Moçambique, um país interessante
Moçambique está a ficar cada vez mais interessante. O jornal Notícias, por exemplo, mudou de visual. Os de vista fraca vão agradecer o novo estilo gráfico. Os que precisam de estímulos externos para porem a sua máquina intelectual a funcionar vão ficar gratos pelas cores. Mas não é só isso que torna o país cada vez mais interessante. A Frelimo, ao que parece, já não lava roupa suja às escondidas.
Moçambique está a ficar cada vez mais interessante. O jornal Notícias, por exemplo, mudou de visual. Os de vista fraca vão agradecer o novo estilo gráfico. Os que precisam de estímulos externos para porem a sua máquina intelectual a funcionar vão ficar gratos pelas cores. Mas não é só isso que torna o país cada vez mais interessante. A Frelimo, ao que parece, já não lava roupa suja às escondidas. Malta Jorge Ribeiro não só se afirma como consciência moral do partidão, mas também, e cada vez mais, como uma espécie de porta-voz duma oposição interna sem rosto. O que espanta não é a crítica em si, mas a forma virulenta e contundente como ela é feita. O exemplo mais recente foi o desabafo noticiado pelo jornal o País à saída da sessão do Parlamento Juvenil quando ele não só manifestou sérias dúvidas em relação à integridade moral de alguns membros do governo como também pareceu acusar a cúpula do partido e do Estado de estar envolvida num conluio para afastar gente íntegra de postos de responsabilidade.
É bom quando um país se torna mais interessante. Essa mudança qualitativa diz alguma coisa sobre o próprio país, ou mais exactamente dá indicações sobre algo de profundo que está a acontecer na sociedade e que precisa de ser descrito e analisado. Do meu canto relaxado defronte do computador quer me parecer que o que está a acontecer ao país seja mais positivo do que negativo, ainda que o que vem à superfície seja, num primeiro momento, azedo e recriminatório. Afinal, não é só político na reforma que se sente chamado a apresentar a sua versão do passado político do país como uma espécie de espelho que projecta o que devia ser a consciência moral dos que estão no poder. Há também académicos a pronunciarem-se de forma não só aberta sobre o que não anda bem, mas também sobre porque eles acham que o que não anda bem não anda bem. É o caso do economista Carlos Nuno Castel-Branco numa recente entrevista ao semanário Savana com uma excelente análise do modelo económico praticado no país, mas também com especulações problemáticas sobre o que torna esse modelo económico possível.
Que ilações podemos tirar desta evolução? A principal para mim é de que finalmente o país se tornou mais saudável. Crítica – e não desabafo como tem sido hábito – é sinal de que a sociedade se apresenta aos seus membros como algo muito mais diferenciado do que os nossos hábitos políticos nos têm obrigado a pressupor. Na crítica e sua articulação pública ganha substância a ideia segundo a qual Moçambique seria feito na diversidade. Essa diversidade funda-se em interesses individuais e de grupo que são diferentes, clamam por uma distribuição diferenciada do bem público e desprezam o discurso unanimista que tem sido apanágio da nossa cultura política. Do ponto de vista sociológico, portanto, a articulação pública da crítica é um momento privilegiado para a descrição de processos fundamentais de constituição da nossa sociedade. Vale à pena olhar mais de perto.
O aspecto que mais chama atenção neste cenário todo prende-se ao facto de serem pessoas mais ou menos forte e tradicionalmente ligadas ou identificadas com o poder político que se pronunciam públicamente de forma crítica. É natural que, nestas circunstâncias, muitos se perguntem se haverá cisões no interior da Frelimo. Não estou dentro da Frelimo para saber, mas mesmo assim avento uma resposta: não, não há cisões. Ou melhor, essa questão nem interessa. O que interessa, parece-me, é a constatação de que o país, com a articulação pública da crítica, está a normalizar-se. Dá para explicar isto, aliás a explicação desta ideia constitui o principal objectivo deste texto. Interessa-me, sobretudo, mostrar que Jorge Rebelo e Carlos Nuno Castel-Branco não estão a fazer a mesma coisa e que se quisermos abordar o país com seriedade devemos prestar atenção ao que Castel-Branco diz. E ignorar Jorge Rebelo.
A obsessão com a necessidade duma imagem exterior coesa cultivada anos a fio pela Frelimo não era normal. Ela fazia parte da cultura política totalitária praticada nos anos imediatamente a seguir à independência. Com a abertura política permitiu-se que outras forças ocupassem espaço público de expressão de opinião. Igualmente, e fundamentalmente, abriu-se espaço no interior do partido outrora único para que a alma do partido fosse sujeita a várias interpretações. Este espaço, contudo, não foi imediatamente ocupado, provavelmente por causa dos maus hábitos do passado que incutiram em certas pessoas aquela ideia de que criticar é estar contra. A crítica mais recorrrente que eu próprio tenho feito aos nossos governantes – sobretudo ministros – é de que eles revelam pouca inclinação para assumir os seus postos na base de ideias próprias sobre como acham que o seu pelouro deve ser desenvolvido e isso na base duma interpretação própria daquilo que eles consideram ser a alma do seu partido. Muitos dão a impressão de irem apenas cumprir uma missão como, aliás, era esperado nos tempos da Frelimo gloriosa. Portanto, as críticas que vêm do interior do partido no poder revelam um processo de normalização que é bom para a saúde da nossa democracia.
Um aspecto precisa, contudo, de ser considerado com seriedade. Ele prende-se à necessidade de termos presente que a normalização deve ocorrer no interior dos partidos, mas também fora deles na esfera pública. Este reparo é importante porque contextualiza melhor as intervenções de Jorge Rebelo e de Carlos Castel-Branco. A qualidade do que Jorge Rebelo diz é do pelouro do que devia fazer parte do debate partidário. As suas constantes intervenções públicas dão conta de uma de duas situações: ou ele não tem espaço para falar no interior do partido – porque o que ele tem a dizer não comanda maiorias nesse partido – ou então as suas reticências em relação à democracia multipartidária são tão grandes ao ponto de ele não ter percebido ainda que não sendo ele nem líder religioso, nem membro superior da magistratura não tem cobertura simbólica de nenhuma espécie para reclamar um púlpito moral a partir do qual possa falar ao povo. O que é estranho, portanto, nas suas intervenções não é, em minha opinião, a sua qualidade crítica – que é duvidosa, de resto – mas o facto de ele não se articular dentro do partido e tentar identificar no seu interior aliados na mesma causa. A qualidade da intervenção de Castel-Branco, pelo contrário, é certamente do pelouro do debate na esfera pública e tem a vantagem de poder servir de recurso intelectual para seja quem for no interior da Frelimo interessado em introduzir correcções no curso seguido.
Visão moral e crítica social
Para melhor percebermos isto talvez seja oportuno aprofundar um pouco mais a análise da crítica como fenómeno social. Pois bem, na verdade só faz sentido falar de crítica como categoria sociológica quando ela é articulada no interior dum sistema normativo. Partidos são sistemas normativos, isto é ditam regras de conduta com base numa visão moral mais ou menos partilhada pelos membros. Nestas circunstâncias, a crítica deve ser entendida como uma interpretação de comportamentos individuais ou do partido sob o pano de fundo dessa visão moral. A Frelimo diz que é pela justiça social? ora bem, um crítico pergunta se uma certa política adoptada pelo partido – digamos, a sua política económica – está mesmo de acordo com o sentido de justiça social. As várias respostas que são possíveis fazem, então, o debate no interior do partido e revelam a sua vitalidade ou não. O que é estranho nos nossos partidos políticos é, de facto, esta ausência de debates internos. Discutem-se postos, equilíbrios regionais, de geração e género, de filhos dos combatentes da primeira hora, etc., mas raramente se ouvem debates sobre o que do ponto de vista da justiça social que todos os nossos partidos dizem defender deve significar a política económica, a organização dos tribunais, o combate à pobreza, etc. É óbvio que sobre estas questões haverá pouco consenso, mas lá está, isso é normal. Democracia é jogo de maiorias e minorias. O que determina a política dum partido não é necessariamente o que é correcto, mas o que comanda maiorias no seu interior.
A crítica, portanto, consiste em interpelar a alma do partido e perguntar se o que ele faz no seu dia a dia está de acordo com os preceitos morais, digamos, que o deviam guiar. Há limites invisíveis para a crítica. Um dos mais importantes é o consenso geral dentro duma comunidade moral sobre questões morais centrais. Por exemplo, se o consenso geral no interior da Frelimo é de que a justiça social passa pelo reforço da situação económica de alguns sectores da sociedade – veteranos da guerra, militantes da primeira hora, negros, brancos, gente do sul, profissionais com as devidas credenciais ideológicas, etc. – o crítico, para ter sucesso, terá de começar por pôr em causa esse consenso e ganhar mais aliados. Se não for capaz de fazer isso pode continuar a resmungar no interior do partido ou simplesmente sair e formar o seu próprio grupo. É o mesmo processo que se verifica no interior de igrejas e que pode ser estudado e analisado com muito proveito junto das muitas igrejas proféticas e pentecostais do nosso país. Mesma forma, conteúdos diferentes.
Estas considerações permitem-nos – espero – colocar as críticas de Jorge Rebelo e de Carlos Nuno Castel-Branco em perspectiva. Fica claro que o termo crítica é mais adequado para descrever o que Castel-Branco diz e escreve do que o que Jorge Rebelo diz quando solicitado pelos jornais ou pelo Parlamento Juvenil.
Na verdade, o que Jorge Rebelo diz é mais reacção do que crítica, um pouco ao estilo do que o departamento de trabalho ideológico da Frelimo gloriosa qualificava de atitude reaccionária lá nos tempos. O seu quadro de referência normativa é essa Frelimo que já não existe e que não existe porque no seu interior houve uma crítica que permitiu que se impusesse internamente uma outra interpretação da visão moral da Frelimo. Essa visão vingou não só no programa de ajustamento estrutural como também, e sobretudo, na negociação da paz com a Renamo e que através da abertura do sistema político e introdução de direitos democráticos básicos – liberdade de expressão, associação, etc. – permitiu que a Frelimo pudesse dizer, sem vergonha, ser pela emancipação do moçambicano. É perfeitamente legítimo que um militante do partido não esteja de acordo com o consenso que vinga e é também legítimo que esse membro procure alterar esse consenso. Um verdadeiro militante, no entanto, faz isso dentro do partido e se não o pode fazer procura alterar a estrutura de comunicação do partido para que seja ouvido. Quando vem para fora fazer de apóstolo moral, significa que a sua voz já não é mais a voz do consenso. É a voz dum “reaccionário”, daquele que se opõe à mudança por uma questão de princípio.
É sintomático que nas suas várias intervenções o espelho que Jorge Rebelo ergue contra os seus ex-“companheiros de luta” é o espelho duma Frelimo romantizada, cujos atropelos graves da dignidade humana no seu projecto revolucionário ele se vê constantemente obrigado a qualificar de “falhas” e sem explicar porque os moçambicanos devem aceitar as falhas do passado com um simples encolher de ombros e torcerem o nariz perante o que acontece agora. Pessoalmente, achei particularmente problemática a sua alusão à lei da chicotada – que não foi a mais grave; houve também a lei da pena de morte em procedimentos quase que sumários – que, segundo a reportagem do Savana, não foi aceite por todos no interior da Frelimo. Não obstante, não é a ele próprio que indica como uma das pessoas que se opôs, mas sim Albino Magaia. Autoridade moral? Este discurso moralizante passa com facilidade na nossa esfera pública porque, curiosamente, Jorge Rebelo acaba sendo uma construção dos nossos meios de comunicação de massas, artefacto duma cultura de debate apaixonada pelo desabafo e que cerra fileiras contra a crítica. Os jornais não conferem valor ao conteúdo das suas declarações. Eles conferem valor ao facto de ele ser “histórico”, de gozar da imagem de “íntegro” e de estar a dizer o tipo de coisas que não se esperam ouvir de alguém da Frelimo. Parecendo que não, a construção mediática de Jorge Rebelo diz muito – num sentido negativo – sobre a qualidade do nosso debate. A situação do país está tão mal que nos contentamos com muito pouco em jeito de reflexão crítica.
Já as intervenções de Carlos Nuno Castel-Branco são radicalmente diferentes, refrescantes e salutares. Aqui estamos em presença de crítica no seu verdadeiro sentido, ainda que seja difícil, suponho, de digerir pelos que estão no poder e ainda que o seu significado profundo tenha passado despercebido aos nossos meios de comunicação de massas. O momento crítico na intervenção de Castel-Branco reside na sua tese segundo a qual teríamos em Moçambique uma economia extractiva. A pergunta fundamental que ele coloca – e de grande alcance normativo – é se o modelo económico praticado no país, aquilo que ele chama de padrão de acumulação – que privilegia grandes investimentos gozando de isenções fiscais, criação duma classe de estado que vive da renda – é consistente com a visão moral da Frelimo de construção duma sociedade soberana e com menos pobreza. A descrição que ele faz desse modelo económico parece indicar que este não é o caso. Isto devia abrir espaço para uma discussão mais séria no interior da Frelimo sobre o que significa o compromisso com a luta contra a pobreza e pela soberania nacional.
Esta é uma crítica que precisa de ser encarada a sério não só pelo partido no governo como também pelas outras formações políticas, pois o essencial aponta para problemas estruturais graves. Onde Castel-Branco me parece menos convincente – e desce quase ao nível do desabafo de Jorge Rebelo – é na sua tentativa de explicar porque se privilegia este modelo económico e não outro. O seu argumento ganha a qualidade duma teoria de conspiração na medida em que ele considera que quem tira proveito deste modelo são os que estão no poder. Penso que o problema é muito mais complicado do que isso. Na verdade, ele levanta questões científicas mais profundas que, infelizmente, precisariam doutro tipo de fórum para serem discutidas com proveito. Eu também preciso de ler o livro publicado pelo IESE sobre o assunto para perceber ainda melhor o argumento. Curiosamente, na entrevista ao Savana ele releva o facto de estar ciente da problemática ao considerar importante a criação de vontade política como elemento fundamental de mudança de curso. Essencialmente, o que acho pouco convincente no seu argumento é justamente a ideia de que bastaria outra vontade política para se ter outro tipo de política económica, política essa que seria melhor. Neste argumento ele recua por afinidade aos tempos da Frelimo gloriosa – que teve um outro modelo económico – e sugere a ideia de que só essa vontade política seria necessária para manter a linha correcta. E que existe uma linha correcta. Ora, não creio que exista essa linha, pois o mesmo que se verifica no interior dos partidos verifica-se à largura do país quanto à natureza sociológica do consenso: não é o melhor argumento que vinga, mas sim aquele que comanda maiorias.
Para ser mais convincente o seu argumento devia passar pelo reconhecimento do papel que vários factores desempenham no privilégio conferido a este ou aquele modelo económico. O facto de a Frelimo actual parecer estar mais interessada no enriquecimento de alguns não significa nem que a Frelimo do passado não tivesse estado interessada no enriquecimento de alguns – os privilégios conferidos à nomenclatura não eram outra coisa senão isso, alguns dos quais garantem que alguns críticos auto-declarados da Frelimo de agora levem uma vida de conforto sem grande esforço físico ou intelectual – nem que haja uma linha correcta à espera de ser discernida para que as coisas voltem à normalidade. As opções políticas e económicas que são feitas no país num contexto internacional e nacional bastante específico determinam a cristalização de interesses sociais. Esses interesses sobrevivem no dorso de vários factores, um dos menos importantes dos quais é a ganância individual. O privilégio dado ao modelo extractivo parece-me resultado da ausência de crítica no verdadeiro sentido da palavra, mas intervenções como as de Castel-Branco são úteis no sentido em que estimulam isso.
Para serem mais úteis ainda precisariam de colocar a alternativa simplesmente como alternativa e não – como me pareceu ao ler a sua entrevista – o único modelo alternativo possível. A diversificação, o alargamento e a articulação da base produtiva constituem, também, um rol de opções que não se vão impôr simplesmente porque fazem sentido. Estão também sujeitos à negociação, à deturpação e à instrumentalização ao ponto de nem mesmo alcançarem os objectivos que se tiverem propostos. Portanto, a insistência na apresentação da alternativa como alternativa estaria também mais de acordo com o quadro dentro do qual a sua intervenção é feita, isto é um quadro académico e não normativo. Este aspecto pode parecer mesquinho, mas já em tempos parecera-me que Carlos Nuno Castel-Branco enfraquecera a sua crítica ao baptismo da nova ponte sobre o Rio Zambeze personalizando-a ao invés de convidar a sociedade a reflectir sobre a necessidade de definir critérios mais ou menos consensuais para a atribuição de nomes a lugares e infra-estruturas públicas. A distinção entre o académico e o político é, naturalmente, bastante ténue e alguns académicos nem a reconhecem. Tenho em mim, porém, que no estágio em que se encontra o debate na nossa esfera pública ajudaria bastante se um número cada vez maior de académicos resistisse à tentação de satisfazer a apetência natural dos nossos meios de comunicação de massas pela polémica.
O que torna o país interessante
Mas isto é que está a tornar o país cada vez mais interessante. Não é exactamente o facto de Jorge Rebelo ou Carlos Nuno Castel-Branco estarem a criticar a Frelimo. É, sim, o facto de haver indicações de cristalização de interesses sociais, cristalização essa que é fundamental para a consolidação da democracia no país. Enquanto que o primeiro é refém do passado e não consegue intervir constructivamente senão pela romantização desse passado, o segundo interpela o poder político usando o argumento normativo que devia forçar maior introspecção, ainda que me pareça haver uma idealização logicamente desnecessária das condições de produção duma alternativa assim como uma ridicularização contraproducente dos que, bem ou mal, gerem o modelo económico privilegiado.
Que bom que o jornal Notícias mude de visual justamente no momento em que isto tudo está a acontecer. Oxalá que, assim, ele esteja em posição ainda melhor não só de captar o pulso do país como também de nos mostrar claramente quando estamos em presença de visões passadas ou de visões críticas merecedoras desse rótulo.
*Elisio Macamo é filósofo, professor e mora em Basiléia.
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* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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