Governo africano?

"Até que o coronel vá ter com as setenta virgens no paraíso, vamos inventando degraus, uns de mármore, outros de madeira, atrasando a marcha para um governo continental."

O líder da Líbia , coronel Kadafi, gosta de casamentos. Esse gosto não é de agora. Era eu jovem e já ele tinha casado a Líbia com o Egipto e a Síria. Aliança que depressa se desmanchou com um divórcio sem direito a restituição do dote.

Depois casou com o Iraque e talvez o Líbano. A seguir a este divórcio, tentou um matrimónio a sério com os seus vizinhos da Tunísia, Argélia e, se não estou em erro, Marrocos. Perco-me um pouco com tantas bodas. Não foi anunciado o divórcio, mas o casamento norte-africano não se consumou. Fiquei sem saber qual dos nubentes não respeitou os compromissos da noite de núpcias. O certo é que foi matrimónio falhado.

Frustrado com tão pouca vontade dos seus pares árabes, virou os olhos para sul à procura de mais excitantes parceiros. E resolveu casar, não com dois ou três ao mesmo tempo, mas com quase cinquenta. Isto sim, era uma boda real. Mandou emissários por todo o lado, uns com ouro nas bolsas, outros com belas palavras, outros com ameaças, e convenceu-os a acabarem com a Organização da Unidade Africana.

Numa coisa tinha razão, a OUA acabava de cumprir o seu desígnio histórico. Ajudou a terminar com os restos de colonialismo externo no continente e com o apartheid na África do Sul. Houve problemas, divergências, makas e outras quezílias (do kimbundu kijila, para quem não sabe), mas a OUA cumpriu o mandato. Até poderia continuar com o mesmo nome, não viria daí mal ao mundo.

Mas o coronel queria coisa mais moderna, original. E foi criada a União Africana (UA), em nome da originalidade. Os princípios reitores da OUA pouco mudaram, mas não é a mesma sigla e o coronel ficou satisfeito. Por isso os outros cinquenta chefes africanos fingiram aceitar. Para manter o coronel quieto. E ficaram todos reconfortados, vendo o tempo passar e o vento vergando o capim nas anharas.

Mas o irrequieto líbio não ficou afinal satisfeito. Queria mesmo mudanças radicais no seu estado civil. Lançou então a estocada final. Chegou o momento, declara ele, de se unir o continente numa só entidade, criando um governo africano. Começou a revoada. Silenciosa, mas revoada. Com jeitinho, para não ofender sua excelência, os outros chefes puseram os celulares a funcionar, então entramos nessa?, já?, eu nem as minhas fronteiras controlo, quanto mais… e eu que tenho uma oposição armada a tirar-me o sono, bem, diferentes opiniões zumbiram pelos claustros opulentos dos palácios e haréns, conforme os interesses de momento.

O coronel, impaciente, sabia das dúvidas e hesitações, sacou da cimitarra. Convocou uma nova reunião no seu deserto, alojou todo o mundo em tendas desconfortáveis, para forçar uma decisão. E os outros estavam verdadeiramente abuamados, indecisos. Ceder aos ditames do petróleo líbio era demais, seriam a risada universal, mas não dá para ofender o homem, ele tem iras quase divinas e umas guarda-costas bem treinadas. Houve um vivaço, exímio praticante nos seus tempos de juventude, que propôs uma táctica de futebol, atirar para canto. Os outros aplaudiram, aliviados.

Ficou claro, é ainda muito cedo para um governo africano, se nem sequer os países têm governo a sério. Há mesmo quem não tenha nenhum, a sério ou não. Apareceu a teoria de um pensador africano, denominada de processo gradual, isto é, degrau a degrau. Até que o coronel vá ter com as setenta virgens no paraíso, vamos inventando degraus, uns de mármore, outros de madeira, atrasando a marcha para um governo continental. Como disse o tio Maninho, céptico incorrigível, casamento apressado leva sempre ao par de cornos.

* Pepetela é escritor angolano.
* Crônica originalmente publicada em www.africa21digital.com