Representações Sociais e Racismo no Brasil
Nessa pesquisa, busca-se compreender quais são as representações sociais de estudantes universitários negros, que ingressaram em uma universidade federal pública no contexto do primeiro ano de implementação do Programa de Ações Afirmativas, acerca das relações estabelecidas entre negritude, educação e trabalho. Portanto, a compreensão de como se dá o fenômeno do racismo, à luz desta teoria pode contribuir para que se possa pensar a diversidade de representações desses estudantes.
A questão do negro brasileiro há muito inquieta e mobiliza intelectuais na busca de esclarecer os percalços percorridos pela população negra, dado o lugar social a ela destinado desde o tráfico de escravos. Essa inquietação é devida aos impactos subjetivos e sociais derivados das experiências das vivências como vítimas de um sistema de privilégios de brancos e prejuízos de negros, pautado em práticas racistas que estigmatizam e inferiorizam a população negra. Para estudar as representações sociais do racismo é preciso que lancemos mão de alguns conceitos, como alteridade, intersubjetividade e identidade, conforme sugerido por Jodelet (2001) e Guareschi (2001). Os estudos de representações sociais que perpassam questões referentes ao racismo têm situado a ocorrência deste fenômeno como decorrência da instauração de uma alteridade-radical, fruto da fenda social existente entre brancos e negros (JODELET, 2001).
Trata-se de um processo que se dá no nível da intersubjetividade, campo onde afloram as representações sociais. É na dinâmica eu X outro, das relações sociais, que emergem representações situando identidade e alteridade.Dentro de qualquer cultura há pontos de tensão e de fratura, e é ao redor desses pontos de clivagem no sistema representacional duma cultura que as novas representações emergem. Nestes pontos de clivagem há uma falta de sentido, um ponto onde o não-familiar aparece. Assim, da mesma forma como a natureza não aprecia o vácuo, assim também a cultura não suporta a ausência de sentido, engendrando elaborações representacionais para familiarizar o não-familiar, e assim, restabelecer um sentido de estabilidade (JODELET, 2001). Para o grupo dominante branco, o negro constitui um sujeito cujas características físicas e culturais fogem daquilo que “deveriam” ser, uma vez que diferem enormemente da “norma” branca. Assim, com o intuito de “familiarizar” a não-familiaridade negra, o grupo hegemônico tece representações sociais que, de um lado, desqualificam o negro, e de outro buscam assimilá-lo, levando-o a aderir a representações sociais e identidades brancas.
Pode-se dizer que o negro brasileiro encontra-se numa situação de clivagem social e simbólica. Apesar do fato desta ocorrência não ser suportada por meios oficiais explícitos, verifica-se que a população negra encontra-se à margem da sociedade, num processo de prejuízo social. Os indicadores sociais (HENRIQUES, 2001) da população negra demonstram esse quadro de privação de direitos básicos, o qual se apóia em princípios e representações racistas difundidos desde a era colonial. De acordo com Moscovici (2003) as representações sociais emergem a partir desses pontos duradouros de conflito, dentro das estruturas representacionais da própria cultura, por exemplo, na tensão entre o reconhecimento formal da universalidade dos “direitos do homem”, e sua negação a grupos sociais específicos dentro da sociedade, como é o caso dos negros.
Sem a diferença do mundo externo não se produzem os parâmetros que possibilitam ao eu a construção de seu próprio sentido, não apenas em termos de sua existência, mas principalmente de sua identidade. A identidade do interno sempre emerge em relação à identidade do externo. Para ser o portador de uma identidade, o sujeito precisa reconhecer aquilo que ele não é, e mais do que isso, estabelecer uma relação com aquilo que não é. Contudo, conforme Moscovici (2003) o medo do que é estranho é profundamente arraigado. Isso se deve ao fato de que a ameaça de perder os marcos referenciais, de perder contato com o que propicia um sentido de continuidade, de compreensão mútua, é uma ameaça insuportável. E quando a alteridade é jogada sobre nós, na forma de algo que “não é exatamente” como deveria ser, nós instintivamente a rejeitamos, porque ela ameaça a ordem estabelecida.
Visando defender-se da ameaça da negritude o grupo dominante branco elabora representações e práticas para “conter” a ameaça do outro, o negro. Assim são produzidas representações pejorativas que são difundidas e veiculadas no e pelo grupo social dominante. Conforme demonstra André (2007), cerca de 50 milhões de africanos foram trazidos ao Brasil durante mais de 300 anos de escravidão, advindos principalmente das possessões portuguesas de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné Bissau. Esses povos foram os primeiros a receber a nomeação de “negros inferiores”. As construções a partir de tais idéias acerca do negro conferiram-lhe uma posição ideologicamente constituída de estereótipos, tais como os descritos a seguir:
• O negro é um ser inferior - intelectual, emocional e socialmente;
• O negro representa: falta de moralidade, signo de morte e corrupção; em contrapartida, o branco, signo de vida e de pureza.
• O negro não é civilizado.
• O negro é propenso a ser criminoso.
As representações sociais emergem, portanto, não apenas como um modo de compreender um objeto particular, mas também como uma forma em que o sujeito adquire uma capacidade de definição, uma função de identidade que é uma das maneiras como as representações expressam seu valor simbólico.
De acordo com Jodelet (2002) a alteridade é um duplo processo de construção e de exclusão social que, indissoluvelmente ligados como os dois lados duma mesma moeda, mantêm sua unidade por meio dum sistema de representações. Assim, a perspectiva aberta pela abordagem das representações sociais fornece os meios para se levar em consideração as dimensões simbólicas subjacentes a toda relação com a alteridade. Colocar em perspectiva as relações com o outro, a pertença social e a sua tradução nas manifestações concretas da vida e da produção social abre caminho para a aproximação à alteridade radical. Esta última terá sua expressão ideal-típica e extrema no racismo, considerado um “fenômeno total”, na medida em que se constrói ao mesmo tempo nas práticas e discursos, supondo representações, teorização e organização dos afetos. No quadro das práticas perfazem-se as diferentes formas de violência, desprezo, intolerância, humilhação, exclusão; os discursos veiculam representações e teorias.
Essas representações se caracterizam por serem elaborações intelectuais de um fantasma de inspeção, sondagem e vigília. Articuladas em torno das marcas da diferença, elas estariam constantemente retomando a necessidade de purificar o corpo social, proteger a identidade de si e do nós de toda promiscuidade, de toda mestiçagem tidas como risco de invasão. As teorias, por sua vez, seriam “racionalizadas” por intelectuais. Essas representações e teorias organizam os afetos cuja forma obsessiva e irracional conduz à elaboração de estereótipos que definem tanto os alvos quanto os portadores do racismo. Tal combinação de práticas, discursos, representações, estereótipos afetivos vai explicar ao mesmo tempo a formação de uma “comunidade de racistas” entre os quais existem laços de imitação, e da pressão que leva as vítimas do racismo a se aperceberem como comunidade (JODELET, 2001).
Essa análise permite pôr em evidência a parte das representações na construção do fenômeno racista e esclarecer seu papel na produção da alteridade. Esse papel é explicitado pela análise das formas específicas do racismo correspondentes a épocas ou conjunturas sociopolíticas distintas. Opõe-se de um lado, um “racismo auto-referencial”, cujos termos estabelecem a superioridade hierárquica do racista – que é detentor de poder, e de outro um “racismo hetero-referencial” ou “heterofóbico”, que imputa às características da vítima a alocação num lugar de inferioridade. Essas construções traduzem-se em formas de relação social marcadas seja pela exclusão – que pode ir até o extermínio numa perspectiva de proteção contra a “contaminação”; de purificação – seja pela opressão, a exploração, numa perspectiva de inserção hierarquizada e compartimentação social. Observa-se, assim, a propósito de formulações variadas da alteridade radical instituída pelo racismo, que representações e práticas encontram-se estreitamente associadas.
Todas as coisas, tópicos ou pessoas banidas ou remotas, todos os que foram exilados das fronteiras concretas do nosso universo possuem características imaginárias; e pré-ocupam e incomodam exatamente porque estão aqui sem estar aqui; eles são percebidos, sem ser percebidos. Sua irrealidade se torna evidente quando se está em sua presença; quando sua realidade é imposta sobre nós. Então, algo que nós pensávamos como imaginação, se torna realidade diante de nossos próprios olhos; nós podemos ver e tocar algo que nós éramos proibidos.
Temos, assim, a hipótese de que a invisibilidade do sujeito negro na sociedade brasileira ganha novas formas quando é implementado um sistema de reserva de vagas para indivíduos negros na educação superior pública. É, então, que se passa a enxergar o indivíduo negro. A alteridade negra é posta, de forma escancarada, sobre os privilégios do grupo dominante. É neste contexto que todo o passado histórico se revela ainda atual. A pretensa harmonia representada na idéia de democracia racial é denunciada. Configura-se a discussão de forma desnuda: no debate aberto, com suas contradições à flor da pele (FERREIRA, 2007). Uns reivindicam a garantia de seus direitos e outros a garantia da permanência de seus privilégios, sob a forma abstrata da meritocracia.
Tanto o sujeito negro como a mulher foram historicamente construídos por representações marcadas pela violência simbólica e por um conjunto de exclusões. Mas, ambos (e certamente a mulher negra com mais esforço) lutaram, e lutam, para não serem reduzidos a essas representações. Produzir contra-representações, outras representações, que não reduzam a objetividade da condição negra e feminina às tentativas de lhe construir enquanto negatividade tem sido parte da luta dos movimentos negros e do movimento de mulheres. Nestes casos, é preciso manter a distinção entre a representação e o objeto, porque é na pluralidade dos processos representacionais que reside a possibilidade de manter o objeto aberto para as tentativas constantes de (re) significação que lhe são dirigidas. E, é neste campo que se fazem necessárias a atuação do psicólogo social e a realização de estudos como o presente.
Referências Bibliográficas
ANDRÉ, M. C. Psicossociologia e Negritude: breve reflexão sobre o “ser negro” no Brasil. Boletim Academia Paulista de Psicologia, p. 87-102, 2007.
FERREIRA, R. F. e MATTOS, R. M. O afro-brasileiro e o debate sobre o sistema de cotas: um enfoque psicossocial. Psicologia Ciência e Profissão, vol. 27, no.1, p.46-63, 2007.
HENRIQUES, R. Desigualdade Racial no Brasil: Evolução das condições de vida na década de 90. Rio de Janeiro: IPEA, 2001.
JODELET, D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, D. As representações sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001b. p. 17-43.
JODELET, D. A alteridade como produto e processo psicossocial. In: Arruda Angela (org), Representando a alteridade. 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social.
* As autoras são psicólogas em São Carlos, São Paulo
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