os moradores para fora de sua suposta propriedade, com tratores e caminhões, esbarraram em uma sólida resistência, que articulou aliados e conseguiu atrair a atenção da opinião pública nacional, até a conquista de uma vitória na justiça por parte dos moradores. A Camaragibe SA se instalou em terras vizinhas mas terminou por ir à bancarrota, deixando uma dívida de mais de R$ 40 milhões com o Banco do Brasil.
Grilagem, pistolagem e violência
Em 2004, os empresários Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva, em uma negociação efetuada com o Banco do Brasil em Nova Iguaçu-RJ, compraram do banco as dívidas da Camaragibe, estimadas em R$ 40 milhões, pela bagatela de R$ 639 mil. Alberto, Diretor Geral do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto da Prefeitura de Juazeiro), seria sócio da Qualitycal Indústria e Comércio Ltda e diretor da Sane Engenharia Ltda, envolvida em escândalo no município de Uauá, e foi condenado, em 2004, pelo Tribunal de Contas da União e Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) da Bahia, por acumular o salário de servidor federal e o de Secretário de Obras do Município de Juazeiro (BA), durante dois anos. Carlos é especulador imobiliário e intermediário na compra de mamona na região de Jacobina, Mirangaba e Irecê para produção de "biodiesel". Suspeita-se que os dois sejam meros "laranjas" da própria Camaragibe ou de outra empresa ligada à produção de agrocombustível. Com a transação, que privatizou uma dívida com o Estado, puderam negociar com a empresa a quitação de suas dívidas através de algumas supostas propriedades, dentre elas as fazendas "Lajes", "Baixa do Umbuzeiro", "Cacimba do Meio", "Curralinho" e "Urecê", todas em Casa Nova. Estas terras são contínuas e formam um território compartilhado por quatro comunidades de fundo de pasto: Salina da Brinca, Jurema, Riacho Grande e Melancia.
No dia 06 de março, as comunidades tiveram um dia de terror. Às 05h da manhã, policiais civis e militares, acompanhados de um Oficial de Justiça, cumpriram a reintegração de posse de forma violenta e arbitrária, destruindo casas, chiqueiros e currais, milhares de metros de cercados, confiscando carros e documentos, submetendo cidadãos a constrangimentos e a situações de cárcere privado. Também exigiram a retirada imediata de cerca de 3.000 caixas de colméias de abelhas instaladas no local há mais de 05 anos pelos apicultores das comunidades. Os posseiros, juntos, produzem cerca de 30 mil litros de puro mel da caatinga, em projeto de R$ 72 mil financiado pelo Banco do Nordeste. A área, rica em mata nativa, é essencial para a criação à solta de mais de 13 mil cabeças de caprinos e ovinos, pertencentes aos posseiros.
Com a persistência característica do povo nordestino, as comunidades se mobilizaram para retomar suas terras e impedir a destruição de seu meio de subsistência, reocupando a área poucos dias depois. O pior, entretanto, ainda estava por vir. Jeová da Silva, presidente da Associação dos Produtores de Jurema, relata o ocorrido em 17 de março: "Estávamos todos presentes, chegaram os capangas encapuzados atirando na gente, batendo, queimando as pessoas, menino, velho, mulher... Teve criança que quebrou o braço na confusão, uma mulher chegou abortar o filho de sete meses". Quatro crianças ficaram reféns da milícia, usadas como escudo humano para coibir a reação dos camponeses. A polícia, longe de proteger os moradores, demonstrou intimidade e complacência com os pistoleiros. "Registramos várias queixas na delegacia mas a policia nunca foi lá tomar uma providência. No dia 17 de março a gente fez contato com a polícia, eles chegaram duas horas depois e simplesmente cumprimentaram os encapuzados, depois passaram a noite lá batendo papo com eles" denuncia Valério da Rocha, da Associação de Pedra Fria. Os camponeses continuam recebendo constantes ameaças por parte dos pistoleiros, e temem pela vida.
Agrocombustíveis bebem a água do sertão
No sertão, uma das áreas de menor IDH do mundo, as populações locais sofrem os impactos dos grandes projetos, voltados para os interesses do agro e do hidronegócio. Se a Barragem de Sobradinho expulsou milhares de camponeses de suas terras, a Transposição do Rio São Francisco promete ainda mais, passando por cima de comunidades ribeirinhas, quilombolas e dos índios Tumbalalá, Tuxá, Truká, Pankararu, Pipipan, Kambiwá, Anacé, Xocó e Kariri-xocó. O Canal do Sertão, mais uma Parceria Público Privada, terá 500 quilômetros de extensão e levará água do Lago de Sobradinho ao Sertão do Araripe, em Pernambuco. Todos estes projetos caminham no sentido de privatização das águas nos locais onde ela é mais necessária para a sobrevivência da população. A poucos quilômetros do Rio São Francisco, a população passa fome e sede por falta de uma política integrada de infra-estrutura básica (água, energia e saneamento) e alternativas de geração de renda. Cerca de 70% dos açudes públicos do Nordeste não estão disponíveis para o povo. O Governo, através de programas como o BahiaBio, aliado ao grande capital, prefere criar estruturas para a produção de agrocombustíveis através de cana, mamona, dendê e pinhão-manso, e de fruticultura para o mercado externo. Com o aquecimento do mercado de terras da região, o agronegócio age no sentido de expulsar populações locais para a instalação de grandes empreendimentos, com subsídios governamentais e a produção de monocultura para exportação.
Presença centenária
As comunidades da região de Riacho Grande vivem dias de tensão, mas não pretendem arredar o pé de sua terra. "Saindo daqui, onde é que nós vamos viver? Vamos trazer nossos filhos pra ficar sem emprego nas periferias das cidades? Meu avô chegou aqui solteiro e morreu com 80 anos, meu pai nasceu e se criou aqui. Nós temos mais de 140 anos nessa área", protesta Jeová. Desassistidos pelo Estado, que só mostra seu lado repressor, não oferecendo condições básicas de saúde, educação e saneamento básico, os camponeses vivem basicamente do criatório de bodes e ovelhas, do plantio de feijão e mandioca e da produção de mel "Oropa". O sentimento geral é de revolta, quase sufocando a esperança. Zacarias da Costa, da Associação de Riacho Grande, desabafa: "Não temos perspectivas de sair daqui pra lugar nenhum. A gente não desanima porque nasceu na luta e quer morrer lutando. Se for necessário, vamos derramar o sangue aqui, porque aqui é a nossa vida".
O Estado da Bahia, por meio de sua Procuradoria Geral do Estado em Juazeiro, ingressou no dia 21 de novembro com uma Ação Discriminatória de Terras Públicas na Vara da Fazenda Pública em Casa Nova. A Ação representa um obstáculo ao cumprimento de nova decisão judicial que pretendia retirar mais uma vez as comunidades de seus territórios. Há um compromisso do Estado da Bahia em, após arrecadar as áreas para o patrimônio público, cedê-las às famílias e, com isso, o patrimônio cultural, ambiental e socioeconômico que elas representam seja definitivamente resguardado de outros atentados.
* Paulo Magalhães e Pedro Diamantino são jornalistas do MST - Brasil
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