Moçambique: riqueza e miséria de mãos dadas, a segunda alimentando a primeira

Apesar da desaceleração actual, Moçambique está a viver um ciclo de crescimento económico inédito e as profecias do FMI anunciam um futuro ainda animador. Mas o que isso significa para a maioria dos moçambicanos e moçambicanas? A resposta não é agradável: riqueza e miséria, a segunda alimentando a primeira sempre à custa da justiça.

É facto que, hoje em dia, a maioria das mulheres e dos homens que vivem em Moçambique sofrem uma extrema contradição: serem miseráveis num país com riquezas minerais, energéticas, culturais, linguísticas, de florestas, rios e mar fartos e de uma terra que dá frutos incontáveis. Tais riquezas são lhes usurpadas, exploradas e vezes sem conta, com isso, a sua própria vida. Tudo em nome do logro de um crescimento económico que afinal, não é mais, senão a vida de quase todos em troca da ganância de apenas alguns.

Hoje já se tornou lugar comum afirmar-se que o colonialismo europeu terminou com a independência política mas, ao mesmo tempo, muitos dos seus efeitos estão ainda longe de acabar. Mais do que isso, a economia extractivista e de acumulação primitiva do período colonial continua em outros termos e com uma violência redobrada. No contexto da globalização financeira são os velhos e novos poderes coloniais que invadem e ocupam o tecido produtivo, corroem as esperanças de uma soberania tanto política como económica e continuam a demonstrar-se na força mediática dos números que apregoam, transformando a miséria de quase todos na ideia de uma oportunidade histórica de saída do chamado sub-desenvolvimento de Moçambique.

De facto, várias fontes indicam que Moçambique está a viver um ciclo de crescimento económico inédito e que, apesar de uma desaceleração actual, as perspectivas são “animadoras”. Em 2014 o Banco Mundial fazia menção ao ritmo do crescimento do país e situava a taxa em 7%. Em Janeiro deste ano o Africa Confidential afirmou que segundo o Standard Bank a taxa se situará em 5,5% mas o FMI acredita que chegará aos 6,5%. No entanto, as medidas de austeridade dominarão a imagem económica em 2016.. Chegando a este ponto, já é possível afirmar que, apesar das riquezas continuarem a alimentar esta macro-economia de luxo, as medidas de corte e esvaziamento das funções sociais e redistributivas do Estado devem continuar e ser aprofundadas a troco de um recente auxílio financeiro ao país. E isto é apenas uma parte da história. O economista moçambicano Nuno Castel-Branco explica que o núcleo extractivista da economia moçambicana é responsável por 75% dos investimentos privado, 90% das exportações e 50% da taxa de crescimento do PIB mostrando onde residem as extremas fragilidades do sistema e de como a ‘bolha económica’ pode, a qualquer momento, destruir quase totalmente as expectativas de futuro para todas e todos as/os que não fazem parte dos rendeiros da extracção, nacionais e internacionais.

Apesar dos perigos eminentes que são descritos acima e, da persistência dos dados sobre o Desenvolvimento Humano em Moçambique o colocarem no oitavo pior lugar (posição 180 em 188 países analisados) a partir do último dos países onde a vida é mais difícil de ser vivida, as perspectivas neo-coloniais do capital financeiro e extractivista não desarmam. No dia 15 deste mês foi divulgado pelo Club of Mozambique um relatório do FMI profetizando que a taxa do crescimento médio durante a primeira metade da próxima década poderá atingir um número impressionante de 24% ao ano. O FMI calcula que até meados da década, metade dos rendimentos do país serão gerados pelo gás natural. Sabendo-se que o capital extractivista do gás é estrangeiro (sul-africano, norte-americano e italiano), assim como do carvão (brasileiro e indiano) da floresta e da agricultura intensiva (japonês, brasileiro, sul-africano, etc.) percebe-se a intensidade com que a ofensiva colonial se processa e se pretende restabelecer no tempo e no espaço não importando as consequências para o país, para as populações, para a paz e para a justiça.

Por estas razões pode continuar a dizer-se que, da tragédia da sua miséria, a maioria das e dos moçambicanos vê os palácios, os four by four, os resort faustosos, a obscenidade de todo o luxo diante dos seus olhos como se tudo fora um sonho mau. Do seu lado, este país muito rico já é de outros. Tem vindo a ser concessionado, concedido, realocado por uma elite que há muito tempo não se pergunta de que lado está. Já se foi dali, da pátria amada, para os paraísos fiscais e para os empreendimentos que mais dinheiro lhes dão. Enquanto tudo na macro-economia parece ser um êxito na economia real encontramos uma realidade que, de tão contrastante, quase não faz sentido. Segundo o relatório de 2015 do PNUD , apesar de alguns ganhos das últimas 4 décadas, 44.1% das e dos moçambicanos vivem na pobreza extrema e 85,8% daquelas e daqueles que trabalham são pobres (ganham menos de 2 USD por dia).

São dezenas de milhares de camponesas e camponeses despossuídos das suas terras e dos seus territórios, impedidos de viver a sua vida; são dezenas de milhares de pessoas deslocadas à força por causa dos minérios e das condutas de gás e que ficam confinadas a territórios escassos e inférteis; são dezenas de milhares deslocados à foça por causa da guerra, que as autoridades continuam a chamar crise político-militar mas que o povo chama, desassombradamente, de guerra. São milhões sem emprego ou meios de subsistência e, muito menos, sem capacidade de pensar como podem resistir mais um dia a todas as dificuldades. Intelectuais, jornalistas e lideranças de movimentos populares são agredidos e assassinados sem que se apurem responsabilidades nem se apliquem as garantias constitucionais. A violência no campo é dramática e recrudesce nas cidades como é exemplo o aumento drástico dos casos de violência sexual que foi divulgado pelo ministério da saúde no início deste mês . Parece e é trágico; parece e é horrível.

A pergunta do início é afinal uma afirmação cheia de contornos complexos e extremos. De um lado se insiste em propagar a ideia de um modelo económico que desperta a ansiedade de ver a vida mudar para melhor para, em seguida, se perceber, da pior maneira, que essa é a outra face da sua própria desgraça. Riqueza e miséria, a segunda que alimenta a primeira sempre à custa da justiça. Porém Moçambique, ou melhor, as e os moçambicanos são hábeis na arte de resistir e encontrar corredores de lutas e alternativas. A única questão que fica é que já era tempo de o colonialismo não passar.