O sólito e o insólito em Adriano Botelho

A narrativa africana de língua portuguesa.
Por Jurema Oliveira

Assim como o camponês aprende a trabalhar a terra, o poeta aprende a trabalhar com a palavra, aprende a não dizer demais e a não dizer de menos, aprende a sugerir. A poesia não deve fazer mais que sugerir; ela é um compromisso entre a palavra e o silêncio, não o silêncio de quem não tem nada para dizer, mas o silêncio que é o sumo de muita coisa. Então o poeta traduz. Ele é uma boca, e deve ser a boca daqueles que não têm boca (BARBEITOS, 2004, p.8).

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfaz a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
(VINICIUS, 2001, p.41)

O presente trabalho tem por objetivo ler criticamente o processo de construção poética de Adriano Botelho de Vasconcelos, autor de Voz da terra (1983), Vidas de sonhar (1975), Células de ilusão armada (1983), Anamnese (1984), Emoções (1988), Abismos de silêncio (1992), Tábua, Grande Prêmio Sonangol de Literatura (2003), Luanary (2007) e organizador de diversas coletâneas de conto e de poesia. Cabe ressaltar, no entanto, que apesar do destaque dado aqui ao projeto estético de Adriano Botelho de Vasconcelos, o caminho trilhado por diversos poetas e romancistas africanos de língua portuguesa é marcado por imagens insólitas oriundas de experiências violentas durante a colonização e pós-independência, no processo de consolidação do Estado / Nação.

A força da narrativa e da poesia africana de língua portuguesa está em linhas gerais envolta num universo repleto de elementos retratadores do substrato violência oriunda dos fenômenos sociais e políticos. Esta marca ora se apresenta de forma sutil, ora de forma explosiva, ora mítica em conflito decorrente do descompasso dos valores da tradição, transformados abruptamente durante os anos de colonização e guerra civil.

Autores como: Boaventura Cardoso, João Melo, Arlindo Barbeitos, Isaquiel Cori (Angola); Mia Couto, Paulina Chiziane, Ba Ka Khosa, João Paulo Borges Coelho (Moçambique); Abdulai Sila (Guiné Bissau); Dina Salústio, Vera Duarte (Cabo Verde); entre outros exploram em sua poesia ou romances o duplo sólito / insólito na busca pelo som que possa perpetuar e dar forma e movimento a idéia de liberdade, que não nasce da pedra, mas das ações humanas.

O suporte teórico usado aqui foi a visão acerca da violência pensada por Hannah Arendt em Sobre a violência e o ensaio sobre a imaginação da matéria de Gaston Bachelard. Sobre a violência representa um repensar o tema violência, tão recorrente no século XX, que presenciou conflitos como: a rebelião estudantil de 1968, a guerra do Vietnã e, no âmbito do debate / discussão, a violência apontada pela nova esquerda como uma forma de resistência à opressão, em especial no processo de descolonização dos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os outros homens, mas de acordo com Hannah Arendt a violência destrói o poder, não o cria (ARENDT, 2001, p.8).

O discurso poético de Vasconcelos repousa ora na imaginação material, ora nos substratos da violência. As vozes representadas na poesia deste escritor guardam as marcas insólitas provocadas pelas ações violentas desmedidas. Esta prática independe de números, mas quando ela encontra respaldo no conjunto, no coletivo, torna-se mais perigosa. Sendo assim, tanto nas práticas militares quanto nas revolucionárias a idéia de individualidade desaparece e dá lugar a uma espécie de coerência grupal, um sentimento intenso de união, de vínculo aos princípios básicos da violência pela violência, que encontra motivação no ódio profundo contra os seus opositores, mas também contra os seus pares.

A violência, um instrumento por natureza, “é racional à medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la”(ARENDT, 2001, p.57). O uso desta estratégia pode reformular o sistema vigente, mas não significa uma revolução ampla e muitas vezes serve para desintegrar, desfazer os elos unificadores das práticas sociais e políticas, chegando a atingir a barbárie, o caos total, abrindo no seio da sociedade um “abismo de silêncio”.
Desta forma, a violência neutraliza toda e qualquer possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e conseqüentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num espelho d’água embaçado.

Diante disso, pode-se dizer que a escrita poética reinterpreta com imagens díspares, mas também reflexivas as práticas e os efeitos das ações violentas. A escrita literária permite o distanciamento da vida cotidiana, a suspensão dos acontecimentos. Ela põe em movimento outro sentido, desloca as falas de seu lugar habitual, dando nova roupagem à idéia de apagamento, de censura promovida pelo discurso oficial e abre espaço a circulação da heterogeneidade identitária e discursiva.

As forças imagéticas da mente trilham dois caminhos distintos. Um caminho encontra sua pulsão no novo, na surpresa, no admirável, enquanto que o outro caminho tem sua sustentação escavando a cavidade do ser para explicar aquilo que é mutável e imutável, interior e exterior da imagem guardada nos lugares mais remotos da memória:

Abra-se a cortina de coisas passadas e sem o artifício de nenhum segredo sem essa falta de lugar para a terra do nosso panfleto reclamando imagens de gaivotas recolham-se nossos bens antigos nos estuários subterrâneos onde deságuam os veios da nossa memória onde tudo se vive sem se descobrir a solidão (VASCONCELOS, 1996, p.15).

A imagem da causa formal/sentimental motivada pelos desejos do coração opõe-se a uma outra oriunda da causa material. Esta imagem material deve ser selecionada, separada das recordações recentes, pois ela tem um peso, uma consistência para alimentar o devaneio criador e se distinguir do fato superficial, das motivações do coração que impulsionam a busca pela palavra ideal na construção do discurso poético. As energias diversas provenientes da causa formal e da causa material estão intrinsecamente ligadas, logo separá-las completamente é quase impossível: O devaneio mais móvel, mais metamorfoseante, mais totalmente entregue às formas, guarda ainda assim um lastro, uma densidade, uma lentidão, uma germinação. Em compensação, toda obra poética que mergulha muito profundamente no germe do ser para encontrar a sólida constância e a bela monotonia da matéria, toda obra poética que adquire suas forças na ação vigilante de uma causa substancial deve, mesmo assim, florescer, adornar-se. Deve acolher, para a primeira sedução do leitor, as exuberâncias da beleza formal (BACHELARD, 1997, p.2).

O sujeito de criação precisa ter um domínio preciso da palavra, o uso conciso dos termos e concretude para expressar os mais profundos sentimentos recompondo, assim, o cenário material de um tempo em que “o silêncio é um mar perdido na boca dos peixes”(VASCVONCELOS, 1996, p.22).

A obra poética que mergulha na cavidade do ser pode não produzir as flores da leveza, mas funda um novo referencial imagético. Desta matéria floresce flores negras, com o peso e as cores escuras que lhe são peculiares. As imagens impactantes produzem no leitor encanto e desencanto, alegria e sofrimento, leveza e densidade. Por mais que se queiram separar as forças imagéticas produzidas pela mente, o campo poético se encarrega de unir causa formal e causa material. A motivação do sujeito de enunciação advém geralmente da necessidade de expor sentimentos submersos na memória:

A morte pode com salivas de silêncio apagar o nome das coisas, só a ausência aniquila o sangue até as velhas atarem uma canção nos terços dos destinos. O meu nome é tinteiro derramado no cimento da madrugada. Vejo tombar a guitarra dos meus sonhos e o nome das coisas, como uma cor funda de esquecimento que desfaz em pó as gaivotas da existência, com uma velocidade que só deixa o poder das mães serenar a aflição do futuro, nenhuma palavra memoriza imagens, tudo se apaga como um sino que recebe o vazio mais fundo da música (VASCONCELOS, 1996, p.22).

A valorização da matéria se dá em dois planos: no plano mais profundo e pelo impulso. O primeiro exige do poeta um trabalho no cerne da imagem evocada, enquanto o segundo resulta das sensações sensíveis provenientes das emoções: “No sentido do aprofundamento, ela aparece como insondável como um mistério. No sentido do impulso, surge como uma força inexaurível, como um milagre”(BACHELARD, 1997, p.2). Desta forma, lembrar significa recuperar as experiências individuais e coletivas. A matéria lembrada, oriunda da imagem profunda, precisa ser trabalhada para expressar ao leitor toda sua substância ao passo que a outra é resultante das imagens poéticas operadas para dar um colorido, uma leveza aquela resgatada do interior do ser.

Vasconcelos busca seu devaneio criador numa matéria líquida, a água solidificada na imaginação profunda, com regras próprias, específicas. O poeta procura entender o descompasso do universo material a partir dos princípios, da formação do mundo visível e para corporificar esta idéia mergulha no interior da matéria primordial, depreendendo, assim, na linguagem poética o destino dos homens metamorfoseado numa água que se esvai e deságua pelos veios da memória:
Esse choro que desde há muito tocava as pálpebras: o dia que a morte destruíra, notícias de invasões, doenças e algemas que apodreceram o sangue... tudo visto por dentro num desequilíbrio de anseios. Batem à porta. Nenhum vinho de palmeira manteve o cemitério debaixo dos panos de imbondeiro. Os caixões incham diante da porta, há uma ferida nos dedos: o medo. È à porta de nossas casas que os dias saem do sítio dos epitáfios e o vinho de palmeira deitado por nossas mãos arranja o sono a meio da primavera. Os nomes são um lugar que a morte dominou por dentro da dança erguendo-os em pedra. Esse choro que desde há muito tocava as pálpebras (VASCONCELOS, 1996, p.28).

De acordo com Bachelard “toda água viva é uma água que está a ponto de morrer”(BACHELARD, 1997, p.49). Esta matéria viva tem como destino a perda do brilho, o entorpecimento e conseqüentemente o apagamento da existência, sendo assim, a imaginação da água profunda se define como a absorção do sofrimento, temática explorada por Vasconcelos em sua poética.
Logo, detectar o caminho, a construção do sólito e do insólito na obra deste autor é também verificar os contornos imagéticos da violência geradores da ausência de vida e produtores da estética proveniente do devaneio da morte. As ações violentas acabam por fundar no âmago de uma água clara as marcas sombrias, instauradoras de diversas figuras e fúnebres murmúrios, registrados na folha de papel:

Ah! Se tudo pudesse ser recomeçado no mesmo barro que fez toda a tua infância e se pudesse ouvir o murmúrio das mães que são quem mais sentem nos olhos os sinais dos destinos que por vezes ganham forma de esquife numa simples chávena de café. E vamos deixando mais desconfianças e ciladas para que não se ame os irmãos que estiveram sentados à mesa do mesmo soba. Não podemos comparar as realidades cada vez mais tudo parece um ensaio e não se pode saber se o que se diz faz parte de um belo engano. Não é fácil preferir o interior de nós mesmos. Os espelhos ocupam os espaços e toda a figura já foi um avesso ou o mais perfeito disfarce. Faltou-nos um pincel para deixar os sinais nas paredes como fizeram os apóstolos de todas as tragédias. Não se pode virar pelo contentamento uma página sem que lhe acompanhe em vergonha o sangue e uma pressa em querer que a amnésia solte a piedade. Pelo coração se pode perdoar assim como no pasto no Humby quem mais envelhece são as cabras que comeram as pedras e puderam no lugar da luz e da sua higiene levar os homens para a calçada em madeira antiga que fizeram a nave dos mares (VASCONCELOS, 2004, p.48).

Pensar os processos variáveis, móveis, distintos que envolvem a imaginação da matéria implica ler as representações simbólicas que consolidam o devaneio criador. Vasconcelos encontra a unidade imaginada nas experiências de um sujeito poético que preenche o vazio deixado pela violência e violação dos direitos humanos num tempo de utopias sonhadas.

Este vazio são os sinais refletidos num espelho que não condiz com a teoria do espelhamento social de organização para garantir o equilíbrio da vida comunitária. Segundo Boaventura de Sousa Santos, “são os espelhos que, ao criar sistemas e práticas de semelhança, correspondência e identidade, asseguram a vida em sociedade”(SANTOS, 2002, p.47-8).

Desta forma, recorrendo à força da narração em discurso direto Vasconcelos atualiza o episódio, fazendo emergir da situação a personagem, tornando-a viva para o ouvinte, à maneira de uma cena teatral, em que o sujeito poético desempenha muitas vezes a função de indicador das falas. Estas, na reprodução direta, ganham naturalidade e vivacidade, enriquecidas por elementos lingüísticos tais como exclamações, interrogações, interjeições, vocativos e imperativos, características típicas da oralidade. O universo estético do autor angolano se assemelha ao do escritor brasileiro João Cabral de Melo Neto, ambos valorizam a estrutura poético-narrativa, recurso próprio do romance.

As vozes evocadas sucumbiram e só pela imaginação se materializam. Sendo assim, o eu poético nos apresenta seus personagens:

Nas bandejas de prata vejo mulheres que seguram as terrinas de xaropes feitos de muitas ervas que cresceram na mão do Diabo. O vinho
– apesar da intensa beleza do cálice –
conheço-o dividido porque os mortos que não foram enterrados não querem ser esquecidos e através do seu néctar deixam âncoras nas mazelas da sanzala. Podes tirar-me através do batuque a tarde como se desfaz um bordado, pois é nessa altura que cuido de desfazer-me das desilusões quando o céu não serve para aumentar a imortalidade. Oh, amor!... Tombaram os homens primeiro que os sonhos como se tivéssemos como proveito uma série de desgraças que não podem fazer uma desculpa, mas só os sonhos que partem da lucidez podem encontrar um novo barro que aceite as mãos de um Deus mais perto de nós (VASCONCELOS, 2005, p.44).
Resgatando aqui a visão de Bachelard acerca das águas densas, pode-se dizer que são essas águas espessas, sólidas e profundas a substância base da criação deste poeta. O destino das águas é escurecer, tornar-se pesada, mas é dessa água turva, inerte, imagem recorrente na poesia deste autor, que se percebe os movimentos dos sonhadores:

As mães levantam as fotos dos filhos e o dia treme perto do mais longo instante e o horizonte que sempre fez os sonhadores e os amantes fica coberto de camisas com vestígios de vida. É o requinte da ilusão que faz o enlace sobre ti de duas gaivotas. Outra foto com o Aires ocupa o que mais se dispõe com a infância porque todo o gesto passa pela identidade do que sempre se perde e a aurora é uma trave sobre o horizonte que se deixa enganar por quatro paredes: “Oh, rei grande, vens devolver os nossos filhos sem que em habilidade todo o cemitério nos faça permanecer sentadas nos passeios dos manicômios?”. “Oh, pobres mães, até parece que estais muito perto do horizonte, só aí a vida se faz num barco veloz e forte e parece uma nave habitada. A sua trajectória é fixa como um leão dispara a sua energia numa só impala que parece embrulhada numa folha de prata que parece o brilho mais forte do dia. Levantam poeiras em caracol e deixas a minha ira mais viva do que a força das vossas dores que não entendem como numa mesa se faz o jogo”. (VASCONCELOS, 2007, p.48).

O sujeito poético evoca as lembranças submersas na memória para fazer circular as experiências de toda uma coletividade envolta num “abismo de silêncio”. O fio condutor da poesia de Vasconcelos se consolida com base na imaginação das “águas dormentes” que revigoram as imagens substanciais, geradoras do alimento da imaginação no abafamento da existência imóvel como a dos pássaros aleijados:
da água nasce a língua da tribo, espelho claro de música libertando a imagem sob calcanhares que mantêm aleijados os pássaros. Há um som de flauta que faz as mulheres oferecerem-nos uma esteira e mel. Quando se morre seca sempre um rio apertado no fundo da terra. Eis um sino e um martelo de falsos comícios que lançaram de modo cínico estéreis utopias. (...) Só a liberdade poderá ainda que desapossada revelar a beleza da água como uma lua potente que ensaia o peixe e deixa uma renda à volta do namoro para que nenhum gesto de pêsames aconselhe o valor doentio e pobre do luto que se consolida com molduras de silêncio (VASCONCELOS, 1996, p. 9).

O par morte/vida constitui-se numa dualidade perfeita para se ler a obra de Vasconcelos. A imaginação, faculdade de criar mediante a combinação de idéias, encontra na poética deste escritor o espaço profícuo para alimentar a construção de imagens díspares envolta num cenário preenchido por uma água de tonalidades variadas, capazes de fazer brotar o devaneio criador.

Assim, as experiências insólitas recuperadas na linguagem se materializam na força que emana da palavra. Logo, “as águas das turvas errâncias”, matéria privilegiada na obra deste autor, constitui-se “substância-mãe” na busca pelo som capaz de calar a dor e valorizar a vida:
há uma palavra que temos que libertar deixar que seja um slogan de luz, que obrigue os jornais a incluí-la na primeira página uma palavra que saiba das cadeias das nossas frustrações, uma palavra que ao ser lida desperte uma música capaz de acalmar o homem.

Não é uma palavra guardada nas pondas das bessanganas, envelhecidas nos oratórios que amareleceram de dúvidas o desejo dos homens é uma palavra amplificada de luz capaz de impedir as miopias que ensaiaram os tropeços da manhã. Essa palavra nunca foi lida no exílio das nossas angústias, nem nos casamentos negados de vinho que aceleram a rumba da alegria e por mais incrível que pareça nunca foi poder (VASCONCELOS, 1996, p.10).

Diante disso, o eu poético convoca a coletividade para uma ação sólita: “Reúnam os homens para resolverem a unidade da tribo porque se as águas se apartam em turvas errâncias veremos germinar raízes de pedra e áscuas nas praças triunfo da cinza anulando a hidrografia dos mitos” (VASCONCELOS, 1996, p.9).
Esta reunião, no entanto, somente é possível no plano imaginário, pois todos os personagens convocados desapareceram num “abismo de silêncio”. Se “o conto da água é o conto humano de uma água que morre”(BACHELARD,1997, p.49), é desta água morta que Vasconcelos retira a matéria de sua criação poética. Num processo inovador, ele constrói o cenário capaz de unir o sólito e o insólito, a vida e a morte, pois:

Lá fora o mundo é igual a uma África que vem com os seus heróis que sabem que o ouro limpa tudo, mais do que a água que escorre pelo chão da casa mortuária: “É uma água pesada no seu longo percurso mas que leva em boa guarda e aleluia a vida para tornar mais pura a terra” (VASCONCELOS, 2005, p.136).

As experiências passadas mantêm-se retidas na memória e elas podem ser recuperadas no presente por meio da linguagem. O corpo guarda dos tipos de vivências: uma ligada à memória-hábito que faz parte de nosso adestramento cultural, a outra se define como imagem-lembrança. A memória-hábito constitui-se num conjunto de conhecimento adquirido pela observação e pela repetição de movimentos ou palavras. Ela se faz necessária à vida comunitária, à socialização. A outra, a imagem-lembrança, ocupa a área profunda da mente e ao ser evocada se corporifica de forma única, irreversível.

A poesia de Vasconcelos nasce dessa experiência latente nas zonas as mais profundas do psiquismo. Essas impressões se assemelham a um palimpsesto, material antigo, raspado várias vezes, dando o tom, o colorido às representações, às manifestações das essências escondidas nas profundezas das substâncias da matéria:

O rei não pode esperar da noite toda a ousadia da esperança como se, por este lado das surpresas e de quantos mais terços se endireita a aurora, lhe caiba outra luz. Todo o intervalo serviu para vermos se ainda poderíamos acertar com azagaias o teu coração. E mataste o teu melhor irmão para que toda a noite passasse para dentro de nós. As lavras de mandioca aumentaram a safra na mesma proporção que os mortos. Ainda tentaram escolher o melhor filho para o acompanhar, prepararam cinzas e ventos. Os mortos de outras guerras mais antigas estavam tontos nas poças de vinho (VASCONCELOS, 2004, p.98).

Os acontecimentos submersos na matéria adormecida pelo sono profundo são o substrato, o que serve de suporte para uma outra existência, o sonho/poético. Este transforma os sinais contemplativos advindos do sono em elementos sustentadores do projeto literário de Vasconcelos.

O sono profundo oferece um amálgama de sentimentos, visões, lembranças constituidoras do discurso crítico e irônico do escritor. Como se pode constatar no trecho retirado do poema: “Um reino apesar dos sabres mais afiados”:

“Um reino apesar dos sabres mais afiados guarda-se melhor com o excesso de bondade”,
fez-te lembrar o velho Tiba quando te foi íntimo
o sangue das vítimas na Cadeia de São Paulo.
Só o coração sabe afeiçoar a irmandade porque tens
de saber como tuas mãos, apesar de exímias a medirem
a espessura das pepitas d’oiro, servirão mais se puderem com a ajuda dos joelhos e seu chão de pedras lavar os pés dos doentes
do Sanatório. Ainda que enxugues os seus pés, percorras
sozinho o corredor onde Deus brinca
com o sol e seus curtos lugares, terás de vestir
a batina de sua vida, ouvir como em ti se faz
sem amnésia a identidade dos outros (VASCONCELOS, 2007, p.19).

As imagens do sono despontam na poesia de Vasconcelos como um tipo de predisposição, evocação que redimensionam por via da memória/poética o clima de tempestade, das águas revoltas. Neste sentido, o sono provoca e projeta a criação do escritor para um tempo de sonho desfeito e refeito no espaço literário para acolher “aqueles que não têm boca”.

Desta forma, a busca pela linguagem artística aguça no escritor certas aptidões, certas vocações para o sobrenatural e o invisível, certa percepção do sentido oculto das coisas inertes. Tão bem explicitadas no trecho retirado do poema “Oh, meu rei, o Tiba diverte-te com palavras”:

(...) A morte exibe-se com assepsias de ouro, um soldado chora com o que lhe sobra do coração, está perdido porque oferece o seu horário de pedra que dança com as incertezas que vigiam os dias. “Dois dedos fecham o que a morte gosta de enganar com laços que entortam o sonho numa cova de mármore branco”(VASCONCELOS, 2007, p.37).

O sono, no entanto, com o sentido de inércia não alimenta a poesia, mas somente aquele revigorado, trabalhado, pode alterar o sentido daquilo que só tem sentido no discurso literário. Sendo assim, recupera-se aqui mais uma vez a visão de Arlindo Barbeitos para quem “a poesia só é poesia se sugere, só tem expressão, só tem força, só é arte em forma de palavra, se simultaneamente retém e transcende a palavra”(BARBEITOS, 2004, p.8).

Neste universo de percepções, o discurso de Vasconcelos transforma vozes ausentes, silenciadas pelo sono profundo em figuras que transitam no tempo poético. A materialização por meio da linguagem artística daqueles que desapareceram nas águas turvas e repousam num horizonte longínquo, só se efetiva de fato por meio da voz do poeta. Sendo assim, o escritor empresta sua voz àquelas figuras que precisam metaforicamente se movimentar naquele cenário. Ele reconstrói um tempo de glórias desfeitas.
Diante disso, se o sono é o lado “não iluminado”, submerso na memória de um tempo de violência, o sonho reinterpreta as visões envoltas numa atmosfera em que: “A glória é fria porque só os bobos são parte da sua artimanha por lhes ser fácil imaginarem a morte da ficção que os escritores tentam salvar” (VASCONCELOS, 2007, p.48).

A composição poética constitui-se, assim, no momento inexplicável de um achado, ou porque não dizer, nas horas enormes de uma procura pelas palavras essenciais para a inscrição que só o sonho inspira. A força advinda desta subjetividade chamada sonho envolve o ser criador em um ato íntimo, solitário, que se efetiva sem testemunhas, “porque essa idéia é como o vento só o tem no toque às palmeiras” (VASCONCELOS, 2007, p.50).

Sendo assim, pode-se afirmar que somente o escritor sabe de que é feita esta força repleta de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco alcançado e de renúncia da sua própria voz para deixar vir à tona a voz que o surpreende em um ato mínimo, rápido e dinâmico. Neste apagamento do sujeito/produtor da poesia, ouve-se a voz descida. O poeta se faz passivo para que na captura do instante preciso não se derrame de todo esse pássaro fluido que é a poesia, pois

“Toda cumplicidade não pode ter a parte
mais íntima no cofre e o que é material só vive
pela troca desigual. (...) A dor cria sempre um poeta
capaz de enganar por cima do espelho
do lago a utopia com as mesmas artes
e metáforas que usas para salvar
o amor e seus orgasmos”. Toda a cidade tem o seu porto
nas portas que ficam abertas depois de à noite
perderes com rascunhos o teu próprio nome: mulheres. “O batom
é forte em cheiro e cor, abres uma janela quando
passa o último soldado com a idéia tirada do postigo
que deixara passar por força da intimidade
o que faz em fogo a dança guerreira, e podes
pedir-lhe algo mais do que o seu peito: ele dir-te-á não
porque quer viver com esse
verso que mais faz descer
a lua em teus
braços” (VASCONCELOS, 2007, p.22).

Nesse contexto, a poesia faz circular os saberes. Desloca do espaço do poder a língua, que regula a história humana, dando-lhe uma nova roupagem, para imprimir os vários sentidos buscados. O poeta trabalha e vislumbra saídas na encenação dos enunciados, livre das amarras do poder regulador que delimitam os atos e as ações do homem na vida diária. Num jogo teatral, os significados se efetivam no desvio, na reordenação do código lingüístico que permite ouvir a língua fora do poder. O discurso literário ultrapassa os obstáculos típicos da língua, como código regulador do discurso "coerente" que sustenta o corpo social, e funciona como o logro, o lugar que dialoga com o dentro e o fora; com o interior e o exterior da linguagem literária, quando o discurso poético tem caráter testemunhal. Como bem define o eu-poético do trecho a seguir:

“Estou no ringue para indicar o que posso segurar
através dos meus ranhos e cobrar do mundo”.
Bandeiras com pensadores em ouro e até um despacho
do rei preparam essa luta onde cada um dos contendores
buscará a sua verdade sem que ninguém
saiba porque nos querem mais frágeis e infiéis. Um abismo
vence sempre o alcance dos olhos. Existe
uma neblina muito entrançada que faz a aurora
do Uíge e os anjos cheiram a bagos de café: são espelhos
cujo valor de distância só Deus sabe manter
mesmo quando o céu é um azul intenso
e mais próximo dos mendigos. “Trago
um juiz para a luta pois preciso de abrir a sua bíblia na página mais amarrotada e suja com óleo de palma e funge (VASCONCELOS, 2007, p.13).

O contexto histórico-social, destoante e desconcertante no plano real, torna-se objeto singular no plano poético e precisa ser redimensionado via representação na poesia, espaço significante e de jogos de sentidos, para o funcionamento da discursividade de vozes não autorizadas e marginalizadas na sociedade. Diante de tal fato, a voz autorizada precisa apresentar e representar com toda a força que emana das palavras a vida, mas, no dizer de João Cabral Melo Neto, "é difícil defendê-la só com palavras, ainda mais quando é essa que se vê Severina"(MELO, 1980, p.122).

A presentificação dos fatos se caracteriza como o detalhe específico da arte literária. Os elementos recuperados do contexto são modelados, transformados, ou reforçados no âmbito poético. A arte tece a rede dos significados que podem emanar da superfície ou da profundidade do contexto, ou melhor, do “sonho que acalentámos/ Durante meses seguidos./E agora/ -Mariposa vermelha-/Só ficou a reluzir/ A pequenina centelha/ Duma ilusão a fugir”(SANTOS, 2004, p28-9).

Trilhando esta linha de fuga, o sujeito poético pode ouvir o “belo conselho” que não explica, mas ameniza o sentido do sono profundo. Sendo assim, privilegiando o dialogismo/poético, o escritor convida o leitor a ouvir essas vozes:

“Não, meu rei grande, esse jogo só o vences
se usares o silêncio que faz pela corrosão a frágil
verdade que pode em álcool constelar
pelo delírio e impaciência o ânimo diante das derrotas
que abriram a cirrose que confronta cada vogal
da tua última estrofe: Uma maleita de desilusão
só passa com um maior panfleto de oferta,
mas precisarias de uma nova guerra
e uma prenda de verdugos: um paredão. Levantas finas
lâminas de mármore e uma lança com pontas de cólera
para que os cavalos possam descansar nos novos terreiros, mas as cinzas que guardo como o teu melhor cabo pesam em mim
com igual pilar de escuridão da tua morte”, “Ah, belo conselho: sabes que o meu tempo oferece a eternidade e trono a um herdeiro que não conheces,
queima-se a utopia com um pouco de vinho, depois
a festa só serve para que mais homens da sanzala
digam que quem te sucedera nunca
nos dera o que mais desafiamos com a ilusão: Vida” (VASCONCELOS, 2007, p.50).

Diante disso, constata-se que o poema citado anteriormente é o eco de experiências. É a maneira encontrada pelo poeta para revelar aquilo que a linguagem cotidiana não consegue revelar. A linguagem poética traduz o intraduzível. Ela é como um resíduo e neste caso é exato empregar a expressão “transmissora” de sensações antigas para revigorar um tempo de novas aventuras.

O passado apresenta várias versões, ele está imbricado entre a memória e a história e encontra na linguagem artística o suporte decisivo que “reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual”(BOSI, 1995, p.56). A memória traz à tona não só as percepções passadas, mas as sensações do presente que confluem e se complementam no instante da criação como força subjetiva e produtora dos símbolos profundos e ativos para compor o universo estético do escritor.

A vigília atual se processa no discurso poético como forma de interpretação do passado. Esta atitude explorada na escrita, além de fazer circular as várias falas, abre caminho para a diferenciação, para o resgate dos materiais simbólicos à disposição do autor que busca encenar na poesia um conjunto de representações presentes na consciência do sujeito poético.
Metaforizando aspectos da memória histórica, Vasconcelos aproxima o ontem e o hoje em linguagem poética para intercambiar experiências comunicáveis tão valorizadas na tradição oral de sua terra. Na produção do poeta angolano, os movimentos impostos ao sujeito poético advêm da sua habilidade para depreender gestos, hábitos, rituais e ritmos próprios da técnica da poesia moderna de modo que possa socializar com o leitor uma nova forma de visualizar as experiências que amarram a história do indivíduo à história da coletividade. Logo:

“Como é que um poeta deixou abandonados
os seus versos na cela solitária da cadeia de São Paulo,
paredes pintadas de preto com teias
que desfazem a luz, lugar
onde mais entendi a loucura dos políticos
apesar de dizerem em verso que são os vôos
das gaivotas que criam a presença
de Deus?”. Um verso deveria ser a nossa segunda
pele no meio de uma ventosa que menos envelheceria
a palavra diante das idades
que já não chegam para preparar as respostas
que nos faltam para entendermos o caos
que ficou como marca
das utopias (VASCONCELOS, 2007, p.125).

Valorizando aspectos como a estrutura poético-narrativa, a exploração valorativa das imagens submersas na memória e a estrutura da palavra, num processo de restauração e invenção, o poeta dá o colorido necessário ao texto. Com a recriação frasal por meio de realces materiais, inversões da sintaxe oracional, subversão do sistema de pontuação ? como o uso de aspas para realçar aspectos factuais ? e a disposição do texto na página, Vasconcelos instaura um estilo próprio de escrever e inscrever poeticamente a memória e a história. Pois:

Todos os rosários que passaram pelos meus dedos
e lhe deram calos não chegam para completar
essa idéia que dizes viver em cada minha dor. “E o sol
está aí como se maior fosse o muro
que nos afasta do mundo e esse nível de barreira
é o que mais prepara a perda que faz doer
o âmago”. O quadro na sala de estar não é só o erguer
da nossa irmandade, uma folha caída e com o vento
como seu bordado pega-se em tudo que abre
uma janela diante do mar para refazer o percurso
dos apóstolos no que o mundo de forma inocente
se abrira em incógnitas: “O mar imagina-se na mala
fechada oferecida por um cigano e o exílio levanta
o nome dos mortos que fazem reconhecer a pátria
na mão de pedintes”. Todos os rosários
penduram o silêncio no que já não
podes aplaudir (VASCONCELOS, 2007, p.99).

Segundo Evando Nascimento, “a ambivalência fundamental entre pulsão de vida e pulsão de morte, antes de ser uma dicotomia entre duas plenitudes, se revela como a própria condição para a existência de qualquer sistema”(NASCIMENTO, 2001, p.172), pois, quando um sucumbe, o outro, reprimido da história, ainda que poeticamente, surge para impulsionar por outra via o curso da existência. Diante disso, pode-se dizer que Vasconcelos precisa violar e violentar todas as regras – gramaticais, os fatos históricos, etc. – para dar vida a um discurso entrecortado, camuflado, silenciado, mas revelador das imagens cristalizadas no “espelho” da memória, repleta de personagens históricos. Sendo assim,
“Um dente cariado de um poeta não pode alterar
a utopia para a sua podridão”, “Sim, meu filho,
as palavras podem passar pela cárie de todos os dentes
e não perderem a beleza e nem mesmo as moscas do musseque
perseguirão as suas vogais. Todas as palavras deveriam
conhecer o seu sinaleiro como seu alto orientador através
de uma bússola que conhece como os egos
fazem as trocas de identidades porque o mundo
é uma montra onde os actores vencem
quando fingem não ser o que se advinha através
dos búzios que as velhas ensinaram
a dominar com duas pontas de luar”. Podes ver
essa lição quando Viriato da Cruz
é levado pelos beijos de um casal sentado nos bancos
partidos da marginal e o Banco Nacional com todo o cofre
do país não faz parte desse idílio por lhes ser cara
a pureza: “Amor, dobra o lado do sim”. E estão diante do mar
e seus barcos iluminados perdem o sentido
das viagens, barcos sem âncoras: “Já não se trazem
em vaidade as palavras dos exílios,
os guerrilheiros e Álvaro Cunhal cedo perderam os antigos
aplausos e o umbigo marca o palácio, mas, meu amor,
eu levo-te através dos bibes da lua que nos vestem
a alma com novas portas e palavras
cada vez mais viradas
para dentro
de nós”(VASCONCELOS, 2007, p.126).

Numa explosão dos sentidos paradigmáticos da poesia, Vasconcelos valoriza o estilo narrativo para fazer falar o individual e o coletivo, como bem define o poeta João Cabral de Melo Neto: “Somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida e na sina”(MELO, 1980, p.120). Sina esta, mantenedora do sonho que realimenta uma imagem fugidia de uma utopia desejada, mas dispersa em muitas aquarelas como se vê em Luanary.

Neste sentido, entretecendo um ritmo gerador de cumplicidades e oposições, o poeta leva o leitor a apreciar o entrecruzar do canto polifônico, os traços que remontam na cadeia do tempo poético aos sinais de uma universalidade. A memória é ilimitada e encontra na criação poética os recursos lingüísticos necessários para fazer nascer - da musicalidade dos versos, da repetição das palavras que compõem o mosaico - a infinita medida do canto.
A invenção poética dá o tom da obra deste autor que dialoga com seus compatriotas e com outros de além-mar, como bem define Elisalva Madruga em seu artigo "Ressonâncias drummondianas na poética africana"(MADRUGA, 2003, p.15). Segundo ela, a voz de Drummond, carregada de sentimento de mundo, ecoa em outras vozes poéticas africanas, formando com elas um coro cuja tonalidade é orientada pelo diapasão da dor.

O discurso poético de Vasconcelos se constrói num processo dialógico. A poesia faz circular os saberes de forma intertextual e cria novas redes de cumplicidades. O trabalho artístico busca respostas para perguntas provenientes das inquietações humanas. A função poética da linguagem está fixada na mensagem e coloca em segundo plano o referente por meio de recursos forma/conteúdo, tais como associações de sons e imagens na língua “alterada” e transformada por recursos estéticos e semânticos, como se depreende no poema a seguir:

As gaivotas já foram crianças abandonadas
ainda no berço e podias chamá-las de José. Os nomes
não podem fazer o registo da utopia
porque até o sol apesar da sua altura nunca
oferece o céu para que mais loucos
fiquem assustados à porta do teu palácio. Oh, rei,
tiraste-me o pote de mel e só precisaste
de um café sem açúcar! O movimento da colher
empurrava a sala oval, terrinas de oiro
vazias ficaram cheias dos meus
objectos: anéis, colares... chaves de um BMW, em rotação
diferente, como abrupta queda de mim mesmo. Era
só veres como iluminada estava a foto
do tio que eu abandonara, as minhas
lágrimas nada podiam fazer. (VASCONCELOS, 2007, p.25).

Seguindo a linha de fuga promovida pelo dialogismo, as imagens expostas no poema acima nos remetem a Carlos Drummond de Andrade e a seu poema “E, agora José?”. O José do poeta brasileiro é um operário que, assim como o José do poeta angolano, metaforiza sua contribuição na construção dos palácios onde, concluída a obra, já não poderá entrar. E se “os nomes não podem fazer o registo da utopia” (VASCONCELOS, 2007, p.25), os poetas podem construir a utopia com imagens que impulsionam a vida, mesmo depois de os “mais fortes da sanzala [terem] abandonado o meu quintal” (VASCONCELOS, 2007, p.25) e o José drummondiano ainda pergunta “para onde?”.

Nas obras de Vasconcelos, as versões do passado são reatualizadas com imagens elaboradas por um procedimento produtor de opiniões que articulam experiências só evidenciadas no presente com a reconstrução factual. Reconstrução esta, capaz de promover o questionamento de vozes individualizadas e coletivas que compõem o mosaico poético e trazem à tona as águas revoltas do passado para reinterpretá-las no espaço literário onde ocorrem reflexões acerca do “silêncio [que] fez a noite ser mais longa pelo rabo de uma cobra que toca os tambores que ainda guardam as lágrimas dos kombas” (VASCONCELOS, 2007, p.13).

As imagens densas da história, sob o prisma da imaginação criadora, recebem um colorido especial, logo, as águas entorpecidas, pesadas - símbolo da violência que define o curso da vida - são transformadas em metáforas de leveza repletas de “balões feitos com leves espelhos de água que deixam o mundo mais bonito” (VASCONCELOS, 2007, p.132).

Envolto numa aura de rememoração, a poesia de Vasconcelos transita entre a tradição e a modernidade, com um discurso entrecortado por traços que ligam o sujeito poético ao discurso do contador de histórias. Vasconcelos constrói um universo artístico que valoriza a descoberta de novos processos que atualizem no imaginário os valores da tradição em consonância com a atualidade. E já que as transformações associadas à modernidade modificaram as relações do indivíduo com suas práticas discursivas, o sujeito poético afirma sua forma de estar no mundo individualizando-se e diz:

[...] lá longe, onde só Deus pode escutar, as minhas palavras
perdiam cada vez mais a matiz
da minha identidade e os outros loucos
mais antigos que se suicidavam aproveitando
a vertigem a saldo. Falo de Lameira, Viriato, Aristóteles
e Zaratustra, Luther King, Kwame Nkrumah (VASCONCELOS, 2007, p.144).
Nessa dinâmica discursiva, Vasconcelos traz à cena figuras históricas e a idéia da perda identitária para promover no cenário poético a crítica a uma época em que
[...] «Oh, Pátria, queríamos
ser os únicos untados com azeite das lamparinas
que protegessem a nossa sorte, aqueles que passassem
pela dor de Njinga como se fosse bálsamo
e trigo para toda a epopéia, mas não podemos deixar de sofrer
com os irmãos que pior dor, sina e morte receberam
de seus camaradas e compadres (VASCONCELOS, 2007, p.20).
A contemporaneidade literária africana de língua portuguesa envolta num misto de fragmentação e ruptura - características das mudanças processadas nas sociedades que buscam uma nova ordem social, política e econômica -, "parece roubar à poesia a possibilidade da comunhão, interditando-lhe aquela velha faculdade de promover a aliança entre o homem e a natureza, entre a arte e a sociedade, entre os homens e os outros homens"(CHAVES, 2005, p.63).
Neste sentido, o retorno à tradição, ao diálogo com poetas locais e de outras nacionalidades, impõe-se ao escritor que não se quer cúmplice da destruição, mas inventor de uma nova poética capaz de formular as respostas precisas para expressar a crença de que "o poeta pode evitar o caos quando consegue assegurar à palavra o direito e o poder de continuar fundando utopias"(CHAVES,2005, p.63).

Com um dinamismo típico de um contador de histórias, Vasconcelos estabelece um pacto com a tradição para manter viva a chama que alimenta a existência de toda uma coletividade. Sua poesia revigora o ritual de transmissão de conhecimento e irriga com as experiências individuais e coletivas a cadeia primordial da arte de narrar, que em sua obra vai pouco a pouco adquirindo um status mágico, ritualístico ? um ato de iniciação ao universo da angolanidade. Podemos dizer, então, que Vasconcelos atinge a dimensão histórica do narrador/contador de histórias. Essa dimensão corporifica um sistema de valores estéticos capaz de recuperar o espaço matricial da tradição em vários níveis para fazer circular num jogo intertextual as marcas peculiares à memória e à história. Com imagens sensoriais que transitam entre a poesia e a prosa, o autor representa, com toda a força que emana das palavras, as vozes silenciadas.

Conclui-se que o sujeito de enunciação num jogo imagético coloca o leitor diante de uma explosão de sentidos da temática sólito versus insólito. Esta pulsão criadora composta por imagens duplicadas, múltiplas, oriundas de aspectos do plano poético, histórico e mítico, redimensiona a idéia de água pesada, pois como bem define Vinicius de Moraes no “Soneto de separação”, texto de abertura deste artigo, do momento imóvel fez-se o drama.

Referências

1- ANDRADE, Carlos Drummond de. José e outros. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.
2- BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
3- BARBEITOS, Arlindo. Angola, angolê, angolema. Luanda: Maianga, 2004.
4- BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
5- CHAVES, Rita de Cássia Natal. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê, 2005.
6- MADRUGA, Elisalva. “Ressonâncias drummndianas na poética africana”. In: Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003.
7- MELO Neto, João Cabral de. "Morte e Vida Severina". In: Obras completas. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
8- MORAES, Vinicius de. O operário em construção. 2 ed., Lisboa: Dom Quixote, 2001.
9- NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. 2.ed. Niterói: EdUFF, 2001.
10- OLIVEIRA, Jurema José de. Violência e violação: uma leitura triangular do autoritarismo em três narrativas contemporâneas luso-afro-brasileiras. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2007.
11- SANTOS, Aires de Almeida; LARA Filho, Ernesto; CRUZ, Viriato da. Obra poética Luanda: Maianga, 2004.
12- VASCONCELOS, Adriano Botelho de. Luanary. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2007.
13- ___.Olímias. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2005.
14- ___.Tábua. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2004.

* Jurema José é Crítica Literária das Literaturas dos PALOPs

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