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Nesta longa entrevista, Celso Malavoneke afima:"Sabemos todos os dias de pronunciamentos de cidadãos que podem ser ofensivos para as igrejas tradicionais como a católica e as protestantes e não há memória fresca de processos judiciais". Até porque temos que compreender os contornos da liberdade de imprensa, por um lado, e do direito, ou do dever dos jornalistas, de informar, porque do outro lado existe o direito constitucional do público de saber. O direito à informação. O jornalista, na maior parte dos países democráticos tem o direito à denúncia. É a tal coisa da criminalização versus descriminalização da actividade da imprensa. O mais engraçado é que, por exemplo a Igreja Universal, desses cento e setenta e dois processos que interpôs contra o jornalista brasileiro, não ganhou nenhum. Os processos que a Igreja Universal ganhou no Brasil, que eu saiba, são aqueles em que o seu líder, Edir Macedo, é acusado de lavagem de dinheiro, desvio de fundos, charlatanismo… então ganham alguns processos, outros não, outros conseguem que sejam arquivados. E o que me dói é que no Brasil quem move os processos contra a Igreja Universal é o Ministério Público, o equivalente à nossa Procuradoria Geral.

Como é que se sente uma pessoa, numa sociedade laica e tolerante como a nossa, a responder em tribunal num processo interposto por uma igreja?
É uma mistura complexa de sentimentos, principalmente no meu caso. Eu tenho uma educação religiosa, por sinal dada pelo D. Alexandre Cardeal do Nascimento, desde os meus sete anos. Eu sou religioso praticante, até compositor e maestro de música sacra, portanto, tenho uma dimensão religiosa na minha vida bastante profunda. Por causa disso procuro pautar a minha vida não apenas como pessoa de bem, como um cidadão que procura ser útil à sociedade, mas também como um cidadão solidário, que procura, na sua vida, pôr em prática os ensinamentos bíblicos, ou, se preferir, os ensinamentos evangélicos. Eu me considero pessoa de bem. Já escrevi sobre isso. E o facto de as duas únicas vezes que fui a Tribunal ter sido por iniciativa do que prefiro chamar grupo religioso, porque não sei se, pelas características que se vêm se pode classificar de igreja, cria um sentimento muito difícil de descrever. Não é uma coisa agradável. Mas o mais doloroso é sabermos que estamos a defender valores do nosso país, valores da nossa cultura, que estamos a defender gente do nosso povo que sabemos que são pessoas vulneráveis e cuja vulnerabilidade está a ser explorada, e sermos condenados pelas nossas próprias instituições. De uma maneira incompreensível, que até leva uma pessoa a pensar se terá sido condenada mesmo porque foi aplicada a Lei ou porque terá havido outros elementos estranhos. Mas é o país que temos, que estamos a tentar construir e que temos de compreender nas coisas menos boas que tem para que possamos contribuir para a sua solução.

Tem conhecimento de algum outro processo em que alguma igreja tivesse levado um outro cidadão a tribunal por suposta calúnia ou difamação?
Não. O que eu sei é que a Universal é recorrente neste tipo de coisas. Pelas pesquisas que fiz, há um jornalista brasileiro que já vai no centésimo septuagésimo segundo (172º) processo. Por depoimentos e subsídios que recebo, até do próprio Brasil, esta é uma táctica que a Universal usa quando se sente particularmente atacada por um jornalista. E o curioso é que as queixas nunca são apresentadas pela Igreja Universal enquanto instituição. São pessoas da Universal que aparecem a apresentar as queixas. No meu primeiro julgamento o ‘leitmotiv’ foi uma crónica que reagia a uma actividade em que a Igreja Universal estava a distribuir camisinhas a jovens e adolescentes nas praias da Ilha de Luanda. Segundo eles, era para prevenir o SIDA. E nós dizíamos que, neste caso, para resolver um problema estávamos a criar outro, porque estávamos, directa ou indirectamente, a encorajar os jovens para a promiscuidade sexual. Até porque um adolescente não tem, ainda, maturidade, do ponto de vista mental, para compreender estas coisas. E a própria senhora que dirigia aquilo, uma tal pastora Raquel Reis, dizia: ‘o sexo é natural, não tem como dizer aos jovens para não fazerem sexo. Eles têm é que fazer sexo, mas prevenidos’. Ora, não é isso que diz a nossa cultura, não é isso que dizem os nossos valores, nem aqui, nem no Brasil. Entretanto passou, os legisladores e juristas enrolaram, enrolaram, até que acabaram por achar que eu era culpado, etc.
É a tal coisa, às vezes a gente põe-se a reflectir sobre a filosofia do direito e começa a ver o quão frágil é o nosso sistema de justiça. Logo em seguida veio o segundo processo, desta vez por causa de uma outra crónica, intitulada “As Questões Que a IURD Não Responde”, em que eu defendia a tese de que a IURD não é exactamente uma igreja, a IURD é uma empresa.

Então é uma empresa pouco tolerante com a opinião dos outros, do mercado?
Aqui estaria a fazer juízos de valor. Evito. Até por uma questão de respeito pelas várias pessoas amigas que frequentam a Universal. Eu prefiro dizer, utilizando argumentos técnicos, até porque sou publicitário, sou marketeiro, que a IURD é uma boa empresa, com todas as componentes de uma empresa, incluindo uma boa publicidade e marketing, e daí que esteja em condições de dizer que muito deste marketing é publicidade enganosa. Eu defendia isto e dizia que a Igreja Universal é uma instituição que persegue o lucro. E mais, é uma igreja que estabelece preçários sobre os milagres de Jesus Cristo. Se você quiser ter marido pague X, se você quiser escapar-se do feitiço pague Y, se você quiser ter filho pague X. Socorrendo-nos dos conhecimentos que temos da Bíblia e da história universal, até da filosofia judaico-romana, que é a base do Cristianismo, dávamos um exemplo simples, em que dizíamos que se nós somos humanos e nunca precisamos de estabelecer preços por tudo aquilo que os nossos pais fizeram por nós, então é Deus, que é considerado o Pai de infinita misericórdia, que vai cobrar para trazer o bem nas nossas vidas? Até do ponto de vista filosófico isso é uma contradição, isso não encaixa.
Obviamente, este é o nível de discussão que corre nas elites, corre no seio dos intelectuais… e podemos dizer que, até agora, os intelectuais angolanos não se interessaram muito por esta discussão, talvez por haver outras preocupações… Mas se há algo de bom onde se percam vidas, porque onde se perdem vidas não pode haver nada de bom, o que está a acontecer é que este episódio da Cidadela traz agora, à agenda de discussão da sociedade, dos intelectuais, a verdadeira natureza da Igreja Universal. Agora vamos discutir, vamos reflectir e em conjunto, em vez de ser apenas o Celso e mais uma meia dúzia de jornalistas que depois acabam sendo perseguidos, sistematicamente, por esta igreja, porque o Celso não tem dinheiro para enfrentar cinco, dez, vinte processos, e a Igreja Universal tem…

É dinheiro que lhes faça falta?
Da primeira vez solicitaram seiscentos mil dólares de indemnização, agora solicitaram quinhentos mil dólares…

A pagar aos cidadãos que interpuseram os processos, não à igreja?
Bem, a pagar aos cidadãos, mas eu imagino que pelo menos dez por cento lá irão (risos). Pedir a um cidadão …
No entanto, sabemos todos os dias de pronunciamentos de cidadãos que podem ser ofensivos para as igrejas tradicionais como a católica e as protestantes e não há memória fresca de processos judiciais
Até porque temos que compreender os contornos da liberdade de imprensa, por um lado, e do direito, ou do dever dos jornalistas, de informar, porque do outro lado existe o direito constitucional do público de saber. O direito à informação. O jornalista, na maior parte dos países democráticos tem o direito à denúncia. É a tal coisa da criminalização versus descriminalização da actividade da imprensa. O mais engraçado é que, por exemplo a Igreja Universal, desses cento e setenta e dois processos que interpôs contra o jornalista brasileiro, não ganhou nenhum. Os processos que a Igreja Universal ganhou no Brasil, que eu saiba, são aqueles em que o seu líder, Edir Macedo, é acusado de lavagem de dinheiro, desvio de fundos, charlatanismo… então ganham alguns processos, outros não, outros conseguem que sejam arquivados. E o que me dói é que no Brasil quem move os processos contra a Igreja Universal é o Ministério Público, o equivalente à nossa Procuradoria Geral. Em Angola estou lembrado que, quando fui julgado, a procuradora que lá estava, primeiro não estava nem aí, passava o tempo todo a olhar pela janela, via-se que estava aí… Depois o juiz determinou que não se tratava de um caso criminal mas sim civil, ficou claro que não havia nada de criminal aí. Ainda assim a procuradora pediu a palavra ao juiz para dizer: Eu acho que este senhor é culpado. Quer dizer que ela achava que entregar camisinhas aos nossos filhos e dizer-lhes que podem fazer sexo porque é natural desde que uses isso … ela achava que estava bem. E quando aparece um jornalista, no exercício das suas funções, a denunciar isso, a dizer que se trata de falácia, é um pretexto usado por esta denominação para extorquir dinheiro de pessoas que são psicológica e socialmente, para não dizer economicamente, vulneráveis, esta procuradora achou que o jornalista não tem razão, que o jornalista deve ser condenado… Depois acabaram por baixar a indemnização para dez milhões de kwanzas, salvo erro.

Para mim, isto toca em muitas coisas. Por um lado, toca na fragilidade do nosso sistema de justiça, e eu espero que em função do que aconteceu no último dia do ano os nossos magistrados públicos, e eu assumo isto, procurem investigar mais, procurem estudar mais este fenómeno a que o nosso colega Reginaldo Silva chamou, e muito bem, de mercado da fé, de modo a que lá onde as coisas escapem à lei fique apenas uma questão de consciência, que seja uma consciência guiada pelo estudo, pelo trabalho, pelo conhecimento e pela informação.
Quando analisamos o que a IURD tem feito neste país eu não tenho a mínima dúvida quando digo que se trata de um perigo para a segurança deste Estado.

Mas neste crescimento, para a IURD reunir os fiéis que tem, para ter acesso às licenças de construção e aos terrenos, e nós sabemos o quão difícil isto é para os cidadãos e para outras instituições angolanas, e eles conseguem com aparente facilidade, isso significa que a IURD penetrou nos vários estratos sociais e não apenas nas camadas mais vulneráveis?

Claramente. É preciso fazer uma análise sociológica dos vários grupos alvo da Universal. E eles fizeram isso muitíssimo bem, se calhar até recorreram a empresas especializadas para o fazer. Por um lado, há o grupo alvo em que estão os mais vulneráveis, os excluídos, aqueles que perderam a esperança… e aí o Executivo, a governação, a guerra, o estado do país têm a sua quota-parte de responsabilidade. Nós temos ainda um número demasiado de excluídos, que acordam, olham para a frente e sentem-se totalmente marginalizados e, pior ainda, perderam a esperança. Este grupo, que é a grande maioria, é aquele ao qual é dirigido o chamado discurso da libertação…
Mas é um grupo para o qual as outras denominações religiosas, as mais tradicionais, também não oferecem respostas…

As outras denominações religiosas também não conseguem ir ao seu encontro. Não conseguem ir ao encontro das suas necessidades e aspirações. Estas igrejas, com o seu discurso de libertação, realmente conseguem. Porque eles conseguem estabelecer uma empatia quase hipnótica com estas pessoas. Então as pessoas começam a sentir-se valorizadas. As pessoas começam a sentir-se amadas. Começam a sentir que, finalmente, uma instituição, de respeito, as valoriza, as aceitam e cria um espaço para elas. E estas pessoas vão para ali. E como é o único lugar onde encontram esta satisfação, daí já não conseguem sair. Mas eles continuam, sobretudo, psicologicamente vulneráveis… acrescenta-se que ou porque são doentes, ou porque têm quaisquer outros tipos de problemas, ou mesmo por causa da pobreza, então eles acabam por ser psicologicamente, sociologicamente, economicamente e, depois, também acabam por ser culturalmente vulneráveis. Porque entram num processo de alienação. São estes que dando o pouco que ganham, na verdade, acabam por ser aqueles que dão a maior parte do que são as receitas da IURD. Depois você tem aquilo a que chamaríamos de classe média. A nossa classe média é o quê? A nossa classe média são funcionários públicos que estão aí, eventualmente migrados de outras igrejas, alguns deles já com alguma formação e experiência religiosa nas outras confissões… estes constituem a maior parte da liderança local. Atenção, digo liderança local porque a liderança da Igreja Universal, não haja qualquer dúvida sobre isso, está nas mãos dos brasileiros. Tanto mais que, se reparar, os próprios pastores e bispos angolanos até adoptaram a pronúncia brasileira. Depois, você tem os nossos endinheirados. E com que discurso a IURD consegue captar os endinheirados? Dizendo: você pode ganhar o céu, melhor, você pode comprar o céu. Estes, seja através do uso da sua influência, em prol da igreja, seja através de doações milionárias, seja através da facilitação, pelo uso de mecanismos não acessíveis ao cidadão normal, ou à empresa normal, fazem com que esta igreja consiga ter esta penetração. Mas esta estratégia tridimensional não é usada apenas em Angola, é usada em vários outros países. Essa é a razão pela qual esta igreja tem muitos problemas nos Estados Unidos da América e no Brasil, porque são países em que as instituições são muito atentas ao tráfico de influências, à extorsão, à chantagem, à charlatanice, à publicidade enganosa. Eles acabam tendo muitos problemas nestes países, porque as instituições reguladoras funcionam. Razão pela qual aí acabam por ter menos receitas. Há estudos, que ainda tenho que comprovar, que dizem que Angola está entre os primeiros países que mais receitas dão à IURD. Isso porque aqui os mecanismos reguladores não funcionam. Aqui em Angola as instituições são facilmente maleáveis, são muito vulneráveis e, principalmente, aqui em Angola, os endinheirados, porque nós não temos ricos, são eles mesmos muito vulneráveis. Eles próprios também são psicologicamente vulneráveis, portanto, presa fácil do discurso libertador da Universal.
Vamos pegar num exemplo: repare naquele anúncio gráfico do Dia do Fim. Como profissional de publicidade, eu podia fazer aquilo a que chamamos de leitura semiótica daquilo. O significado do fogo. Primeiro, o significado da palavra “fim”, DIA DO FIM…

Não é o que se lê, propriamente?
Sabe que publicidade é insinuação… atenção, publicidade é insinuação. Na publicidade o que conta é como ela é percebida, não é como ela é emitida. A publicidade insinua. Portanto, você tem que ir à cultura, você tem que ir à cultura deste país e ir buscar o significado de DIA DO FIM, quando ainda há pouco tempo, e por acaso a deputada Genoveva Lina mencionou isso, quando ainda há pouco tempo o mundo todo estremeceu com um pseudo dia do fim do mundo no dia 21 de Dezembro, portanto, estamos a falar de pouco mais de uma semana antes.

Então foi tudo bem calculado?
Exatamente, veja você o significado do fogo… e eu sou publicitário… em qualquer cultura o fogo tem um significado especial. E nas religiões o fogo tem um significado drástico, escatológico que está ligado ao fim dos tempos, ao inferno. Então você junta estes dois conceitos … e não vou falar da conjunção das cores, porque cada cor tem o seu significado em publicidade. Significado que não é o publicitário que define, é a cultura do grupo alvo que define. Então você analisa aquilo e eu desafio quem queira dizer que não, aquela publicidade para a vigília na Cidadela dizia, tão somente, que olha, se você não vier a esta vigília todas as coisas a que nós vamos dar o fim você não verá o seu fim, que é o feitiço, a falta de emprego, que é o não sei o quê… isto é, tecnicamente, publicidade enganosa. E num país organizado, a instituição reguladora da publicidade já teria feito uma petição ao Ministério Público para que se fizesse uma investigação. Principalmente depois de ter causado um desastre daqueles de que já não ouvíamos falar desde o fim da guerra. Mas aqui o que é que estamos a fazer?

E esperava que se reagisse neste caso quando vemos na televisão todos os dias milagres em pessoas que vão com cancro, SIDA, etc. e que saem de lá curadas? Aliás nem as instituições técnicas e médicas reagem.
Exatamente. Nós temos psicólogos clínicos… e não segredo para ninguém que em psicologia há o que se chama de indução. E isso até joga a favor deles… vejamos o caso do SIDA, há uns que vão lá e são induzidos psicologicamente a pensar que venceram o SIDA. Então, enquanto vivem naquele estado de indução psicológica, o organismo, porque a natureza humana tem forças cujos contornos até hoje ninguém conseguiu definir, a pessoa está num estado de “cura”. Não se esqueça que a definição de saúde é o bem-estar físico e psicológico. Ora, se você tiver um mal-estar físico e conseguir uma extensão da sua dimensão psicológica de maneira a compensar, alcança o bem-estar e a sensação do que tecnicamente chamamos saúde. No dia em que você deixar de, por exemplo, frequentar aquela igreja, e por via disso a força da extensão psicológica diminuir, aí você volta ao estado normal que é o estado de doente. Porque, no fundo, você nunca deixou de estar doente. Mas eles dirão que não, que é porque você deixou de ir à igreja e deixou de ser abençoado. É um exemplo, apenas, até porque eu nem sou psicólogo, nós temos psicólogos aqui.

Do ponto de vista sociológico, quais são os estragos que estão a acontecer na estrutura familiar angolana com o estado de fanatismo em que um dos cônjuges normalmente entra? Quantos casos de separação já tivemos porque um dos cônjuges acabou por largar a família? Até casos de pessoas que venderam os bens e deixaram os familiares na miséria nós conhecemos. O deputado Raul Danda, no FaceBook, publicou, há pouco tempo, uma história de um jovem que começou a namorar com uma jovem que conheceu naquela igreja, uma jovem que estava neste estado de indução psicológica, era seropositiva, e ela, como se sentia bem, tinha vencido o VIH SIDA, começou a namorar com o moço, envolveram-se sexualmente, contaminou o moço, ela acabou por morrer, o moço, hoje, anda aflito nos hospitais e, ainda por cima, na igreja pediram-lhe três mil e quinhentos dólares para ir a uma “fogueira santa” para ele também vencer a doença. Isso contado por um deputado que não é um deputado qualquer, é tão-somente o líder bancada parlamentar do maior partido da Oposição. E o que é que foi feito? Isto porque temos um grupo que joga uma influência muito forte no sentido de abafar os vários escândalos que acontecem na IURD porque eles acreditam que com isso estão a comprar o seu pedaço de céu. Que isto vai apagar todas as coisas más que fizeram no passado, as que estão a fazer no presente e as que vão fazer no futuro. E como as nossas instituições são frágeis, repito, dali vem o grande poder que a IURD tem.

Portanto, quando diz que isso pode pôr em causa a própria segurança nacional isso significa o quê?
Escreva o que eu lhe digo, porque isso aconteceu até no Brasil, nós ainda vamos ter na Igreja Universal, se isso não for travado, uma força que vai determinar a política deste país. Não estou a dizer nada de novo. No Brasil já temos vereadores, deputados estaduais, deputados federais, que são bispos e que são pastores e que estão lá em representação da IURD. É verdade que a nossa organização de Estado é diferente, mas pode crer que eles vão encontrar maneiras, porque agora que eles já têm o poder económico, e até o poder cultural, daqui a pouco tudo o que é da Universal está a falar brasileiro, o que lhes falta é o poder político. E até diria que indirectamente eles já têm poder político, porque lhe posso garantir que se fosse qualquer outra igreja que não a Universal a provocar aquele desastre da Cidadela,já teria levado o seu troco.

Estaria já com as actividades suspensas?
Não…Vou dar-lhe um exemplo recente: lembra-se do caso da Igreja Maná? … O que é que a Igreja Maná fez? O seu chefe ofendeu os dirigentes angolanos e ofendeu os angolanos, dizendo: os angolanos são como os macacos, basta a gente lhes dar uma banana e eles abrem as pernas e a gente passa Eu mesmo, nos meus escritos, insurgi-me contra isso, porque é uma falta de respeito. O que é que aconteceu… em menos de um mês a Igreja Maná tinha sido fechada. E já tinha saído no Diário da República. Os próprios crentes, de um dia para o outro foram ao o templo e encontraram-no fechado.

A Maná tinha menos crentes e menos força que a Universal?
Perante a Lei… existe o princípio da igualdade perante a Lei. E nós não podemos, nem sequer do ponto de vista político, admitir que a Igreja Maná possa ser penalizada porque ofendeu os dirigentes e ofendeu moralmente o povo angolano, que ofendeu, e vamos fechar os olhos à Igreja Universal que provocou um sinistro que atingiu quase duzentas pessoas. E de uma forma deliberada, usando técnicas capciosas, incluindo a publicidade enganosa. Eu até teria simpatia pela IURD se eles tivessem tido a hombridade de, pelo menos reconhecer a responsabilidade moral do que aconteceu. Porque foram eles que convocaram aquelas pessoas para lá, eram eles que tinham a obrigação de criar as condições para que estas coisas não acontecessem. Eu ainda simpatizaria com eles se o discurso fosse: caros concidadãos – e eu não sei se o tal Francisco Dias é brasileiro ou angolano, como falam todos igual … mas parece ser brasileiro … se pelo menos o discurso dissesse – como podem imaginar, em nenhum momento a nossa intenção foi esta, nós fizemos o melhor possível mas, entretanto, isso aconteceu. Assumimos a nossa responsabilidade como entidade organizadora e vamos fazer todos os possíveis para mitigar os resultados do sucedido -. Esse discurso eu entenderia, porque também não vou tão longe ao ponto de dizer que Igreja Universal tenha tido qualquer intenção de provocar uma hecatombe daquelas.

Mas neste caso da Universal, uma igreja que promove tantos milagres e curas, além das desculpas, as pessoas ficam à espera que os pastores e bispos poupem os seus crentes do sofrimento e da dor curando-os, ou fazendo vencer as maleitas, os ferimentos. Os fiéis até responderam a um chamamento, foram com alegria e esperança…
Permita-me um aparte como cidadão apenas. Salvaguarde isso. Mas como cristão isso leva-me ao mandamento “Não evocarás o nome de Deus em vão. Porque caso o faças será amaldiçoado”. E até parece que o próprio Jesus Cristo, em nome de quem falam, fartou-se de tanta charlatanice, fartou-se de tanto abuso do seu nome, que ele próprio quis enviar um sinal para dizer meus amigos eu ando farto disso. Como cidadão sou livre de fazer esta interpretação. Mas como um cidadão responsável e como um líder de opinião que tenho o orgulho de me considerar, neste país que é nosso, o que me deixa triste, e eu senti que … a deputada Genoveva Lina falou duas vezes sobre isto e das duas vezes tocou neste aspecto: é facto que morreu gente que era o sustentáculo de famílias. E aí vê a caracterização que dei do tipo de pessoas que estão na IURD. Terá reparado que nas vítimas a idade média rondava os trinta e oito, trinta e nove anos. Das senhoras que morreram cada uma delas tinha acima de cinco filhos e um rendimento baixíssimo. Eram zungueiras, eram vendedoras. São as tais pessoas carentes, as tais pessoas que olharam para aquela publicidade e disseram então os meus problemas vão ter fim, eu vou. Não há lugar? Eu vou forçar.

Mais uma vez, eu simpatizaria com um discurso de uma Igreja Universal a dizer, e porque eles têm possibilidades para isso: bem, nós vamos assumir a educação destes miúdos. E um Estado responsável não iria permitir que fossem fazer a formação nas escolas deles, iriam para uma instituição do Estado, pagos e sustentados pela Universal. Posses para isso eles têm. Mas não. O que ouvimos é o bispo dizer: nós até estamos a assumir as nossas responsabilidades, estamos a dar a caixa, estamos a pagar o óbito. Eu considero isso uma falta de respeito à nossa inteligência. Não estou emocionado, de maneira nenhuma, mas acho uma falta de respeito às nossas inteligências. Porque há uma contradição ali, que eu espero que o inquérito que está a ser feito vá aprofundar. Se vocês não são responsáveis pelo que aconteceu, porque é que vocês se sentem na obrigação de dar a caixa e pagar as despesas do óbito? Na nossa cultura, quem faz isso ou é familiar ou é a pessoa responsável pela morte. Se eu atropelar alguém e essa pessoa morrer eu já sei que tenho de pagar a caixa e as despesas com o óbito. É assim na nossa cultura e é isso que diz a nossa praxis cultural. Então o que é que está a querer dizer-me? Você pagou uma caixa (que por acaso eram luxuosas), duzentos ou trezentos mil, talvez, deu dois ou três mil dólares para as despesas do óbito, sei lá, e você lava as mãos? E aquelas crianças, quem é que as vai sustentar? Aquelas crianças que perderam a mãe, que, como dizia muita gente, era o sustentáculo da família, … e o futuro daquelas crianças como é que fica? É ao Estado angolano que pertence salvaguardar estas coisas. E eu estou curioso agora, estou a gostar do facto de a sociedade angolana estar a agir, do meu ponto de vista, com muita maturidade… eu sinto que as pessoas estão à espera para ver o que é que vai sair deste famoso inquérito. Porque as coisas não podem ficar assim.

Há o risco de termos alguma agitação social com base religiosa, se o resultado do inquérito não satisfizer uma parte da sociedade?… se as pessoas sentirem que a IURD terá sido ilibada das suas responsabilidades?
O que prevejo é que se esta mensagem passar, não digo que haja uma revolta, ou uma convulsão, porque graças a Deus os angolanos estão fartos de confusão, e é por isso que aparecem charlatães brasileiros e portugueses e de outras nacionalidades… como sabem que o angolano, por enquanto, está disposto a sacrificar quase tudo pela paz, abusam. Não apenas no campo religioso, noutros também. Mas eu prevejo uma reacção bastante vigorosa da sociedade civil e dos intelectuais porque, de uma maneira geral, as elites intelectuais angolanas não se identificam com a Igreja Universal, antes pelo contrário. Só que, sinto, nunca houve nada que os mobilizasse para fazerem disso uma causa. Até porque as pessoas estão preocupadas com outras coisas. Eu diria que o Executivo, por um lado, mas o Legislativo também e o Judicial pior um pouco, iriam sair muito mal na fotografia. E poderia haver depois um preço político, porque apesar de a Igreja Universal ser useira e vezeira em fazer demonstrações de força, mormente a números, a Universal, nem de perto nem de longe tem o peso que diz ter. E quando se tratar de fazer as contas, do ponto de vista político, o partido ou os partidos que decidam guardar todos os seus ovos num só cesto, o da Universal, podem ter surpresas desagradáveis.

Olhando para o que se publicou no fim-de-semana, ante a tragédia da Cidadela, e por aquilo que é espectável que se venha a publicar nos próximos tempos, estamos perante a abertura de uma guerra entre a comunicação social e alguns jornalistas e a Igreja Universal em Angola?
A Universal sempre esteve em guerra com a comunicação social em Angola. Só não atacou mais porque a própria comunicação social também teve outros temas no seu agenda seting. Eu, talvez por naquela altura ter tido uma coluna livre… agora fico preso às pautas do meu órgão, como achava insólito fiz aquelas matérias, tal como os irritou o Canzala Filho com as suas matérias satíricas no Semanário Angolense. Eles abriram guerra com o Semanário Angolense. Se reparar, a IURD não põe publicidade no Semanário Angolense, e nem sei se convidou o SA para a sua conferência de imprensa dias depois da tragédia. E porque se trata de vidas humanas, de alienação religiosa e cultural e porque até o secretário-geral da FIFA mandou uma nota de condolências porque aquilo aconteceu num estádio e a Cidadela e os nossos estádios passam a ser vistos com desconfiança, por tudo isso, julgo que para a comunicação social isso não pode ficar assim. Ou, no mínimo, a verdade tem que vir ao de cima. Eu diria que se aproximam tempos de uma relação menos dócil, como disse o Reginaldo Silva, não só com a comunicação social, como, acredito eu, com o próprio Executivo, porque não estou a ver o Executivo a fechar os olhos a este incidente. Foi grave demais.
Aos órgãos da comunicação social não vai fazer falta o dinheiro da IURD, na semana anterior à tragédia a IURD anunciava quase que de quinze em quinze minutos nas rádios, televisões, esteve nos jornais…

Esse é o dilema dos órgãos de comunicação social. Eu tenho dito, e já participei em um ou dois estudos sobre a sustentabilidade da media, e tenho dito que aí o Estado falha com as suas responsabilidades, porque a comunicação social é um pilar fundamental do processo de desenvolvimento, em todas as áreas de um país e não pode ser vulnerável. É por isso que existe legislação para que o Estado subsidie, seja em termos de benefícios fiscais, ou noutros, porque não faz sentido que O PAÍS, pague pelo papel o mêsmo que uma empresa de construção, porque O PAÍS é um jornal e o papel é uma matéria-prima fundamental para o bom exercício da sua actividade e para a diminuição do preço de capa. Os nossos jornais são caríssimos. Porque os Estado não o faz, os órgãos de comunicação tornam-se vulneráveis. E a media estará susceptível aos esforços que a Igreja Universal está a fazer no sentido de abafar este caso, que se fale nisso o menos possível, apesar de ter morrido gente. Mas isso dependerá da consciência de cada grupo redactorial.

Sendo que são pessoas individuais que tomam as dores da IURD para processar quem acham que os está a difamar, pode-se esperar, dependendo, obviamente, dos resultados do inquérito, que um grupo de cidadãos vá processar a IURD por causa do que aconteceu na Cidadela?
Até pode ser, mas não deveria ser assim. Para mim deveria ser o Ministério Público a liderar o inquérito, mas acho que eles estão à espera da investigação da DNIC, que lhes deverá reportar. Entretanto, o Presidente da República criou uma Comissão de Inquérito com um despacho claro que dá quinze dias à Comissão para reportar ao Presidente da República, o que significa que há uma vertente política neste inquérito. Isso significa que o Presidente vai tomar conhecimento e poderá, ou não, tomar quaisquer medidas em relação a isso. Se houver que desencadear um processo criminal esse virá da investigação que a DNIC está a fazer.
Mas soube também que os deputados da Assembleia Nacional se estão a preparar para abordar este assunto, independentemente dos resultados das investigações e da Comissão do Executivo. Resta-nos esperar pelo pronunciamento da PGR sobre as conclusões da investigação da DNIC. Há sinais de que isto está a mexer com as estruturas do Estado…

O caso da Cidadela ou toda a actividade da IURD?
O caso da Cidadela acabou por ser a ponta do iceberg. A não ser que queiramos fazer como a avestruz, escondamos a cabeça na areia e finjamos que não passou de um incidente. A tragédia da Cidadela foi a ponta do iceberg e quanto mais mergulharmos saberemos que será difícil ver-lhe o fundo, do tanto que está inserido. Do desastre da Cidadela, e acho que se deveria ter declarado luto nacional… ou pelo menos provincial, mas acho que a Cidadela pode ter-nos mostrado que andámos distraídos este tempo todo e temos cá um problema, uma chaga que será difícil de extirpar, ou vai atingir um estado de gangrena com que será difícil lidar e que põe em causa a integridade da nossa Nação.
A Universal estará em Angola há cerca de vinte anos. Olhando para a qualidade dos seus pastores, leva-nos a pensar que o processo de formação de um pastor ou padre normalmente é moroso…
Naquela igreja não me parece. Eu vejo pessoas que entram para aquela igreja e dois anos depois já são pastores. Pessoas que antes não tinham nenhuma cultura religiosa, para não dizer estudo e são pastores. Vejo pessoas que depois de quatro, cinco anos já são bispos…

É um bom campo para ‘chico-espertos’?
É um bom campo para ‘chico-espertos’, principalmente para aqueles que têm a capacidade daquilo que nós chamamos, no português angolano, de ‘chacho’. Para conseguir angariar fundos, conseguir extorquir. Eu diria que a formação dos pastores da IURD é bastante débil. Digo isso com conhecimento de causa. Se calhar a maior parte deles tem uma formação religiosa muito inferior à minha, e eu estou muito longe de considerar que tenho quaisquer estudos religiosos por aí além. Nas igrejas tradicionais, realmente, a formação de um pastor leva entre oito a doze anos. Normalmente há uma fase de filosofia e depois a de teologia. Os pastores protestantes fazem quatro anos de filosofia e depois quatro de teologia e os padres católicos fazem dois anos de propedêutico, depois quatro anos de filosofia e depois mais quatro anos de teologia, totalizando dez. Para ser-se bispo, ou líder religioso equivalente a bispo, como o reverendo Luís Nguimbi, para não falar dos bispos metodistas, como o reverendo Belo Chipenda, tem que se ter, no mínimo, entre quinze a vinte anos de pastoreio. O mesmo na Igreja Católica, para ser bispo, não conheço ninguém, pelo menos aqui em Angola, que tenha sido bispo com menos de quinze anos como padre. Mas na Universal você vê pessoas que a gente conheceu até nos nossos tempos de partido único, eram aqueles que andavam por aí a dizer que Deus não existe, e hoje são os ditos bispos que nos querem dizer que nós é que somos os pecadores, quando antes eram os que nos punham na cadeia porque nos chamavam de idealistas.

Esta falta de formação pode ser um dos problemas e uma das razões dos excessos da Universal?
O que é preciso compreender, eu insisto nisso, é que o objectivo da Igreja Universal não é a propagação da fé, ou do Evangelho, se preferir. Não é. E eu vou continuar a bater nesta tecla e se calhar isso vai continuar a trazer-me problemas, mas eu ainda quero dormir descansado. O objectivo da Igreja Universal é o lucro! O angariamento dos fundos, dos dinheiros dos fiéis. Este é que é o seu objectivo. Portanto, os critérios, tanto de selecção como de progressão, ou promoção, se preferir, dos seus líderes, são totalmente diferentes daquilo que você está habituado a ver nas igrejas protestantes tradicionais. Até porque eles inventaram a Teologia da Prosperidade, que quer dizer que quantos mais sinais de riqueza você ostenta, mais você passa a mensagem de que você é abençoado por Deus. Mensagem esta que colide com o que o próprio Jesus dizia dos fariseus, que são os que andavam com os cabelos perfumados, os que andavam com as túnicas debruadas de ouro. Sabe como é que Jesus lhes chamou? Sepulcros caiados. Na brincadeira eu costumo dizer que foi isso que determinou a inimizade de Cristo com os fariseus. Sepulcro caiado é o quê… os sepulcros judeus eram, como ainda hoje, pintados de branco, por fora todos muito bonitos, mas por dentro têm um corpo corrupto, em decomposição. Portanto, o termo sepulcros caiados aplica-se àquelas pessoas que denotam sinais de riqueza e de santidade mas que fogem daquilo que são os valores evangélicos de base. Os valores evangélicos de base estão resumidos numa frase só: Amarás o Senhor teu Deus acima de todas as coisas e amarás o teu próximo como a ti mesmo! Foi o resumo que o próprio Cristo fez daquilo que hoje se chama de resumo do Evangelho, da mensagem que ele próprio veio trazer. Ora, como é que podes dizer que amas o teu irmão como a ti mesmo quando consegues fazer com que ele seja contaminado por doenças, consegues fazer com que ele perca os seus bens para vir trazer os dízimos e outras contribuições à igreja, quando você, agora, olha para aquela órfãos … as outras igrejas vão buscar órfãos lá longe e põem em lares, a Igreja Universal cria órfãos. Se calhar não vai ter a hombridade, nem a responsabilidade, chame-se social, evangélica, religiosa, ou cívica, de dizer: estes tornaram-se órfãos numa actividade que eu organizei e então deixa-me tomar conta deles… Você faria isso. Se você tivesse organizado alguma coisa em que um amigo seu tivesse perdido a vida você sentiria o peso de consciência, sentir-se-ia responsável e faria o que pudesse pelos miúdos. Da IURD, até agora eu não ouvi nenhuma declaração a dizer que o vão fazer. É isto que se está a querer considerar uma igreja.

*Este artigo foi origianlmente publicado em O país, http://www.opais.net/pt/opais/?det=30707&id=1647&mid=1550

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***Celso Malavoneke é jornalista e docente