A história de Abdias do Nascimento

EM 14 DE MARÇO DE 1914... Nascia na cidade de Franca, no interior de São Paulo, seguramente a maior liderança do movimento negro contemporâneo brasileiro – ABDIAS DO NASCIMENTO. Homenagear Abdias no centenário do seu nascimento é mais que uma obrigação – é um dever. Dever de todos aqueles que assim como ele sonharam e sonham por um Brasil igualitário, tanto no campo social quanto no racial. Abdias foi grande, generoso, polêmico, amado, contestado, mas foi, sobretudo, fiel aos seus ideais. Foi um homem que viveu o seu tempo com toda a intensidade possível.

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EM 14 DE MARÇO DE 1914... Nascia na cidade de Franca, no interior de São Paulo, seguramente a maior liderança do movimento negro contemporâneo brasileiro – ABDIAS DO NASCIMENTO. Homenagear Abdias no centenário do seu nascimento é mais que uma obrigação – é um dever. Dever de todos aqueles que assim como ele sonharam e sonham por um Brasil igualitário, tanto no campo social quanto no racial. Abdias foi grande, generoso, polêmico, amado, contestado, mas foi, sobretudo, fiel aos seus ideais. Foi um homem que viveu o seu tempo com toda a intensidade possível. Entregou-se de corpo e alma tanto na produção artística, (artes cênicas, artes plásticas e literatura) quanto na militância política.

Ao longo da sua trajetória política cometeu vários equívocos, dentre eles apoiar o movimento integralista brasileiro liderado por Plínio Salgado, juntamente com outras lideranças do movimento negro da época, a exemplo de João Cândido – o Almirante Negro, o sociólogo Guerreiro Ramos e o ativista e escritor Sebastião Rodrigues Alves, expoentes da Frente Negra Brasileira de então. Mas nada disto retira-lhe o brilho e a grandeza da sua existência. Sempre pagou, sem reclamar, os preços que sua ousadia cobrava. Um deles lhe custou o afastamento do também grandioso Solano Trindade, a quem dedicava profundo respeito, que junto dele criou o Teatro Experimental do Negro, mas que preferiu trilhar o caminho do comunismo para o enfrentamento das mazelas do Brasil. No livro “Memórias do Exílio”, escrito a várias mãos, justificou sua opção afirmando que o que o atraíra às fileiras do integralismo foram as lutas nacionalistas e anti-imperialistas que o programa continha.

Assim era Abdias, inteiro e assertivo nas suas convicções. Por conta disto, foi preso, exilado, perseguido e discriminado, particularmente no período da ditadura. No seu retorno ao Brasil, ao lado do caudilho gaúcho Leonel Brizola, participou da fundação do Partido Democrático Trabalhista – PDT, partido do qual foi vice-presidente. Neste mesmo período criou o Movimento Negro Unificado e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros – IPEAFRO, na PUC de São Paulo. Apesar de sua intensa e dedicada militância, Abdias não conseguiu, em nenhuma das vezes em que concorreu a cargo público, obter mandatos regulares. Nas duas vezes em que ocupou cargos parlamentes na Câmara e no Senado, o fez na condição de suplente. É um fato revelador da fragilidade que o movimento negro brasileiro possui, até hoje, em politizar e dar conteúdo popular a uma causa das mais justas e necessárias para o aprofundamento da democracia no país, que é o combate ao racismo e a promoção da igualdade racial.

Abdias do Nascimento também atuou politicamente por meio de seu lado artístico | FOTO: Shutterstock
Mas Abdias não se abateu nem se contentou com estes espaços restritos do exercício do poder a que a política partidária sempre nos brindou. Sua forma arrebatada e eloqüente na defesa de suas ideias e propostas era sua marca registrada e o levou a conquistar uma legião de adeptos e seguidores, do mesmo modo que atraiu adversários e inimigos ferozes. À frente do IPEAFRO e do MNU, percorreu o país disseminando suas ideias e mobilizando a comunidade negra para o enfrentamento ao racismo.Publicou neste período livros como o “Quilombismo”, onde defendia um novo modelo de organização social e política para o Brasil. Segundo ele, só com a forte presença de negros nas estruturas de poder, com o resgate das formas coletivas da produção e distribuição econômica ocorridas nos quilombos e no igualitarismo democrático, onde as mulheres deveriam ocupar ao menos 50% de todos os cargos hierárquicos da sociedade, poderíamos superar o racismo entranhado e institucionalizado na sociedade brasileira. Era um visionário, e esta sua ousadia no pensar e sonhar levou-o à condição de ídolo ou quase um mito do movimento negro brasileiro.

Abdias também se fez presente no país por meio do seu talento artístico e da sua criatividade. Ora como escritor, produzindo textos brilhantes e instigantes, ora com suas peças teatrais memoráveis, ora com seus poemas densos e líricos, ora com a contundente e étnica pintura. Tudo isto, umbilicalmente ligado à luta pelos direitos humanos. Aqui vale a pena um destaque especial para a sua grande criação – o Teatro Experimental do Negro. Experiência mais do que marcante do ponto de vista artístico e cultural e que produziu figuras do porte de Ruth de Souza, Léia Garcia e Haroldo Costa. O TEN foi uma tentativa rica, complexa e ousada de buscar a partir da arte engajada sensibilizar e alertar a sociedade brasileira para a exclusão e discriminação dos negros não apenas nos palcos, mas também na vida cotidiana do país. Por isto mesmo não se ateve apenas à produção artística, promoveu congressos, seminários, semanas de estudos, atraiu intelectuais como Darcy Ribeiro, Edson Carneiro, Roger Bastide, Arthur Ramos e Florestan Fernandes na busca incessante de uma nova leitura para a presença do negro na sociedade, onde ele superasse a sua condição de objeto para sujeito de sua própria história. Poderíamos dizer que esta foi, em verdade, uma ação artístico-pedagógica.

Enfim, o centenário de nascimento desse grande ícone chamado Abdias do Nascimento é uma oportunidade singular não apenas para que reflitamos sobre os caminhos percorridos até aqui e a contribuição dada por ele, mas também para identificarmos os novos caminhos que precisaremos percorrer no enfrentamento das novas formas de discriminação, nos novos desafios e principalmente na consolidação das nossas conquistas e na contribuição que podemos e devemos dar para a ampliação do processo democrático brasileiro.

*Zulu Araújo e Maitê contribuiram para a revista Raça Brasil, onde este texto primeiro apareceu.
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* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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