A nudez por trás do jaleco
O espetáculo de racismo e de xenofobia da semana passada tornou ainda mais evidente o baixíssimo nível do embate em torno do programa Mais Médicos. Como tem acontecido no Brasil em questões fundamentais, a polarização só serve para calar a possibilidade de um debate sério, responsável e com a profundidade necessária. Neste caso, com o governo federal, de um lado, e as entidades corporativas dos médicos, no extremo oposto, o país perde uma oportunidade de discutir o tema urgente da saúde pública, cujas omissões e deficiências têm mastigado – objetiva e subjetivamente – a vida de milhões de brasileiros. E aqui desponta um silêncio eloquente: cadê a voz das pessoas que dependem do SUS nessa discussão?
A cena de um grupo de médicos cearenses vaiando os médicos cubanos, vários deles negros, que chegaram ao Brasil para ocupar postos em lugares onde os brasileiros não querem ir, é uma vergonha. Mas é bem mais do que uma vergonha. A trilha sonora da manifestação – “escravos”, “incompetentes” e “voltem para a senzala” – é reveladora de como os membros de uma carreira de elite olham para si mesmos – e se veem “ricos e cultos”, como gritaram médicos numa manifestação anterior – e de como a população que depende do SUS (Sistema Único de Saúde) é vista por parte daqueles que têm por dever lhe dar assistência. Dá pistas, especialmente, sobre a tensão social que existe nos corredores dos serviços de saúde pública, que é também uma tensão racial e de classe.
O espetáculo de racismo e de xenofobia da semana passada tornou ainda mais evidente o baixíssimo nível do embate em torno do programa Mais Médicos. Como tem acontecido no Brasil em questões fundamentais, a polarização só serve para calar a possibilidade de um debate sério, responsável e com a profundidade necessária. Neste caso, com o governo federal, de um lado, e as entidades corporativas dos médicos, no extremo oposto, o país perde uma oportunidade de discutir o tema urgente da saúde pública, cujas omissões e deficiências têm mastigado – objetiva e subjetivamente – a vida de milhões de brasileiros. E aqui desponta um silêncio eloquente: cadê a voz das pessoas que dependem do SUS nessa discussão?
A ausência dessa voz denuncia a fragilidade do debate. Prova também que os mais pobres estão muito longe de serem reconhecidos e se reconhecerem como cidadãos com direitos. Mais uma vez, ganha evidência a questão do olhar, não apenas sobre aquele que vem de fora – o “estrangeiro” – como sobre aquele que deveria estar dentro, mas está fora e também é visto como um outro distante – definido como “população carente” ou “camadas desassistidas” ou ainda “usuário do SUS”. Visto como um outro tão distante que o presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, João Batista Gomes Soares, sentiu-se à vontade para declarar ao jornal Estado de Minas: “Vou orientar meus médicos a não socorrerem erros dos colegas cubanos”.
Para completar a tragédia, Micheline Borges, uma jornalista do Rio Grande do Norte, postou no Facebook: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma Cara de empregada doméstica! Será que São médicas Mesmo??? Afe que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência... Coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja O nosso Povo!”. Na visão da jornalista, há uma cara/aparência para aquele que ostenta o jaleco e uma cara/aparência para aquela que deve ser coberta pelo avental – e esses corpos/raças/classes/mundos não podem se misturar. A mistura é a ameaça. Em sua intervenção aterradora ela desvela o que possivelmente muitos temem – mas ocultam com palavras menos terríveis.
Para nos ajudar a pensar sobre os significados do atual embate na área da saúde pública e buscar avançar além do pensamento binário que tem marcado a discussão, entrevisto nesta coluna Deisy Ventura. Ela é professora de direito internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), mestre em direito europeu, doutora em direito internacional pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e foi professora convidada do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), entre outras instituições. Ventura é também uma pensadora das relações entre direito e saúde e acaba de lançar o ótimo livro Direito e Saúde Global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1), numa parceria das editoras Outras Expressões e Dobra Editorial.
Na entrevista a seguir, ela analisa as principais questões em torno do Mais Médicos e também propõe autores, com seus respectivos links, para os leitores que quiserem se aprofundar no tema. O debate da saúde pública não pertence nem ao governo, nem aos médicos, mas ao conjunto da sociedade brasileira. Sua qualidade e consequências dependem da participação de todos.
Desde que foi anunciada a intenção do governo de trazer médicos estrangeiros para trabalhar em lugares do país nos quais médicos brasileiros não têm interesse em ir, pelos mais variados motivos, houve muitos protestos por parte de médicos e entidades corporativas. Entre os argumentos, estão os de que os estrangeiros não teriam boa formação nem entenderiam o português. Várias “justificativas” que parecem dizer: “eles são os outros” ou “os outros não podem entrar” ou ainda “este território é nosso”. Como a senhora analisa essa reação?
Deisy Ventura – Todos temos tendência a pensar que nossa cultura, nossa religião, nosso modo de viver são melhores do que os dos outros. Isto é etnocentrismo, algo que nos leva a viver adstritos ao nosso próprio mundo, e que se nota até em pessoas que viajam muito, mas veem o mundo por uma só lente, a do seu grupo. É o comportamento comum dos turistas, inclusive muitos dos que vêm ao Brasil e nos acham exóticos. Mas, outra coisa, bem distinta, é dizer que os outros, os estrangeiros, não podem entrar no nosso mundo. Assim como divulgar que eles nos ameaçam e que precisamos evitar que venham romper nosso equilíbrio. Pior ainda é acreditar que são eles, os outros, que estão mudando o nosso jeito de viver. Isto é xenofobia. Todo xenófobo é etnocêntrico, mas não acho que a recíproca seja necessariamente verdadeira.
É importante entender essa diferença porque há um movimento político, organizado por algumas das mais importantes associações médicas brasileiras, que procura denegrir a imagem dos médicos estrangeiros e gerar a desconfiança da população. Em 26 de junho, AMB (Associação Médica Brasileira), ANMR (Associação Nacional dos Médicos Residentes), CFM (Conselho Federal de Medicina) e FENAM (Federação Nacional dos Médicos) divulgaram nota em que se referem a todos os médicos estrangeiros, sem fazer distinção alguma, como “profissionais mal formados e desqualificados”. A mesma nota declara persona non grata o ministro da Saúde, o médico Alexandre Padilha. Assim, o debate sobre a vinda de médicos estrangeiros caiu imediatamente na clivagem situação/oposição, que tem empobrecido brutalmente o espaço público brasileiro.
O problema é que, para rechaçar uma medida conjuntural, um dos polos tem lançado mão de um dos mais terríveis males da história da humanidade, que é o horror ao estrangeiro. Em suas formas extremas, ele se encontra na origem de incontáveis massacres e até de genocídios. Esse surto de xenofobia é especialmente inoportuno porque o Brasil tem sofrido uma pressão migratória crescente, mas não tem uma política migratória e ainda guarda o estatuto do estrangeiro do regime militar. Faço parte de uma comissão de especialistas independentes, que foi instituída pelo Ministério da Justiça, no final de maio deste ano, para sugerir ao governo uma nova legislação sobre migrações. Mas discutir essas normas num clima de xenofobia é muito ruim para o Brasil.
A senhora já consegue sentir algum efeito desse recente surto de xenofobia sobre o debate em torno das migrações?
– A tensão gerada pelo escracho de estrangeiros é evidente entre os trabalhadores migrantes. Uma nota divulgada pelo Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes, que é uma rede de entidades sociais, vê no rechaço aos médicos cubanos a ideia, por parte dos médicos brasileiros, de que “‘eles’ vêm roubar ‘nossos’ empregos”. A exemplo do que ocorre nos países desenvolvidos, os imigrantes temem tornar-se bodes expiatórios de crises cuja profundidade transcende largamente as migrações, especialmente a econômica.
Creio que o melhor exercício que todos nós podemos fazer antes de debater a lei de migrações é lembrar de nossos familiares e amigos que foram trabalhar no exterior em busca de uma vida melhor. Lembrar do que eles contaram ou ainda contam sobre o modo como foram acolhidos ou rejeitados, sobre os direitos que facilitam sua subsistência digna ou a falta deles, que a impede.
Sem contar que muitos brasileiros são descendentes de imigrantes, que aqui chegaram como estrangeiros... Mas, na sua opinião, por que estamos vivendo essa clivagem situação/oposição de uma forma mais aguda hoje? Como a senhora situaria isso historicamente?
Ventura – A disputa política entre situação e oposição é natural. O que não é aceitável é ver o mundo sob essa, ou qualquer outra, perspectiva binária. Alguns campos de atuação do Estado alcançam hoje tamanha complexidade que só poderiam avançar se existisse um compromisso acima dos interesses pontuais das forças políticas e do xadrez eleitoral. Um deles é a saúde pública.
A impossibilidade de negociar esses pactos se deve a muitas razões. Acho que uma delas é o grande hiato que tivemos em nossa história política, entre 1964 e 1985. Fomos privados de mais de 20 anos de vida democrática. Além disso, a alternância de poder não parece algo natural para as nossas elites. Há rancores profundos no Brasil. Princípios elementares como a igualdade ou a publicidade, ou até mesmo o simples contraditório, no sentido de admitir que haja opinião diversa, ainda parecem ser concessões dolorosas para alguns. Por outro lado, o espaço de debate público é pautado por grandes empresas de comunicação, cuja atuação é partidária, no sentido de que toma partido, mas raramente se apresenta como tal. Sequer presta contas sobre as consequências das posições que defendeu ou defende.
A senhora acredita que a perspectiva binária do debate público tem mascarado a necessidade de uma discussão mais profunda sobre saúde pública?
Ventura – Todo tipo de xenofobia se auto-justifica pela necessidade de proteger um “povo escolhido”, uma “raça superior” ou coisas do gênero. Do mesmo modo, quem ataca os médicos estrangeiros diz agir em nome do interesse dos cidadãos brasileiros. Assim, avaliar o programa Mais médicos sob a lente dos preconceitos simplifica a vida de muita gente. O preconceito é justamente aquela opinião que a gente não confere, não põe à prova, acolhe passiva e acriticamente. Na definição de (Pierre-André) Taguieff (filósofo francês que pesquisa racismo e antissemitismo), seria algo como “crer saber, sem de fato saber”. O terrível é que um preconceito dá uma sensação de segurança muito maior do que um conceito. Elaborar uma opinião própria sobre a efetividade imediata do direito à saúde em alguns lugares do Brasil, que é a questão central do Mais Médicos, certamente dá um trabalho danado, exige reflexão e deixa muitas dúvidas.
Qual é a real oposição entre o programa governamental e a reação corporativa?
Ventura – O governo federal ousou enfrentar as entidades médicas num terreno que lhes é muito caro. No exterior, o Brasil é considerado um país cujos exames de revalidação do diploma médico são muito difíceis. Esse rigor tem protegido o mercado profissional brasileiro.
Estaríamos perdendo uma chance de debater a saúde pública? O que, na sua opinião, seria preciso incluir nessa discussão para que se torne, de fato, um debate profundo sobre saúde pública, que vá muito além dos médicos?
Ventura – Creio que a questão central dos últimos 25 anos nunca deixou de ser a implantação do SUS. Uma edição recente Revista RADIS afirma que o projeto original do SUS está ameaçado pelo sub-financiamento, pela privatização do que é público, pelo controle social enfraquecido e pelo foco na assistência – em detrimento do conceito integral e ampliado de saúde. Gosto muito daquele número da RADIS porque sua capa diz: “a gente quer inteiro, e não pela metade”, trazendo a velha e boa imagem de um copo que podemos ver como metade cheio ou como metade vazio. Discutir seriamente o SUS implica enfrentar temas de enorme complexidade, sobre os quais há estudos valiosos, como os da (socióloga) Amélia Cohn, (do economista) Carlos Octávio Ocké-Reis e (do médico) Jairnilson Paim.
Mas tenho uma especial preocupação com o fato de o brasileiro pensar que sua ascensão social passa por ter um plano de saúde, e não pelo fortalecimento do SUS. Não apenas os planos de saúde têm revelado disfunções similares às do SUS, como a ideia é perniciosa. É como se renunciássemos, paulatinamente, à conquista histórica de um sistema universal, integral, equitativo e gratuito.
A que a senhora atribui essa ideia, que está se fortalecendo no Brasil também entre as famílias da chamada “Classe C” ou “nova classe média”, de que um plano privado de saúde é uma forma de ascensão social, mesmo que o plano tenha várias deficiências, mas quase como se fosse um bem de consumo, como um carro ou uma TV de tela plana?
Ventura – Há o problema objetivo das deficiências de atendimento no SUS e há o problema subjetivo de não agir politicamente para eleger parlamentares e gestores comprometidos com o SUS ou exercer um controle ferrenho do cumprimento destes compromissos. Mas, acima disso, há uma extraordinária máquina de propaganda dos planos de saúde. O pior de tudo é que eles continuam recebendo incentivos do Estado e são controlados por uma agência (Agência Nacional de Saúde Suplementar) sobre a qual pairam graves acusações de parcialidade e ineficiê
O quanto essa reação dos médicos brasileiros diante da vinda dos médicos estrangeiros, recebida quase que como uma “ameaça estrangeira”, diz de uma assimilação de toda uma lógica da saúde em nossa época?
Ventura – Saúde, hoje, é um grande mercado. Enquanto a medicalização da vida avança vertiginosamente para alguns, que tomam remédios e intervêm no próprio corpo pelas mais incríveis razões, outros continuam morrendo de diarreia. Fernando e Ana Maria Lefevre dizem, no O corpo e seus senhores, que a tecnologia, a ciência e o mercado são criações humanas que foram se desgarrando paulatinamente do seu criador. E que está na hora de o homem “discutir a relação” com suas criaturas.
Mas há algo que precisa também ser dito: no mundo desenvolvido, houve uma migração extraordinária de médicos de países do mundo em desenvolvimento, para fazer o trabalho mais duro, com salários mais baixos. Em outras palavras, tanto a defesa do mercado como a importação de profissionais sub-remunerados são manifestações dessa tendência.
O que a senhora está afirmando é que os dois movimentos fazem parte da mesma lógica de mercado – tanto a “importação” dos médicos quanto a recusa deles. É isso? A senhora poderia explicitar melhor?
Ventura – Eu quero dizer que o programa Mais Médicos se justifica plenamente pela urgência de dar efetividade ao direito à saúde em numerosos locais do Brasil. E que essa reação desproporcional da corporação médica é uma evidente tentativa de proteção do mercado profissional, em detrimento da luta pelo direito à saúde. Mas também que esse direito à saúde não deve se transformar, em hipótese alguma, em justificativa para a criação de duas categorias de médicos: os nacionais bem pagos, que trabalham no setor privado, e os estrangeiros mal pagos, que trabalham no setor público. Ou seja, esse programa só pode ser acolhido como emergencial. Ele não pode se perpetuar, não porque os médicos são cubanos ou de qualquer outra nacionalidade, mas porque é preciso criar uma só carreira para todos os que atuarem no SUS.
O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, afirmou o seguinte: "Nesse caso me parece que (os médicos cubanos) não teriam direito a essa pretensão (asilo político). Provavelmente seriam devolvidos". Ele respondia à pergunta sobre o que o governo brasileiro faria se algum médico cubano quisesse permanecer no Brasil após o fim do convênio. Como a senhora vê essa postura do governo brasileiro?
– O asilo não é um direito de quem o requer, é uma liberalidade do Estado que acolhe. Já o refúgio é um direito subjetivo de permanecer no território, baseado na lei brasileira e em tratados internacionais. Mas tanto a concessão de asilo como a de refúgio dependeria da convicção de que o requerente sofre perseguição no local onde se encontra. Não me parece plausível que o governo cubano envie dissidentes políticos para trabalhar no exterior. De todo modo, caso haja pedido de asilo ou refúgio, o governo deve responder caso a caso, sempre motivando a sua decisão, seja ela qual for.
Um dado curioso é que ambos os movimentos – o do governo, com o programa, e o das entidades médicas, com o rechaço a ele – dizem falar em defesa da população desassistida. Poderia ser uma apropriação de um valor simbólico, ligado ao salvar vidas/cuidar de vidas, mas que, de fato, serve para mascarar uma lógica de mercado?
Ventura – Faz parte da lógica da democracia que a gente possa se defender de quem nos defende, não é? O problema é que poucos têm a possibilidade real de participar desse debate. Gosto muito de um texto da (socióloga) Lara Luna (no livro Ralé Brasileira – quem é e como vive, de Jessé Souza), que ressalta a diferença entre o SUS “constitucional” e o SUS “real”. Ela diz que uma pessoa habituada a não ser tratada como cidadã tem dificuldade de agir como cidadã.
No seu livro Direito e Saúde Global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1) – a senhora aborda a emergência do que chama de “ser vulnerável”, em detrimento do cidadão, uma tese aplicada ao direito e as relações internacionais. Me parece que essa tese pode explicar, em parte, a inexistência da voz, no debate brasileiro, daqueles que seriam beneficiados pelo programa Mais Médicos, segundo o governo, ou prejudicados por ele, segundo as entidades corporativas. Tanto o governo quanto as entidades dizem falar em nome do interesse dessa população, que sabemos existir e ser numerosa, mas ela parece não ter voz nem lugar de protagonismo neste debate. A senhora situaria esse silêncio como expressão desse “ser vulnerável”, que tem substituído o cidadão? E quais seriam as raízes e a evolução histórica, na medida em que a cidadania foi um conceito forte no período de redemocratização do Brasil?
Ventura – Foi lindo ver, durante a elaboração e depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, uma imensa massa de brasileiros redescobrir o discurso dos direitos. Na hora do aperto, o povo passou a dizer “eu tenho direito”! Mas os discursos estão mudando. Hoje, no mundo inteiro, parece que o ser humano virou um pobre coitado, ameaçado por tudo e por todos: violência, doença, catástrofe, inépcia das autoridades. De cidadão à vítima, ele passa a ser vulnerável, quase um pedinte, de proteção, de cuidado, de providências urgentes. As notícias nos induzem a viver com medo. Na tentativa de lidar com os riscos e a incerteza, as condutas se burocratizam ao máximo, em todos os campos da vida. Há protocolos para tudo, proliferam as subespecialidades, com seus respectivos jargões e verdades. Tudo está normatizado. Mireille Delmas-Marty (professora honorária do Collège de France) ensina que, onde há muitas normas, em geral há pouco direito. As pessoas acreditam que essa parafernália é necessária para preservar vidas e, provavelmente, em alguns casos, realmente seja. Mas a regulação é um quadro cubista: há uma imensa assimetria no cumprimento de normas, há hipocrisia, há bolsões de caos e outros de rigor.
Por outro lado, no caso da saúde, associações de doentes têm sido criadas para lutar por tratamento e medicamentos para doenças específicas. Como a senhora analisaria esse fenômeno?
Ventura – Os mecanismos de participação social em saúde revelam um embate entre interesses de setores específicos, no qual têm êxito, em geral, os grupos mais organizados, com maior capacidade de influência. Grande parte dessas lutas visam ao acesso a medicamentos, o que de certa forma contribui para uma confusão crescente entre direito à saúde e direito ao tratamento. Ora, saúde inclui, no mínimo, moradia com saneamento básico, alimentação e educação. Com toda razão, Sueli Dallari, uma das precursoras direito sanitário no Brasil, recusa qualquer definição de saúde que ignore tanto a necessidade do equilíbrio interno do homem, quanto o equilíbrio do homem com o ambiente em que vive.
Parece óbvio que ter médico é melhor que não ter, mas também parece ser preciso que a discussão evolua para abarcar outros profissionais de saúde e outras questões de saúde pública, como o saneamento básico, que a senhora citou. As entidades corporativas têm afirmado que o problema da saúde pública não é apenas o número de médicos, mas que é preciso melhorar as condições e a estrutura da saúde pública. Por outro lado, essas mesmas entidades não costumam se manifestar de forma tão veemente ou mesmo de forma nenhuma pelo fortalecimento do SUS, o que pode significar que, superado o impasse, não exista pressão nesse sentido. Não seria uma visão mais ampla e responsável da saúde que está se perdendo também na atual polarização em torno do Mais Médicos?
Ventura – Sem dúvida. A vinda dos cubanos tem funcionado, nas últimas semanas, como uma árvore que esconde a floresta. O problema é que embrenhar-se nessa floresta exige tanto do governo federal como das entidades médicas uma tomada de posição muito difícil. Retórica à parte, qual seria, hoje, a verdadeira visão de sistema público de saúde de cada um deles? A resposta não me parece clara.
Muitas vozes – e não só a das entidades médicas – têm se levantado contra o fato de que os médicos cubanos não estão sujeitos às leis trabalhistas brasileiras e só recebem uma parte do pagamento, a outra vai para o governo cubano. São recrutados – e não empregados. Qual é a sua análise?
Ventura – Grande parte dos migrantes que trabalham no Brasil, a exemplo de cerca da metade dos cidadãos brasileiros, fazem parte da economia informal, que os priva de seus direitos trabalhistas mais elementares. Além disso, os estrangeiros no Brasil não possuem direito ao voto e seus demais direitos políticos são limitados pelo estatuto do estrangeiro em vigor. Em outras palavras, eles trabalham como brasileiros, mas não desfrutam dos mesmos direitos, e suas formas de reivindicar são limitadas. Algumas comunidades de migrantes são quase invisíveis: esfumam-se no concreto de cidades imensas como São Paulo. O assassinato do (menino boliviano) Bryan, ocorrido recentemente na capital paulista, revelou que, na falta de comprovante de renda ou de regularização migratória, a impossibilidade de abrir uma conta bancária leva algumas famílias a guardarem dinheiro em casa, o que as torna ainda mais vulneráveis.
Por isso, toda preocupação com os direitos dos trabalhadores estrangeiros, súbita ou não, é bem-vinda. Mas rotular os médicos cubanos como escravos ou semiescravos, infelizmente, é apenas uma parte da lamentável estratégia de desqualificação desses profissionais. Certamente há pobreza, mas não há escravidão em Cuba. Já aqui, no Brasil, não apenas as denúncias recorrentes de trabalho escravo, como também o tempo que levamos para adotar uma lei decente sobre trabalho doméstico, nos deixam inúmeras interrogações a respeito de como lidamos com nosso passado escravagista.
Não obstante, penso que o regime jurídico aceito pelo governo brasileiro para trazer os médicos cubanos deveria ser diferente. É verdade que o Brasil não pode obrigar Cuba a se tornar uma democracia, e ainda menos pode suprir a evidente penúria de divisas que acomete cronicamente a pequena ilha. Por menos que isso agrade aos nostálgicos da Guerra Fria, trata-se de um acordo internacional que institui um regime jurídico próprio para a iniciativa de cooperação em apreço. Mas acredito que o Brasil e a Organização Panamericana da Saúde (OPAS) teriam influência suficiente para obter de Cuba uma contrapartida mais favorável aos profissionais que participam do programa, sem que isso configurasse uma ingerência indevida.
Na semana passada, médicos cubanos foram hostilizados no Ceará por médicos brasileiros, aos gritos de “escravos”, “incompetentes” e “voltem para a senzala”. O que essa escolha de palavras, que os “de dentro” usaram para tachar os “de fora”, revela, na sua opinião?
Ventura – Quando vi aquelas cenas, como brasileira, fiquei muito envergonhada, e lembrei de uma entrevista do (antropólogo) Eduardo Viveiros de Castro, onde ele diz que talvez seja nisso que consiste realmente o sentimento de pertencer a uma nação: ter motivos próprios para se envergonhar, tão próprios quanto – senão mais que – os sempre lembrados motivos para se orgulhar.
Provavelmente, as pessoas que insultaram os cubanos atribuem a causa da sua própria hostilidade às pessoas a quem dirigem o seu preconceito. Na verdade, porém, à xenofobia, fomentada pelas associações médicas, somou-se um elitismo vivido ou almejado pelos xingadores. Há, em muitos setores, um descontentamento com esse pouco de igualdade que conquistamos nos últimos anos. Nesse sentido, os cubanos parecem ter sido bodes expiatórios. Quando eles forem embora, imagino essas pessoas perdidas como as vozes do poema “Esperando os bárbaros”, do (poeta grego Konstantíno) Kaváfis (1863-1933): “e agora, que será de nós sem os bárbaros?”.
Mas desconfio que esse tipo de xenofobia tem algo de seletivo. Por exemplo: há um grande entusiasmo na preparação da acolhida dos profissionais e turistas supostamente ricos que têm vindo a grandes eventos internacionais sediados pelo Brasil. Logo, continuo achando que os brasileiros gostam de estrangeiro rico – ou que pareça rico e aja como tal –, mas que não gostam de pobres. Se o pobre for estrangeiro, ele será duplamente vulnerável, primeiro por ser pobre, segundo por ser estrangeiro. Por isso, não consigo imaginar uma acolhida corporativa agressiva para um grupo de médicos suecos, por exemplo. Aliás, uma das características do provincianismo é a adoração ao estrangeiro idealizado e às belas coisas da “metrópole”.
Existiria um temor de que a medicina, como carreira, perdesse status?
– De fato, a medicina é, no Brasil, uma das grandes carreiras liberais que ainda guardam uma força simbólica imediata de ascensão ou manutenção do status social. A ampliação vertiginosa das vagas nos cursos de direito, por exemplo, acabou com o prestígio dos bacharéis. O censo educacional de 2011 conta 723.044 alunos matriculados em 1.121 cursos de direito, cerca de 90% deles em instituições privadas. Em torno de 1 em cada 8 estudantes universitários brasileiros estuda direito. Já, na medicina, temos cerca de 200 escolas, com um número muito menor de vagas.
Por quê?
Ventura – Porque, diferentemente de outros cursos de graduação, não se abre uma faculdade de medicina apenas “com cuspe e giz”. A regulação da educação superior, sob evidente pressão das associações médicas, ainda exige que se faça um investimento muito grande para abrir um novo curso de medicina. Porém, apesar de mais rigoroso do que em outros campos, esse controle não consegue evitar persistentes reclamações quanto à qualidade de algumas instituições privadas brasileiras.
O presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, João Batista Gomes Soares, declarou que vai orientar os médicos a “não socorrerem erros dos colegas cubanos”. Que olhar sobre a saúde e sobre a população que depende do SUS essa declaração revela?
Ventura – Fico impressionada com o grau de polarização e o sectarismo que esse movimento alcançou. Tamanha intransigência nunca foi vista em defesa do SUS. (Essa declaração) é simplesmente uma incitação ao crime de omissão de socorro. Pura prepotência! Quando se escuta essa ameaça de punição ao cidadão brasileiro, até parece que ele tem escolha: eu quero ser atendido por um cubano ou por um brasileiro? E é advertido: caso aceite ser atendido por um cubano, assuma as consequê
Uma jornalista potiguar, Micheline Borges, escreveu no Facebook: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma Cara de empregada doméstica! Será que São médicas Mesmo??? Afe que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência... Coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja O nosso Povo!”. Em um protesto contra o Mais Médicos, diante do Ministério da Saúde, semanas atrás, uma das palavras de ordem dos médicos que se manifestavam era: “Somos ricos, somos cultos, fora os imbecis corruptos”. De novo, o que isso demonstra? E o quanto essa tensão social se reproduz na assistência pública de saúde?
– Aqui entra forte um legado escravagista. Há uma incompreensão de que, em outros países, não são apenas as elites que chegam aos cursos de medicina. No entanto, os atributos físicos da elite brasileira são tão idealizados pelos parâmetros pasteurizados dos mercados internacionais que nem ela se parece consigo mesma. Uma voltinha pelos grandes hospitais brasileiros surpreenderá a tal jornalista, que parece ainda fixada na estampa artificial dos médicos de seriados ou novelas de TV. Ora, os médicos de carne e osso que vejo todos os dias não se parecem com George Clooney.
Creio que um bom exemplo dessa tensão social é revelada pelos estudos de João Biehl (professor de antropologia da Universidade de Princeton). Ele diz que o programa de HIV/Aids no Brasil reproduz as linhas de fratura de cor e de pobreza: os pacientes não são iguais, sofrem estigmatização constante, inclusive por parte dos profissionais de saúde. Segundo estatísticas citadas por Biehl, em alguns locais do Brasil a aids poderia ser duas vezes mais fatal para os negros do que para os brancos. Mas essa tensão não é uma exclusividade do Brasil. Num livrinho delicioso sobre saúde, o (epidemiologista) Francisco Bastos cita o exemplo da hipertensão entre os negros pobres americanos: estudos demonstram que a gravidade da hipertensão é fortemente associada ao quanto cada pessoa se sente discriminada em seu dia-a-dia, o que foi chamado de “escala de mensuração do racismo internalizado”.
De qualquer forma, sejam eles belos ou não, o que importa é que a profissão dos médicos é muito bonita. Porque pressupõe o dom de cuidar e de acolher, sem julgamentos. Gosto muito da ideia do (filósofo alemão Hans-Georg) Gadamer (1900-2002) sobre o que ele chama de “arte de curar”. Para Gadamer, a obra do médico, quando acabada, deixa de ser sua: quando o paciente “está curado”, o médico torna-se dispensável. Então a perfeição do trabalho médico seria a auto-exclusão.
Por trás dessa relação tão peculiar, porém, há gigantescas estruturas: a indústria de medicamentos, os sistemas de saúde, as instituições políticas, o mercado de insumos, a pesquisa e a tecnologia, etc. Ocorre que uma parte dos profissionais da saúde e de seus pacientes não consegue ver nenhuma dessas pontas. Por vezes, não entendem nem a magnitude do gesto de cuidar, nem a evidência de que este trabalho cotidiano é diretamente condicionado por decisões políticas e econômicas das quais não somente eles não participam, como não estão interessados em participar. Numa organização social injusta como a nossa, é difícil ver glamour em qualquer profissão. Mas se pode ver muitas outras coisas. Aliás, a saúde pública diz tudo o que há para ser dito sobre uma sociedade e um Estado.
E o que ela diz?
Ventura – Quanto às desigualdades sociais, elas aparecem em todos os indicadores de saúde, na ampla persistência de doenças como a tuberculose, a hanseníase, a malária, o mal de Chagas. Mas diz muito mais: por exemplo, que as prostitutas, aqui no Brasil, não podem se declarar felizes nem numa campanha relativa ao HIV/Aids. Que a Câmara dos Deputados, a casa que nos representa, vive uma fase de terrível retrocesso, pois ficamos boa parte do ano discutindo uma estultice como o projeto de lei que instituía a “cura gay”. O aborto continua no código penal, lugar onde jamais deveria ter estado. Enfim, a lista é muito longa...
*Eliane Brum contribuiu para para revista Época, onde este artigo foi primeiro publicada.
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