Os 20 anos de paz em Moçambique, uma reflexão filosófica
Quando falamos dos 20 anos de paz, estamos a dizer o quê? Estamos a dizer: i) que o país esteve em guerra fratricida; -- 2) que em 1992 foi assinado o Acordo Geral de Paz (AGP), na cidade de Roma, Itália, pondo termo ao conflito sangrento de dezasseis anos e --3) que o conflito e a assinatura do AGP deram-se no século XX, mas celebramos os 20 anos no início do século XXI. Não sei se foi a tensão do século XX que se reflectiu em Moçambique, ou se foi Moçambique que agravou essa tensão política nos finais do século. Inclino-me mais pela primeira hipótese. Quero acreditar que a guerra fratricida tenha sido também reflexo do contexto mundial de guerra-fria que se vivia.
Recebi uma tarefa difícil. Pois, não parece que seja fácil reflectir o tema que me foi dado. A questão é: o que a Faculdade de Filosofia da UEM, autor do convite, espera de mim ao enfatizar “reflexão filosófica” dos 20 anos de Paz em Moçambique?
Não é igualmente fácil tratar desse tema nos dias que correm, com certa tensão política no ar, como que a suspender a paz duramente conquistada. Mas, ao mesmo tempo, apraz-me ver que a Faculdade de Filosofia elegeu a paz para tema das suas jornadas filosóficas, comemorando desta forma o Dia Mundial da Filosofia. Por isso, saúdo toda a Faculdade por essa lucidez, coragem e visão.
Penso ser importante um breve enquadramento histórico dos 20 anos de Paz, para depois falar sobre eles, identificar os desafios do futuro e o papel da filosofia nesses desafios.
Quando falamos dos 20 anos de paz, estamos a dizer o quê? Estamos a dizer: i) que o país esteve em guerra fratricida; -- 2) que em 1992 foi assinado o Acordo Geral de Paz (AGP), na cidade de Roma, Itália, pondo termo ao conflito sangrento de dezasseis anos e --3) que o conflito e a assinatura do AGP deram-se no século XX, mas celebramos os 20 anos no início do século XXI. Não sei se foi a tensão do século XX que se reflectiu em Moçambique, ou se foi Moçambique que agravou essa tensão política nos finais do século. Inclino-me mais pela primeira hipótese. Quero acreditar que a guerra fratricida tenha sido também reflexo do contexto mundial de guerra-fria que se vivia. Desde Descartes, mais propriamente com o seu Discurso do Método (1637), foi-se criando nas mentes de que a solução de problemas complexos passava pela operação de simplificação, à semelhança do que se faz na simplificação de uma fracção aritmética. Ao simplificar uns membros, mutila-se e elimina-se esses membros. Mais tarde, Hegel (1770-1831) desenvolveu a lógica dialéctica, segundo a qual a síntese resulta da luta ou oposição dos contrastes, ou seja, entre a tese e a antítese. Uma vez alcançada a síntese, pelo processo dialéctico, ela transforma-se em tese que, por sua vez e necessariamente, deve criar a sua antítese para sobreviver. A luta contra a oposição, ou seja, a eliminação da contradição é naturalmente percebida pela lógica dialéctica. Explica-se que assim funciona a razão da história. Nos seus Discursos à Nação Alemã (1807) Fichte (1762-1814) exacerbava a superioridade da língua alemã e, daí, passou para a superioridade do pensamento alemão. Na sua análise da história social Karl Marx (1818-1883) não evitará o cartesianismo e a forte influência hegeliana. Ao analisar as relações de produção que ocorriam na fábrica, a sua teoria da contradição e a da luta de classes antagonizaram o patrão (o proprietário da fábrica) e o operário (a mão-de-obra que dispõe da força de trabalho), aquele visto como explorador deste. Nesse antagonismo, Marx preconizava a superação do Capitalismo pelo Socialismo até chegar ao estado ideal do Comunismo. Daí, a luta de classes como motor da história. É interessante que, quem perceberá mais tarde, a não possibilidade da eliminação do Capitalismo, foi a China. Inventou uma fórmula dialogal entre os dois, expressa na síntese “uma nação, dois sistemas”. Encontramos também em Marx a cultura da eliminação como via de solucionar os problemas complexos e provocar o desenvolvimento da classe operária, que é a maioria trabalhadora. Essas teses, em substância, caíram com a queda do Muro de Berlim, em 1989. Essa queda não derrubou necessariamente nas mentes a cultura de simplificação, da redução e da eliminação do Outro diferente, considerado inimigo.
O que significou a guerra-fria? Significou a legitimação de dois blocos, Leste e Ocidente, que se odiavam numa intolerância extrema, no ódio e na perspectiva de eliminação mútua. Os dezasseis anos de guerra significaram um período de guerra-fria em Moçambique. Significou a hostilização do Outro diferente no pensamento e na ideologia, como foi no caso moçambicano. Significou o desafio dos interesses económicos das potências hegemónicas, desafio centrado na apetência pelo petróleo que justificou, por exemplo, a invasão dos aliados ao Iraque. A guerra-fria foi a expressão limite da lógica disjuntiva e da supressão do outro diferente. Foi a lógica da II Guerra Mundial que acabou dividindo o povo alemão em dois países inimigos. Cada Alemanha considerava-se democrática. A Alemanha Federal considerava-se modelo de democracia, e a Alemanha do Leste chamava-se a si própria de República Democrática Alemã (RDA). Hoje, também cada uma das Coreias do Norte e do Sul considera-se democrática. A guerra-fria significou a eliminação do outro, de raça ou tribo diferentes, como foi, no seu extremo, a barbárie de Auschwitz e a horrenda destruição de Hiroshima. Contrito, Einstein havia exclamado, que se soubesse que a sua fórmula científica E = mc2, levaria à produção da bomba atómica, não a teria revelado.
Quando o Ocidente parecia “civilizado”, utilizando a expressão de Adorno, eis que desencadeou a guerra fratricida dos Balcãs, de 1991 a 1995, explorando ainda a diferença de religiões. Os países africanos enveredaram pelos mesmos esquemas de pensamento e de interesses. Os casos flagrantes foram o genocídio de Ruanda em 1994, a internacionalização da guerra da República Democrática do Congo e a guerra prolongada do Sudão. Não obstante a divisão em dois países independentes, Sudão do Norte e Sudão do Sul, a situação política continua turva. Durante dezasseis anos, cada beligerante moçambicano lutava para eliminar o outro diferente dele. A exclusão e a eliminação do diferente era o lema e o leitmotiv dos militares em combate. A lógica da eliminação era a justificativa. A opção pela guerra era adoptada como única medida para resolver os diferendos nacionais e estratégia acertada com a respectiva táctica. A diferença ideológica e partidária era vista como inimiga. Só que, como em qualquer guerra, o outro diferente que morre é o incauto, o inocente, o coitadinho, o pobre, ou seja, aquela população considerada escória da sociedade e, por conseguinte, não cidadã e nunca os arquitectos, os seus intelectuais orgânicos e mandantes da guerra. Nas guerras clássicas, quando morria o general, terminava a guerra. Lembramo-nos das guerras púnicas. Nas guerras modernas é diferente: lamenta-se a morte do general em combate, mas a sua morte não põe fim ao conflito. Esses exemplos retirados da história mostram que a lógica dialéctica não dialoga, mas, sim, afasta, separa, reduz, elimina e até mata.
Por quê este tipo de guerra? Os pensadores da Escola de Frankfurt, de Erick From a Marcuse, de Horkheimer a Adorno e Habermas entenderam recorrer à psicanálise de Freud para entender a mente do homem que pensa, planifica, declara e decide pela guerra Adorno não encontra uma justificação racional da Auschwitz senão a barbárie que infectou a civilização que produziu a anti-civilização. Mais recentemente, Edgar Morin entende que, nesses casos, tanto o político que pensa e autoriza a guerra como o intelectual e o homem da comunicação que utilizam as suas penas para justificá-la e o próprio carrasco que executa a acção, todos são igualmente cúmplices da barbárie.
A questão é: se é possível eliminar a apetência ou a tendência de solução dos conflitos por via da guerra? A resposta é: é possível com forte vontade política. Baseando-se ainda em Freud, Adorno não hesita em propor a educação como aquela capaz de “desbarbarizar” as mentes. O autor da “Dialéctica do Esclarecimento” refere-se à “educação infantil, sobretudo na primeira infância” e ao “esclarecimento geral em todas as idades de adolescentes, jovens e adultos. E por que Adorno insiste na educação e no esclarecimento? Este filósofo frankfurtiano acredita que eles são os meios mais capazes e eficazes de criar “um clima espiritual, cultural e social que não dê margem a uma repetição” da barbárie; são capazes de criar “um clima (…) em que os motivos que levaram ao horror se tornem conscientes, na medida do possível.
A celebração dos 20 anos de paz
SEM dúvida nenhuma, constitui para todos nós motivo de grande alegria a celebração dos 20 anos de paz. Por isso, estamos aqui. Admiramos a coragem daqueles que pensaram em terminar com a guerra fratricida. A eles a história agradece e agradecerá sempre. Admiramos aqueles que acreditaram que era possível àqueles, que outrora eram inimigos de sangue no campo da batalha, darem-se as mãos e fumarem juntos o cachimbo da paz. Prevaleceu a racionalidade do bom senso sobre a irracionalidade e os horrores da guerra fratricida. Quer dizer, estamos a celebrar a prevalência da razão sobre a des-razão política da barbárie da guerra entre filhos da mesma família moçambicana. Prestamos homenagem às mãos do senhor Joaquim Alberto Chissano, então Presidente da República de Moçambique e do senhor Afonso Dhlakama, presidente da Renamo, que pegaram nas suas canetas para assinar o cessar-fogo e souberam manter-se consequentes com o compromisso assumido naquele dia 4 de Outubro de 1992, de juntos trabalharem para uma paz duradoira, para uma democracia multipartidária saudável e o bem-estar social do povo moçambicano. Homenageamos os concidadãos das delegações das duas partes ex-beligerantes que durante cerca de dois anos, com paciência, patriotismo e fé, aceitaram, em princípio, desbarbarizar as suas mentes, caminhar juntos na construção da confiança e lançar as bases de convivência mútua. Homenageamos todos os mediadores nacionais e internacionais que ajudaram os ex-beligerantes a saberem aproximar-se e reconciliar-se como cidadãos da mesma pátria. O mundo quase que parou para assistir à assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP) e juntar-se à alegria dum povo sofrido. Em suma, homenageamos o povo moçambicano que, numa atitude de coragem e humanismo característico, soube reconciliar-se e reconciliar os seus filhos, ontem inimigos de sangue. Reconciliação, naquele sentido do bispo Sengulane, de que o fim da guerra foi uma vitória sem vencedores nem vencidos, porque foi uma vitória de todos. É motivo bastante para evocar o salmista e cantarmos com ele o seguinte salmo: “Quero louvar-te, Senhor, com todo o coração, e narrar todas as tuas maravilhas. Em ti exultarei de alegria e cantarei salmos ao teu nome, ó Altíssimo” (Sal. 9, 1-2). Assim, exultamos de alegria ao Senhor Deus por esse dom dos 20 anos de paz. Ora, os refugiados da guerra em países vizinhos regressaram. Os caminhos, ou seja, as estradas, sem perigo das minas, permitem as pessoas circularem e viajarem para onde querem. Os projectos individuais ou colectivos vão-se instalando. Quando se viaja pelo país, é emocionante ver multidões de crianças a dirigirem-se para a escola ou a regressarem com um andar bem compassado, tranquilas, a caminharem calmamente e sem medo. Os cidadãos de vinte anos de idade felizmente vivem em paz e não fazem ideia dos horrores da guerra. O desafio consiste em manter limpas as suas mentes.
Uma consciência moçambicana madura
Não obstante a euforia da paz, há várias interrogações no ar. Poderemos, a partir de Adorno, afirmar que as duas décadas de paz construíram uma consciência moçambicana madura, enraizada e cidadã, de que os motivos que haviam levado “ao horror” da guerra dos dezasseis anos não se justificam mais? Acredito que só foi possível chegar aos 20 anos porque ninguém quer mais guerra em Moçambique. Podemos afirmar que durante os 20 anos prevaleceu a racionalidade da convivência na diferença das opções ideológicas e partidárias, uma vez adoptado o “pluralismo de expressão e organização políticas democráticas”, no espírito do Protocolo II do Acordo Geral de Paz? Tomara, como dizem os brasileiros! Podemos afirmar que o país está definitivamente estável?
No seu tempo, Montaigne (1533-1592) reduzia a estabilidade social a três tipos de convivência: i) a convivência com a “leitura”, a partir do pensamento de Cícero segundo o qual “viver é pensar” (quibus vivere est cogitare) através dela se convive com os deuses e com a sabedoria; ii) a convivência com “os homens de bem e de talento”, de “juízo maduro e constante e iii) a terceira é a convivência com as “mulheres belas e honradas”, baseando-se na sua experiência de “convívio delicioso” com elas, naquilo que igualmente Cícero pode dizer: Num nos quoque óculos eruditos habemus(«Porquanto nós também temos olhos de conhecedor na matéria»).[6] No meu entender, estes três tipos de convivência continuam de certa maneira válidos. iv) Mas os desafios do país ocorridos nesses últimos 20 anos mandam-me acrescentar o quarto tipo: o de convivência social com o Outro diferente política e ideologicamente. Este tipo de convivência inclui a tolerância, como condição de paz e postula o uso da razão e vontade livre dos homens, na linha de John Locke na sua Carta Sobre a Tolerância.[7] A convivência com diferente está implícita nas teses neoliberais da democracia e do respeito à diferença. O Acordo Geral de Paz de Roma incorporou em si essas teses. É assim que, no Protocolo I, os assinantes do AGP assumiram “o método de diálogo” e “de colaboração entre si” como “indispensável para se alcançar uma paz duradoira no país.” Trata-se de uma convivência que ultrapassa o método cartesiano de simplificação, de separação, de divisão e exclusão; ultrapassa a contradição contida na dialéctica hegeliana. Trata-se de uma convivência na qual a contraditoriedade faz parte do ser e de estar na sociedade humana e da sua dinâmica social. Pois, a democracia inclui em si a contraditoriedade, a qualidade de o Outro ser diferente, a possibilidade de convivência social e requer a lógica dialógica.
Insisto na tese de que se não deve avaliar os 20 anos de Paz apenas pela multiplicidade de partidos políticos; pelo número de infra-estruturas erguidas nesse período (que são importantes); nem nos comprazermos apenas com os indicadores económicos. Sócrates (469-399 a. C.) advertia a Cálicles que louvava os homens que haviam engrandecido Atenas, por terem enchido “a cidade de portos, arsenais, muralhas, tribunais e outras ninharias”, não se importando “com a sabedoria” nem “com a justiça.”[8] Sócrates não estava a desprezar as construções; queria, sim, salientar que tudo isso valia pouco se, entre os homens da cidade e nas instituições atenienses, não imperassem a sabedoria e a justiça. Repare-se que para Sócrates o carácter divino dos deuses ou a sua santidade (óσιος) residia necessariamente no facto de ser justo (δίκαιος). Séculos mais tarde, Fichte (1762-1814) irá retomar a tese de boa governação assente na justiça, quando clama que o que o povo quer do seu imperador não é a sua bondade, nem a felicidade, mas a justiça. Diz textualmente: “Não, príncipe, tu não és o nosso Deus. De Deus esperamos a felicidade; de ti, a protecção dos nossos direitos. Connosco não deves ser bondoso; deves ser justo.
*Brazão Mazula – Texto apresentado durante as Jornadas Científicas de Filosofia na Faculdade de Filosofia da Universidade Eduardo Mondlane, em janeiro de 2013. Dia Mundial da Filosofia.
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