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"O Estado tem o dever de adoptar e executar as políticas mais adequadas para consolidar Angola como uma nação efectivamente multicultural".

O Ruanda assinala este mês 15 anos do genocídio ocorrido em 1994. Em cem dias, um milhão de pessoas, 90 por cento dos quais tutsis, morreu barbaramente assassinada.

Vizinhos, amigos e até familiares não hesitaram em chacinar os que lhes estavam próximos, esquecendo os laços familiares construídos durante gerações. Muitas das vítimas foram mortas enquanto dormiam. Outras, no interior das igrejas onde procuraram refúgio.
A dita comunidade internacional (ponto de interrogação) Quieta. Tem razão o presidente ruandês, Paul Kagame, quando acusa as Nacões Unidas de cobardia.

O Ruanda é um exemplo para a humanidade e, em especial, para África. Tutsis e hutus são etnicamente aparentados e falam línguas idênticas. São primos (tal como os palestinos e os judeus). Ao longo de séculos de convívio, foram-se misturando. No entanto, isso não impediu o genocídio de há 15 anos atrás.

Nós, angolanos, gostamos de acreditar, com alguma razão, que o sucedido no Ruanda não pode acontecer aqui. Essa certeza, porém, e mesmo salvaguardando eventuais diferença em termos de proporção, não deixa de correr os seus riscos.

O sentimento de identidade nacional é mais forte em Angola do que na maioria (mas não a totalidade) dos outros países africanos, mas ainda não está consolidado. Na minha opinião, pode mesmo ser posto em risco, se a sociedade permanecer indiferente perante certas teses que, aqui e ali, vão sendo veiculadas por vozes de todos os quadrantes.

Na verdade, desde a falência, em 1990, do modelo «socialista» e do seu racionalismo positivista, com a consequente abertura política, a corrente tradicionalista tem vindo a ocupar uma parte substancial do espaço público e institucional. Não pretendendo, aqui, fazer a radiografia dessa corrente (n verdade, múltipla e, por vezes, contraditória entre si), limito-me a assinalar que a mesma é suprapartdiária, ou seja, está «representada» em todos os partidos.

Apenas para focar o que nesta crónica interessa, a maneira «impressionista» e anticientífica (para não dizer reaccionária) como alguns meios de comunicação tratam, esporadicamente, as questões «racial» e «tribal» em Angola corresponde a uma das manifestações concretas da mencionada corrente. Estabelecendo a analogia com o Ruanda, é bom lembrar que certas rádios foram dos principais instigadores do genocídio naquele país.

Recentemente, li neste jornal, a propósito da necessidade de valorização das línguas angolanas de origem africana, a defesa das «nações ancestrais». Quanto a mim, tal defesa é um equívoco – e perigoso.

«Equívoco» porque, em verdade, essas «nações ancestrais» já não existem mais. «Perigoso», pois essa defesa conduzirá, se assumida pelo conjunto da sociedade, ao «particularismo excessivo» a que, por exemplo, se referiu o Papa Bento XVI durante a sua visita aos Camarões no mês passado, como uma das ameaças que rondam os países africanos.

Angola, no seu formato moderno (ou seja, o único que o país, como tal, conhece; as realidades político-territoriais anteriores tinham formatos diferentes), é, do ponto e vista histórico, um país de origem afro-europeia, cujo substracto determinante é banto, mas em cuja génese participaram também elementos de matriz europeia (a língua portuguesa é só um deles).

Ao longo do processo constitutivo do país, que ainda prossegue, os diferentes grupos que deram origem à actual população angolana, quer bantos quer europeus, foram-se misturando entre si mais ou menos naturalmente. Essa tendência deverá manter-se e ampliar-se – como, aliás, está a acontecer em quase todo o mundo -, a não ser que seja interrompido por alguma aventura «genuinizante», fundamentalista e fascista.

O Estado tem o dever de adoptar e executar as políticas mais adequadas para consolidar Angola como uma nação efectivamente multicultural (no sentido progressista e dinâmico do termo, não no de «coexistência civilizada de guetos«). É consensual, por exemplo, que a democracia é determinante para lograr esse objectivo, na medida em que cria oportunidades iguais para todos (o conceito de democracia é usado aqui em todas as suas vertentes, claro).

Mas podem também ser necessárias medidas de outra natureza, pois certas manifestações de cunho racial ou tribal constituem autênticos crimes públicos.

Nada disso é possível, entretanto, se não existir uma ideologia. Chame-se a isso, se se quiser, visão. A mesma tem de ser disseminada e partilhada por toda a sociedade, a começar na escola. Francamente, não sinto que isso esteja a ser feito. O próprio partido no poder parece alheado, nos últimos anos, das questões ideológicas mais profundas.
A bandeira «Um só povo, uma só nação» - que continua a estar na base de muito do actual prestígio do MPLA – não pode ser mera retórica.

* João Melo é jornalista e escritor angolano, assina coluna no Jornal de Angola
*Conteudo primeiro publicado em África 21 digital e gentilmente autorizado a reprodução no Pambazuka News.
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