Lembranças do Brasil

Lembranças do Brasil

Por Ernest Wamba dia Wamba

I

O grande sonho de seguir
O tortuoso caminho de vida e de morte
Perpassado, a espada n'alma
Os antepassados brutalmente arrancados
De sua terra para o serviço ordenado
Pelo homem que se crê Deus
Distante, no desconhecido absoluto
Enfim realizado….
Será este um caminho escurecido pelas sombras
Da morte, semeado de crânios humanos
Questionadores cheios de angústia
As órbitas vazias emborcadas para o Céu…
Ponte submarina feita de esqueletos
Via-Láctea de cantos de almas atormentadas
O remorso da responsabilidade distante
O Caim africano ou o outro
O julgamento e o coração em férias
Quando a alma procura retornar
À Eternidade seu lar…
Imaginações prodigiosas de sofrimentos
De torturas físicas espirituais morais
Os Zongs repetidos para o prazer dos tubarões
Misérias de kimbangumuna oh
O grande milagre de sobreviver à tudo aquilo
Quase Deus ou traidor absoluto de si mesmo
Entregar sua vida para recuperá-la
Os cataclismas ininterruptos
Sobre a África se derramando
Sobreviver só pode ser um milagre de Xangô…
Sobreviventes dos grilhões genéticos
Dos antepassados forçados a morrer prematuramente
Para tornar melhor a vida do homem-deus ou
Forçados a sobreviver em prol da esperança demasiado longínqua
Da África e deste homem arrependido.

II

Na descoberta de um Brasil que toma
Ardentemente consciência de
Sua outra história
A história africana de seus
Fundamentos complexamente diversos e
Contraditórios, mesmo antagônicos
Um grito: a história afro-brasileira senão
A história meso-brasileira-afro-européia
As culturas antagônicas inter-destrutivas
Não se destroem completamente
Mesmo desigualmente
Elas se interfecundam, se interpenetram,
É o Samba eriçado em frente ao Pelourinho
Dos Pesadelos de alguns
A elevação orgiástica de outros…
Sobretudo a sua descendência mais enriquecida
Na ausência de retratos dos trabalhadores forçados…
Sua invisibilidade culturalmente eloqüente
Anuncia-se a consciência cultural do despertar
É necessário apagar a escravidão mental
Para a democracia racial – Instituto Steve Biko…
As feridas serão curadas as cicatrizes
Ditarão as suas exigências…
O despertar ou o vôo do despertar
Reclamar e reivindicar esta diversidade contraditória
Em toda a sua personalidade
A mistura ou a fusão
Pelo pertencimento ancestral comum longínquo
Nem o silêncio histórico nem o ódio da incompreensão
Nem a traição mútua nem a covardia nem a recusa do arrependimento
Na verdade libertadora…
Não pôde apagá-la
Eu também me reconheci
Em cada brasileiro…

III

Partir do fim relativo…
A vida cintila, em tempo de festa
Em São Luis…
No zigurate de Minas, o templo
Dos Deuses de origem celeste africana…
Reproduzidos dos antepassados africanos
A sacerdotisa Celeste ainda vigorosa
De fé ardente apesar da idade
Purgada de todo ódio
Nenhum ódio do mestre
Nenhum ódio dos filhos dele
O professor discípulo de Ogun
Nenhum ódio
Nenhuma angústia
A alegria de ver este africano vindo de longe
Jubilo das grandes festas
A alma re-habita o corpo
Ela testemunha a sua presença
Os pés, as nádegas, os seios,
As tetas balançam e balançam… ainda
As partes do corpo do homem
Se imagina…
Reconheço a petulância dos habitantes de Wala
Congo
Senão aqui todo homem de Wala com toda mulher
Em círculo trocando de papel…
Festas em memória de São João…
Estamos longe da história a banir
Mesmo do instinto ou do subconsciente onde
Tudo era recusado ao escravo
Seu próprio corpo
Sua própria língua
Seu espírito
Somente este sopro deixando o corpo
À noite para ter com os Deuses
As correntes pesadas e grossas
Não podiam prendê-lo
Ele estava com Xangô
Ele estava com Oludumare
Ele estava com Muanda Kongo
Ele estava com Nzambi Mpungu Tulendo Dezo
O corpo com o qual o mestre se deitava
Não tinha alma um mecanismo sexual
Como o dia de trabalho
A alma estava longe
A profetisa de Xangô
Eloqüente a respeito das agitações que virão

Semear nesta inocente Alyxandra
Ignorante dos Deuses dos antepassados, aos quais
É imperativo retornar
Eu também devo retornar, permanecer mais tempo
As mesmas agitações profetizadas
Por Kimbangu Simon Diatunguna…

Elas se anunciam…

IV

As populações mesoamericanas
Foram massacradas
Não integralmente
Sob o peso histórico
E ecológico
A descendência inesgotável sobrevive
Torturados e humilhados absolutamente
Em grossas correntes
Os trabalhos pesados de vida e de morte
Não exterminaram
Os escravos africanos
A descendência inesgotável
Nas favelas
Mantida ainda sob vigilância
Na ponta do fuzil
Da polícia militar no Rio de Janeiro
Nas ruas
Pouco além
Sobrevive petulante
O nivelamento racial pelo mestiçagem
Não teve êxito completo
O Brasil é uma síntese
Povos de três continentes
Senão da humanidade terrestre
Os sofrimentos
A manutenção da morte
Diante da porta dos humilhados
E dos massacres anunciados
Selou a aliança de sangue
Escravos doentes conduzidos
Pela floresta para serem enterrados
E os mesoamericanos solidários
Face ao egoísmo e à arrogância
Do mestre de escravos civilizador
Nascerá o inextinguível quilombo
Direito de terra pela força bruta
Direito eterno de primeiros ocupantes
Direito de proteção ecológica dos fugitivos
Face a face
Diante da recusa sistemática
Por uns
Da humanidade a numerosos outros

V

Olhai o povo de Macapá
Olhai o povo de Salvador
O sangue africano, europeu e
Mesoamericano em suas veias corre
Senão na língua, no olhar
Ou na comida
Síntese desigual, não hegeliana
Certamente
Senão fanoniana
No Rio de Janeiro o povo
Das ruas e das favelas
Enfrentando a morte eminente
Quotidiana
O ódio egoísta do rico
Perante o desejo invejoso do pobre
Em meio à opulência
Mesmo nas lixeiras do ricos
Em Salvador o povo descendente de escravos
É relegado, sobretudo à periferia da vida difícil
Perdura nos espíritos das pessoas
A escravidão mental
A angústia mental da descendência mesoamericana…
A arrogância do mestre
A síntese igual
De enriquecimento partilhado
De história, de cultura e de civilização partilhadas
De ruas livres sem famintos nem desabrigados
De multiplicidade racial às universidades para todos
O futuro mundial do Brasil
É sustentado pela juventude brasileira?

VI

De uma universidade federal
A outra…
Bahia, Amapá, São Paulo,
Rio de Janeiro, Niterói,
Minas Gerais, Maranhão
E outras também
Escola Florestan Fernandes
PUC
A juventude intelectual brasileira se abre
Às suas origens africanas
Longínquas
Senão para o controle da mundialização
Necessária para
Compreender e amar
Os cidadãos negros
Descendentes de escravos
Desejo ardente
Louvável
Conhecer o que é a África
Contemporânea
Por que a pobreza indizível
De um maravilhoso continente
Escandalosamente rico
Por que a marginalização
De um continente
Na origem de todos
Berço da humanidade
Por que a mundialização
Depois o comércio triangular
A deixa em desvantagem
Esta África tão orgulhosa
Maravilhosas canções
Fabulosos contos
Danças sob as estrelas
A compaixão entre
Filhos e filhas
Falsamente felizes
Uma esperança tão sólida
Por um futuro melhor
de reparação de um passado tão trágico
de sofrimentos singulares
de grandes lições
tiradas de áridas condições
de sobrevivência
de descendentes dos que escaparam
do tráfico negreiro
olhai as cicatrizes tornadas
genéticas
um corpo que sobrevive
de uma epidemia atroz
é um betão armado
Por que
os malogros das ilusões
democráticas?
As palavras comunitárias
desapareceram
mesmo o mbongi aldeão
os jovens brasileiros
imaginam a existência
ignorada
da história africana
aquela feita pelos Africanos
no mundo inteiro
aquela feita pelos Africanos
no novo mundo
no próprio Brasil
Nganga Zumbu
Macandal (Makandala)
Algures a grande revolução igualitária
São as massas rebeldes
Quem fazem a história
Estes escravos talhando
Seu caminho na terra sob o Pelourinho
Este fugitivos na origem de
Quilombos
por que
deixam vestígios
sem retratos
dos criadores
vestígios históricos
sem criadores reconhecidos
Impossível hoje
ignorar a África
nenhuma história das riquezas do mundo
pode esquecer a África
os especuladores brasileiros e africanos
se apressam em lançar as pontes
entre os dois continentes
a África
cada vez mais torna-se
um continente de famintos
de alienados culturais
de refugiados de guerra
transformados em objetos da caridade
dos ricos
quem têm medo
do terrorismo
das pessoas sem terra
dada quase de graça
aos parceiros
saqueadores e acumuladores
de seus recursos
de pessoas sem temporalidade
tão ignorantes do ontem
despreocupadas com o amanhã
quase ninguém
se mobiliza para se beneficiar
da presença sobre o continente
do grande Jean-Bertrand Aristide
Na PUC, as pessoas são apaixonadas
pela palabre
esta democracia integral
de antigos Africanos
a árvore da palabre
árvore da palavra mediadora ou conciliadora
árvore da palavra suave, sem confrontação
árvore da palavra que concilia ou reconcilia
árvore da palavra que une ou reúne
árvore da palavra que dissolve a tensão, renova a relação rompida
árvore da palavra que se ouve, se distribui e se exprime
árvore da palavra que acolhe, pacifica, vivifica e protege
árvore da palavra que exorciza o coração da violência humana e social
proibir-se o silêncio
proibir-se a indiferença
proibir-se o olhar maldoso, a fala maldosa que divide
pôr tudo sobre a mesa pública
pôr a nu tudo o que se oculta
revelar a bruxaria prejudicial
detectar a palavra venenosa
encontrar os provérbios apropriados
imaginar as belas canções, as belas imagens
distinguir os sonhos, as visões, os presságios
tarefas dos filósofos Nzonzi
árvore da palavra não violenta, não coerciva, não judicial
não aprisionadora, não exiladora
árvore da palavra que interessa, engaja, implica as pessoas em conflito
acusado, vítima, membros das suas famílias e comunidades
mesmo o crime é comunitário
o indivíduo o carrega pela comunidade
árvore da palavra que instaura a responsabilidade, o arrependimento, o perdão
a reconciliação, o interesse, o compromisso, a implicação, o entusiasmo
árvore da palavra que contêm, domestica e desarma a violência…
Ela está distante...
Na UEZO os seus estudantes, Democratizar,
tocaram meu coração
dando alento à minha caminhada…
a eles dedico estas linhas…

VII

Olhai a natureza
Equatorial e tropical
As árvores de Kisangani presentes
Aqui mesmo em Macapá
A árvore musenga em Belo Horizonte
As ervas de Zabanga, meu feudo
Aqui em Salvador
Talvez também os grilos
Na terra
Os nsombe
Nas jovens palmeiras
Os escravos esqueceram
De trazer os nsafu
As polegadas mesmo
Nos cabelos das crianças no Rio de Janeiro
Talvez também o tabaco de mascar
Um caminhar rumo a nós
De pessoas fora delas mesmas
Em plena rua conversando
Com elas mesmas
Perto o Grande Mar histórico
O meu hotel Alah Mar
na frente da minha janela, majestoso
Os nasceres do sol de lembranças
As tempestades quase diárias
As marchas rituais ao longo da praia….
A seguir...

Ernest Wamba dia Wamba

No avião de Salvador a Kinshasa.
1-2 julho 2008.

* Ernest Wamba dia Wamba é senador na República Democrática do Congo, um guerreiro pela justiça e democracia em seu país assolado pela indiferença internaqcional e diretor executivo da Ota Benga Alliance pela Paz no Congo.

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